sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Guilherme de Azevedo: "5 Poemas"

GRAÇA PÓSTUMA

Depois da tua morte eu hei de ver se arranco,
Numa noite serena, ao teu berço final,
Um produto mimoso; — um grande lírio branco
Da alvura do teu colo ebúrneo e divinal!

Aquela flor suave, ó minha visão histérica,
Debruçada gentil, na taça em que a puser,
Fazer-me-á lembrar a graça cadavérica
Do teu corpo franzino e etéreo de mulher!

E mesmo conterá, de certo, alguma cousa
Do que me traz submisso e prezo ao teu olhar:
— Teu corpo a pouco e pouco irá fugindo à lousa
Depois tornado em lírio à terra há de voltar! —

E em longas noites, nele, eu beberei sozinho,
Sonhando as convulsões d'uns lindos braços nus,
A fragrância que exala a candidez do linho
Em que hoje ondeias leve e onde os meus lábios pus,

— Saudando a boa mãe que faz com que eu te goze
Depois do verme vil teu seio poluir,
Mais pura no frescor de tal metamorfose
Do que eras a cismar, do que eras a sorrir!

Ó minha doce Ofélia! Os rápidos momentos
Da vida, são cruéis mas passam como um som!
Um dia quando em fim dos velhos sedimentos
Teu corpo renascer num lírio imenso e bom,

Talvez que eu durma já também sob os matizes
Das flores, ao sorrir das mil germinações,
Dando um pasto fecundo às tuas sãs raízes
Depois de te sagrar as últimas canções!



OS SONHOS MORTOS

Embora triste a noite, a vagabunda lua
Mais branca do que nunca erguia-se nos céus,
Igual a uma donzela ingênua e toda nua
No leito ajoelhada erguendo a fronte a Deus!

O mar tinha talvez cintilações funestas.
A praia estava fria, as vagas davam ais;
Semelhavam, ao longe, as extensas florestas
Fantasmas ao galope em monstros colossais.

E eu vi num campo imenso, agreste e desolado,
Imerso no fulgor diáfano da luz,
Juncando tristemente o solo ensanguentado
Sinistra multidão de corpos semi-nus!

Tinha a morte cruel, em sua orgia louca,
Deposto em cada fronte um osculo brutal;
E um irônico riso ainda em muita boca
Se abria, como a flor fantástica do mal!

E eu vi corpos gentis de virgens delicadas
Beijando a fria terra, as mãos hirtas no ar,
Em sagrada nudez!… Cabeças decepadas!…
Em muito peito ainda o sangue a borbulhar!…

E sobre a corrupção das brancas epidermes
Luzentes de luar e d'esplendor dos céus,
Orgulhosos passando os triunfantes vermes,
Da santa formosura os últimos Romeus!

Se tu minha alma livre ainda hoje conservas
Memória das visões que amaste com fervor
Aí as tens agora alimentando as ervas
De novo dando à terra o que ela deu à flor!



FALA A ORDEM

Pequeno, d'onde vens cantando a Marselhesa;
Da barricada infame, ou d'outra vil torpeza?

Que esplêndido porvir! Do nada apenas sais
Começas a morder as púrpuras reais
Ó filho trivial da lívida canalha!…
E, vamos, deixa ver, guardaste uma navalha,?!
Não tremas que eu bem vi! que trazes tu na mão?
Intentas já limar as grades da prisão,

Fazendo cintilar um ferro contra o sólio
Arcanjo que adejais nos fumos do petróleo?!…
Mas, vamos abre a mão: não queiras que eu te dê. 
Bandido eu bem dizia! — a carta do A B C!…



O VELHO CÃO

Soltava ontem já tarde um velho cão felpudo
Uns doloridos ais,
Em frente d'um palácio altivo, belo e mudo,
Cerrado aos vendavais.


Fazia pena ouvi-lo, o mísero molosso
Em seu triste chorar!
Era quase uma sombra: apenas pele e osso
E um vago, um doce olhar!…

Eis a sorte cruel do pobre que não come,
Dos míseros sem pão!
Em paga ainda em cima os vai tragando a Fome,
A negra aparição!

Latia o cão faminto. O frio era mordente,
Feroz, quase voraz!
E o pobre não sabia, em fim, que há muita gente
Que adora a santa paz.

Ora perto vivia uma galante rosa,
Etérea, virginal,
Que tinha um lindo colo, amava, era nervosa
E a quem fazia mal,

Aquele uivar sinistro; a ponto de em desmaios
Pender a fronte ao chão!
Saíram pois à rua impávidos lacaios
E foram dar no cão.

— Há no mundo um rafeiro, um velho cão esfaimado,
— O povo sofredor,
Que às vezes vai ganir, com fome, o seu bocado
Ás portas d'um senhor.

O resto é velha história: ocioso é já dizer-vos
O fim que ela há de ter.
A Ordem, só d'ouvi-lo, alteram-se-lhe os nervos
E manda-lhe bater!



OS PALHAÇOS

Heróis da gargalhada, ó nobres saltimbancos,
eu gosto de vocês,
porque amo as expansões dos grandes risos francos
e os gestos de entremez,

e prezo, sobretudo, as grandes ironias
das farsas joviais.
que em visagens cruéis, imperturbáveis, frias.
à turba arremessais!

Alegres histriões dos circos e das praças,
ah, sim, gosto de vos ver
nas grandes contorções, a rir, a dizer graças
de o povo enlouquecer,

ungidos pela luta heróica, descambada,
de giz e de carmim,
nas mímicas sem par, heróis da bofetada,
titãs do trampolim!

Correi, subi, voai num turbilhão fantástico
por entre as saudações
da turba que festeja o semideus elástico
nas grandes ascensões,

e no curso veloz, vertiginoso, aéreo,
fazei por disparar
na face trivial do mundo egoísta e sério
a gargalhada alvar!

Depois, mais perto ainda, a voltear no espaço,
pregai-lhe, se podeis,
um pontapé furtivo, ó lívidos palhaços,
luzentes como reis!

Eu rio sempre, ao ver aquela majestade,
os trágicos desdéns
com que nos divertis, cobertos de alvaiade,
a troco duns vinténs!

Mas rio ainda mais dos histriões burgueses,
cobertos de ouropéis,
que tomam neste mundo, em longos entremezes,
a sério os seus papéis.

São eles, almas vãs, consciências rebocadas,
que enfim merecem mais
o comentário atroz das rijas gargalhadas
que às vezes disparais!

Portanto, é rir, é rir, hirsutos, grandes, lestos,
nas cômicas funções,
até fazer morrer, em desmanchados gestos,
de riso as multidões!

E eu, que amo as expansões dos grandes risos francos
e os gestos de entremez,
deixai-me dizer isto, ó nobres saltimbancos:

eu gosto de vocês!

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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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