sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Joaquim Serra: "5 Poemas"

A MISSA DO GALO

Repica o sino da aldeia,
Troa o foguete no ar!
O rio geme na areia,
Na areia brilha o luar.
Quantas vozes, que alegria!
O povo da freguesia
Corre em chusma, folgazão.
No caminho arcos de flores,
Por toda parte cantores,
Folguedos e agitação!
Ali no largo da ermida
O tambor toca festeiro,
Se apinha o povo em redor;
E a igrejinha garrida,
Tendo defronte um cruzeiro,
É toda luz e fulgor!
Vêm do monte umas devotas,
Trazem o rosário na mão;
Uns camponeses janotas,
Calças por dentro das botas,
Seguindo o grupo lá vão!
Que raparigas formosas,
Cheias de rendas e rosas
A ladeira vão subir!
Falam cousas tão suaves,
Parece gorjeio de aves
O que elas dizem a sorrir!
A brisa sopra fagueira,
Brincando na juçareira
E vai o rio enrugar;
Chegam de longe canoas,
Os barqueiros cessam as loas,
Que modulavam a remar!
O sino da freguesia,
Da branca igreja da aldeia,
Cada vez repica mais;
O povo corre à porfia,
A capela já está cheia,
Soam trenos festivais!
Porque produz tanto abalo
Esta festa sem rival?
É hoje a missa do galo,
Santa missa do Natal!
.....................................................
Este festejo tão lindo
Que grande mistério encerra!
Poema de amor infindo
Que o céu ensinou à terra!
Faz-se humano o ente divino,
O Eterno se faz menino,
Vem viver entre os mortais!
Lei cristã, santa e formosa,
Salve crença majestosa,
Que eu recebi de meus pais!



A MINHA MADONA

Alva, mais alva do que o branco cisne,
Que além mergulha e a penugem lava;
Alva como um vestido de noivado,
Mais alva, inda mais alva!
Loira, mais loira do que a nuvem linda
Que o sol à tarde no poente doira;
Loira como uma virgem ossianesca,
Mais loira, inda mais loira!
Bela, mais bela que o raiar da aurora
Após noite hibernal, negra procela;
Bela como a açucena rociada
Mais bela, inda mais bela!
Doce, mais doce que o gemer da brisa;
Como se deste mundo ela não fosse...
Doce como os cantares dos arcanjos,
Mais doce, inda mais doce!
Casta, mais casta que a mimosa folha
Que se constringe, que da mão se afasta,
Assim como a Madona imaculada
Ela era assim tão casta!...



O PRESÉPIO

Na palhoça iluminada,
Que fica junto da ermida,
Des'que a missa foi cantada
Se congrega a multidão;
Toldo de mirta florida,
Flores de mágico aroma
Ornam o presépio, que toma
Na sala grande extensão.

Quão lindo está!  Não lhe falta
Nem o astro milagroso
Que de repente brilhou;
Nem o galo, que o repouso
Deixara por noite alta
E que inspirado cantou!

Tudo o que a lenda memora
E consagra a tradição,
Vê-se ali, grosseiro embora,
Despido de perfeição.

Céu de estrelinhas douradas,
Estrelas de papelão;
Brancas nuvens fabricadas
Da plumagem do algodão!
Anjos soltos pelos ares,
Peixes saindo dos mares,
Feras chegando do além.
Marcha tudo, e vêm na frente
Os Reis Magos do Oriente
Em demanda de Belém.

É esta a lapa; o Menino
Nas palhas está deitado,
Com um sorriso de alegria
Todo doçura e amor!

Contempla o quadro divino
São José ajoelhado,
E a Santíssima Maria
De Jericó meiga flor!

Trajando risonhas cores
Com muitos laços de fitas,
Rapazes, moças bonitas
Formam grupos de pastores.

Que curiosos bailados,
Com maracás e pandeiros!
E o ruído dos cajados
Desses risonhos romeiros!

Essa quadrilha dançante,
Cantando versos festivos,
Aos pés do celeste infante
Vai depor seus donativos:

Frutas, doces, sazonadas,
Ramilhetes de açucenas,
Cera, peles delicadas,
Pombinhos de brancas penas.

São as joias que os pastores
Dão ao Deus onipotente!
E o povo aplaude os cantores
E o espetáculo inocente.

Eis o presepe singelo
Da devoção popular;
Oratório alegre e belo
Sagrado risonho altar!



DESAFIO A VIOLA
Que festa estrondosa, na rude cabana
Do pai de Rosinha, o velho vaqueiro!
Lá geme a viola e a roda-tirana
Ha muito que dançam no vasto terreiro!

Faz anos a linda, gentil rapariga,
Orgulho do pai, a rosa da aldeia!
Estrondam roqueiras, não cessa a cantiga,
A casa festiva de gente está cheia!

Provocam-se alegres os moços cantores,
As moças aplaudem os motes e loas.
As trovas mais ternas, os versos de amores
Promovem sorrisos e palmas e coroas!...

Lá entra na roda a flor da ribeira,
Retinem os pandeiros, o canto enlanguesce...
E a bela Rosinha, puxaudo a fieira,
Na dança campestre mais linda parece!

