segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Francisco Carvalho: "5 Poemas"

A TARDE E O RIO

A tarde molha as asas de águia nas águas do rio,
enquanto sol, albatroz sonolento,
é engolido pela sombra do tigre ou da montanha.

Pombas arrulham docemente nas copas
das árvores. Cigarras de alumínio se despedem do dia.
Aves de rapina se entrelaçam no azul
polido de um verão que está chegando ao fim.

Pássaros de agouro pousam nas cumeeiras das casas.
Morcegos e andorinhas desenham revoadas
nupciais em memória das igrejas brancas dos arrabaldes.

Pastor tange de volta seu rebanho de ovelhas,
ao som de uma flauta que o vento semeia
nas encruzilhadas e ermos onde as sombras se bifurcam.

Lobos uivam à espera da lua banhada de sangue.
É a hora em que os olhos dos afogados

pedem para não morrer.



IMAGEM FRATURADA

Agonia a caminho do imponderável,
somos o problema insolúvel.
Nascer é o começo da utopia.
A felicidade não passa de uma vertigem
dos sentidos.

O ser agônico mal se dá conta
de que a vida fosse uma orgia de fantasmas.
Um jogo de sombras que se bifurcam,
em que até o destino trapaceia.

O ser humano é a imagem fraturada
em cada reflexo do espelho.
A agonia desenha o seu rosto dilacerado
pelas flechas do insólito.

Somos o que não morreu às vésperas
do enterro. O que ovacionou a matéria,
quando passava a caminho da eternidade.



CURVAS E ESQUINAS DO CORPO

Quando ama ou odeia, o corpo é uma esfinge
mutilada pelos abutres do mar.
Pórtico de catedral para as núpcias dos pássaros,
uma galáxia que se move à volta de si mesma.
Afluente da lágrima, jogral da vertigem,
o corpo é uma adaga.

Semeia vestígios de luxúria entre os brolhos das vinhas.
Barco à deriva, o corpo de regresso à infância
de Ulisses. Ainda recorda quando o gameta flutuava
numa bolha de líquido amniótico.
Corpo de pobre por quem o sino não dobra.
Corpo cravejado de pérolas falsas.

Desde a aurora do mito, procura a forma exata
do corpo de delito.
Sósia do meteoro, trapaceia seu desdém de ouro.
Corpo de bailarino, vai à missa de réquiem
pela meretriz assassinada.
Corpo aveludado de borboleta
De vespa trespassada pelas flechas de Vésper.

Corpo de célula sufocado pelas mãos do déspota.
Corpo de Lázaro expulso do túmulo.
Corpo de esfinge polido pelo cristal do vento.
Corpo de primata à deriva da eternidade.
Corpo de chuva e relva seduzido
pelo aroma da cavalgada das éguas.



SONETO DA MORTE ANUNCIADA

Pelo vento que sopra das janelas,
sei que o anjo da morte se aproxima
dos leitos irrigados de morfina,
num cavalo de crinas amarelas.

Sei que os gatos se afogam nas tigelas
e o amor esconde ausências nas retinas.
Sei que o mistério espreita numa esquina
pelo vento que sopra das janelas.

Sei que um pássaro pousa na cornija
de uma igreja esquecida da colina,
numa tarde de nuvens e aquarelas.

Sei que à noite os cavalos da neblina
são fantasmas expulsos da quadriga
pelo vento que sopra das janelas.



OURO PRETO ME VISITA

Não vi as casas de Ouro Preto
nem seus declives e ladeiras,
nem seus pórticos e janelas
coloniais. Nem as varandas
visitadas pelos fantasmas.

Nem escadas de puro cedro
nem volúpias arquitetônicas
nos telhados e nas cornijas.
Vejo a cidade na penumbra
dos desmaios crepusculares.

Vejo-a nas fotos e nas lendas,
nos perfis dos mortos sem máscaras,
nas estrofes de seus poetas.
No sangue que explode as retinas
dos monumentos de seus mártires.

Vejo-a no limo dos sobrados,
na memória dos azulejos
e nos retratos de Marília.
Nos olhos, que já não suplicam
primaveras para as abelhas.

Vejo-a nas fontes que ainda arrulham,
no sangue que jorra das pedras,
nas retinas das esmeraldas.
Olhos verdes que seduziram
Chico Rei com flechas e dardos.

Vejo-a no Paço da Cadeia,
nos Profetas do Aleijadinho,
nas curvas dos anjos barrocos.
Que às vezes passeiam nos adros
ou fazem xixi nos devotos.

Vejo-a no Arraial do Ouro Podre,
nas pinceladas de Athayde.
Nas igrejas e monumentos,
nos museus, na Casa da Ópera
e nos devaneios do gótico.

Sonhei que estava em Ouro Preto
numa sexta-feira de Páscoa.
Choviam cânticos a cântaros.
Corujas rasgavam mortalhas
ao som sinistro das matracas.

Ouro Preto não se desvela,
e nisso imita algumas divas.
Guardam seus dons a sete chaves,
e as relíquias de seus encantos
das emboscadas dos lascivos.

Visitei capelas, igrejas.
Nossa Senhora do Pilar
mais a do Rosário dos Brancos.
Na Casa dos Contos, contei
cem degraus de assombros e espantos.

Tardes de Ouro Preto. No azul
do céu, o azul das turmalinas.
Heras nos muros de outras eras.
Na meia-cana dos chafarizes
bebi do espírito de Minas.

Em Nossa Senhora do Carmo,
ouvi salmos e misereres.
Fui a Casa da Baronesa,
que permutava diamantes
por inconfidências do Alferes.

Ouro Preto ultrapassa o tempo,
além das curvas e das retas.
Está na ausência das paredes,
no barroco das esculturas,
no parapeito das janelas.

Vila Rica foi Vila Pobre,
num passado mais que pretérito.
Patrimônio da Humanidade,
pastoreia a infância de Minas
sob a cavalgada dos séculos.

Ouro Preto pagava com
patacas de sangue à Coroa,
pelo quinto das nossas dívidas.
Ali se plantava a semente
da liberdade e das intrigas.

Cidade que outrora escutava
as serestas da metafísica.
E, sob o luar das candeias,
enfeitiçava as mais bonitas,
herdava o alazão das mais feias.

Cidade dos Inconfidentes,
das pedras que escondem segredos
nas rachaduras das cavernas.
Teus sobrados viram fantasmas
decapitados pelos espelhos.

Viram fantoches de outras eras,
impostores da Monarquia.
Arlequins, talvez foragidos
de alguma ribalta vazia.
E o luar descendo dos morros.

Viram Tiradentes na forca.
Esqueleto aos ventos de abril,
exposto à fúria dos cachorros.
O sangue a jorrar das artérias
das paredes e anjos barrocos.

Ouro Preto, tu me visitas
nos teus espectros e revérberos
que incendeiam minhas retinas.
Loba de mamilos de pedra,
que amamenta os veios de Minas.


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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Julho-Agosto-Setembro 2007 - Ano XIII - Nº 52

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