GRAÇA PÓSTUMA
Depois da
tua morte eu hei de ver se arranco,
Numa noite
serena, ao teu berço final,
Um produto
mimoso; — um grande lírio branco
Da alvura
do teu colo ebúrneo e divinal!
Aquela
flor suave, ó minha visão histérica,
Debruçada
gentil, na taça em que a puser,
Fazer-me-á
lembrar a graça cadavérica
Do teu
corpo franzino e etéreo de mulher!
E mesmo
conterá, de certo, alguma cousa
Do que me
traz submisso e prezo ao teu olhar:
— Teu
corpo a pouco e pouco irá fugindo à lousa
Depois
tornado em lírio à terra há de voltar! —
E em
longas noites, nele, eu beberei sozinho,
Sonhando
as convulsões d'uns lindos braços nus,
A
fragrância que exala a candidez do linho
Em que
hoje ondeias leve e onde os meus lábios pus,
— Saudando
a boa mãe que faz com que eu te goze
Depois do
verme vil teu seio poluir,
Mais pura
no frescor de tal metamorfose
Do que
eras a cismar, do que eras a sorrir!
Ó minha
doce Ofélia! Os rápidos momentos
Da vida,
são cruéis mas passam como um som!
Um dia
quando em fim dos velhos sedimentos
Teu corpo
renascer num lírio imenso e bom,
Talvez que
eu durma já também sob os matizes
Das
flores, ao sorrir das mil germinações,
Dando um
pasto fecundo às tuas sãs raízes
Depois de
te sagrar as últimas canções!
OS SONHOS MORTOS
Embora
triste a noite, a vagabunda lua
Mais
branca do que nunca erguia-se nos céus,
Igual a
uma donzela ingênua e toda nua
No leito
ajoelhada erguendo a fronte a Deus!
O mar
tinha talvez cintilações funestas.
A praia
estava fria, as vagas davam ais;
Semelhavam,
ao longe, as extensas florestas
Fantasmas
ao galope em monstros colossais.
E eu vi
num campo imenso, agreste e desolado,
Imerso no
fulgor diáfano da luz,
Juncando
tristemente o solo ensanguentado
Sinistra
multidão de corpos semi-nus!
Tinha a
morte cruel, em sua orgia louca,
Deposto em
cada fronte um osculo brutal;
E um
irônico riso ainda em muita boca
Se abria,
como a flor fantástica do mal!
E eu vi
corpos gentis de virgens delicadas
Beijando a
fria terra, as mãos hirtas no ar,
Em sagrada
nudez!… Cabeças decepadas!…
Em muito
peito ainda o sangue a borbulhar!…
E sobre a
corrupção das brancas epidermes
Luzentes
de luar e d'esplendor dos céus,
Orgulhosos
passando os triunfantes vermes,
Da santa
formosura os últimos Romeus!
Se tu
minha alma livre ainda hoje conservas
Memória
das visões que amaste com fervor
Aí as tens
agora alimentando as ervas
De novo
dando à terra o que ela deu à flor!
FALA A ORDEM
Pequeno,
d'onde vens cantando a Marselhesa;
Da
barricada infame, ou d'outra vil torpeza?
Que
esplêndido porvir! Do nada apenas sais
Começas a
morder as púrpuras reais
Ó filho
trivial da lívida canalha!…
E, vamos,
deixa ver, guardaste uma navalha,?!
Não tremas
que eu bem vi! que trazes tu na mão?
Intentas
já limar as grades da prisão,
Fazendo cintilar
um ferro contra o sólio
Arcanjo
que adejais nos fumos do petróleo?!…
Mas, vamos
abre a mão: não queiras que eu te dê.
Bandido eu
bem dizia! — a carta do A B C!…
O VELHO CÃO
Soltava
ontem já tarde um velho cão felpudo
Uns
doloridos ais,
Em frente
d'um palácio altivo, belo e mudo,
Cerrado
aos vendavais.
Fazia pena
ouvi-lo, o mísero molosso
Em seu
triste chorar!
Era quase
uma sombra: apenas pele e osso
E um vago,
um doce olhar!…
Eis a
sorte cruel do pobre que não come,
Dos
míseros sem pão!
Em paga
ainda em cima os vai tragando a Fome,
A negra
aparição!
Latia o
cão faminto. O frio era mordente,
Feroz,
quase voraz!
E o pobre
não sabia, em fim, que há muita gente
Que adora
a santa paz.
Ora perto
vivia uma galante rosa,
Etérea,
virginal,
Que tinha
um lindo colo, amava, era nervosa
E a quem
fazia mal,
Aquele
uivar sinistro; a ponto de em desmaios
Pender a
fronte ao chão!
Saíram
pois à rua impávidos lacaios
E foram
dar no cão.
— Há no
mundo um rafeiro, um velho cão esfaimado,
— O povo
sofredor,
Que às
vezes vai ganir, com fome, o seu bocado
Ás portas
d'um senhor.
O resto é
velha história: ocioso é já dizer-vos
O fim que
ela há de ter.
A Ordem,
só d'ouvi-lo, alteram-se-lhe os nervos
E manda-lhe bater!
E manda-lhe bater!
OS PALHAÇOS
Heróis da
gargalhada, ó nobres saltimbancos,
eu gosto de vocês,
porque amo as
expansões dos grandes risos francos
e os gestos de
entremez,
e prezo,
sobretudo, as grandes ironias
das farsas
joviais.
que em visagens
cruéis, imperturbáveis, frias.
à turba
arremessais!
Alegres histriões
dos circos e das praças,
ah, sim, gosto de
vos ver
nas grandes
contorções, a rir, a dizer graças
de o povo
enlouquecer,
ungidos pela luta
heróica, descambada,
de giz e de
carmim,
nas mímicas sem
par, heróis da bofetada,
titãs do
trampolim!
Correi, subi, voai
num turbilhão fantástico
por entre as
saudações
da turba que
festeja o semideus elástico
nas grandes
ascensões,
e no curso veloz,
vertiginoso, aéreo,
fazei por disparar
na face trivial do
mundo egoísta e sério
a gargalhada
alvar!
Depois, mais perto
ainda, a voltear no espaço,
pregai-lhe, se
podeis,
um pontapé
furtivo, ó lívidos palhaços,
luzentes como
reis!
Eu rio sempre, ao
ver aquela majestade,
os trágicos
desdéns
com que nos
divertis, cobertos de alvaiade,
a troco duns
vinténs!
Mas rio ainda mais
dos histriões burgueses,
cobertos de
ouropéis,
que tomam neste
mundo, em longos entremezes,
a sério os seus
papéis.
São eles, almas
vãs, consciências rebocadas,
que enfim merecem
mais
o comentário atroz
das rijas gargalhadas
que às vezes
disparais!
Portanto, é rir, é
rir, hirsutos, grandes, lestos,
nas cômicas
funções,
até fazer morrer,
em desmanchados gestos,
de riso as
multidões!
E eu, que amo as
expansões dos grandes risos francos
e os gestos de
entremez,
deixai-me dizer
isto, ó nobres saltimbancos:
eu gosto de vocês!
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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.
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