Tira a cantiga, Cazuza,
Qu'eu nunca estive na escola...
Anda, puxa pela musa,
Qu'está gemendo a viola!

Canta os olhos da Rosinha,
Esses diamantes azuis!
Nunca vi, por vida minha,
Olhos que vibrem mais luz!

Respondam, qu'eu já não posso
Com os baques do coração!...
Ai, Chico, esse anjinho vosso,
É anjo de tentação!

Calou-se o poeta, o vate selvagem;
Aceita risonho um outro o duelo...
Qual canta melhor? qual leva vantagem?
É o rude bailado prossegue mais belo!

Menina, que me prendeste,
Eu quero seguir viagem...
Que feitiço será este
Que me atem nesta paragem?

Esse teu rosto divino
Dos olhos tirou-me a luz...
Co’o caminho não atino,
Se p'ra longe me conduz!

Dizem que teme a esmeralda
A cobra lá no Oriente,
Pois se a fita demorada
Fica cega de repente!

Deus fundiu o Armamento
Numa noite de luar,
E sem mais outro elemento
Ele fez o teu olhar!

Lá vem a cruel dançando...
Parece, meu Deus, que voa!
Que talhe flexível, brando,
Como a junça da lagoa!

Nunca vi tanta lindeza
Entre as moças da cidade!
A mais formosa princesa
Não tem esta majestade!

Na cidade o que me resta,
Uma vez qu'eu te não veja?
Quero viver na floresta,
Onde vive a sertaneja!

As palmas soaram, o jovem estudante
Recebe ovações, sorrisos e flores!
Porem lá no fundo do grupo, distante,
Uns olhos o fitam ardendo em furores!

Que dizem esses olhos de tétrico lume,
E os lábios crispados do moço que fita
O jovem poeta? Acaso o ciúme
Referve-lhe o sangue, o peito lhe agita?

Quem sabe? No entanto começa de novo
Ao som da viola canto e a dança;
Um velho patusco, querido do povo,
Vem pela beleza romper uma lança:

Aonde escondeu-se o Chico,
O noivo de rapariga?
Ardor de zelos, meu rico,
É pior do que de urtiga!

Salte o noivo para frente,
Venha dançar a tirana!...
Não 'steja assustando a gente
Com olhos de suçuarana!

Haja verso ou haja prosa,
Ninguém furta o teu tesouro!
Libe a abelha a fresca rosa,
Deixe zumbir o besouro!

Ó Chico, deixa-te disso,
Qu’o ciúme é cousa feia...
Olha a Rosa, o teu feitiço
Como dança e sapateia!

As vozes amigas do velho Narciso
Um pouco acalmaram do noivo os furores!
Se achega do grupo, ensaia um sorriso,
E finge cantar co’os outros cantores.

Rosinha abeirou-se do amante arrufado
E trouxe-o faceira p'ra o meio do bando.
Adeus nuvens negras! É tudo acabado,
Os noivos se enlaçam e fogem bailando!

E o sol escondeu-se por traz da cabana,
Lançou sobre a várzea fulgor derradeiro;
Não cessa no entanto a roda-tirana
Que dançam os convivas no vasto terreno!


ALMAS PENADAS

Já todos dormem na aldeia,
Somente o velho vigário,
Sentado junto á candeia,
Inda lê o breviário.

A noite corre silente,
As aves estão caladas,
Mas na janela da frente
Bateram leves pancadas...

O velho sem mais demora
Abre a porta caridoso,
Porém recua... lá fora
Viu um quadro pavoroso!

Muitos fantasmas, um cento,
Ocupam inteira a rua,
E o sinistro ajuntamento
Alveja ao clarão da lua!

Cada medonha figura
Traz na mão um círio aceso...
Quis gritar o velho cura,
Mas o grito ficou preso!

Benzeu-se afinal e brando
Perguntou: — O que vos falta?
Porque andais divagando
Pelo mundo em noite alta?

Os fantasmas, co’as mãos postas,
Apontaram para a ermida,
E caminharam de costas,
Seguindo a longa avenida...

O velho cura, sem medo,
Devagar os foi seguindo;
Passaram o escuro arvoredo,
Vão a montanha subindo...

Entraram na freguesia;
Ardem brandões nos altares,
Foi o padre á sacristia,
Volta com as vestes talares.

Mal começa a ladainha,
Contritos e reverentes,
Se prostram todos em linha
Os estranhos penitentes!

Quando findo o responsório
O cura voltou o rosto,
Teve medo do auditório,
E quase abandona o posto!

Era um grupo de caveiras
Que ali estava enfileirado,
E as mortalhas inteiras
Dobradas jaziam ao lado...

Aquele congresso horrendo
Produzia-lhe vertigem!
Voltou-se o cura tremendo
E cravou olhos na Virgem!

Rezou muito, finalmente
Ergueu-se com alegria,
Não viu mais um assistente,
Estava a igreja vazia!

Uma trilha luminosa,
Que se perdia nos ares,
Mais um perfume de rosa
E maviosos cantares,

Só eram os denunciantes
Do fantástico auditório;
Aquelas almas errantes


Saíram do purgatório!


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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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