A TARDE E O RIO
A tarde molha as
asas de águia nas águas do rio,
enquanto sol,
albatroz sonolento,
é engolido pela
sombra do tigre ou da montanha.
Pombas arrulham
docemente nas copas
das árvores.
Cigarras de alumínio se despedem do dia.
Aves de rapina se
entrelaçam no azul
polido de um verão
que está chegando ao fim.
Pássaros de agouro
pousam nas cumeeiras das casas.
Morcegos e
andorinhas desenham revoadas
nupciais em
memória das igrejas brancas dos arrabaldes.
Pastor tange de
volta seu rebanho de ovelhas,
ao som de uma
flauta que o vento semeia
nas encruzilhadas
e ermos onde as sombras se bifurcam.
Lobos uivam à espera
da lua banhada de sangue.
É a hora em que os
olhos dos afogados
pedem para não
morrer.
IMAGEM FRATURADA
Agonia a caminho
do imponderável,
somos o problema
insolúvel.
Nascer é o começo
da utopia.
A felicidade não
passa de uma vertigem
dos sentidos.
O ser agônico mal
se dá conta
de que a vida
fosse uma orgia de fantasmas.
Um jogo de sombras
que se bifurcam,
em que até o
destino trapaceia.
O ser humano é a
imagem fraturada
em cada reflexo do
espelho.
A agonia desenha o
seu rosto dilacerado
pelas flechas do
insólito.
Somos o que não
morreu às vésperas
do enterro. O que
ovacionou a matéria,
quando passava a
caminho da eternidade.
CURVAS E ESQUINAS DO CORPO
Quando ama ou
odeia, o corpo é uma esfinge
mutilada pelos
abutres do mar.
Pórtico de
catedral para as núpcias dos pássaros,
uma galáxia que se
move à volta de si mesma.
Afluente da
lágrima, jogral da vertigem,
o corpo é uma
adaga.
Semeia vestígios
de luxúria entre os brolhos das vinhas.
Barco à deriva, o
corpo de regresso à infância
de Ulisses. Ainda
recorda quando o gameta flutuava
numa bolha de
líquido amniótico.
Corpo de pobre por
quem o sino não dobra.
Corpo cravejado de
pérolas falsas.
Desde a aurora do
mito, procura a forma exata
do corpo de
delito.
Sósia do meteoro,
trapaceia seu desdém de ouro.
Corpo de
bailarino, vai à missa de réquiem
pela meretriz
assassinada.
Corpo aveludado de
borboleta
De vespa
trespassada pelas flechas de Vésper.
Corpo de célula
sufocado pelas mãos do déspota.
Corpo de Lázaro
expulso do túmulo.
Corpo de esfinge
polido pelo cristal do vento.
Corpo de primata à
deriva da eternidade.
Corpo de chuva e
relva seduzido
pelo aroma da
cavalgada das éguas.
SONETO DA MORTE ANUNCIADA
Pelo vento que
sopra das janelas,
sei que o anjo da
morte se aproxima
dos leitos
irrigados de morfina,
num cavalo de
crinas amarelas.
Sei que os gatos
se afogam nas tigelas
e o amor esconde
ausências nas retinas.
Sei que o mistério
espreita numa esquina
pelo vento que
sopra das janelas.
Sei que um pássaro
pousa na cornija
de uma igreja
esquecida da colina,
numa tarde de
nuvens e aquarelas.
Sei que à noite os
cavalos da neblina
são fantasmas
expulsos da quadriga
pelo vento que
sopra das janelas.
OURO PRETO ME VISITA
Não vi as casas de
Ouro Preto
nem seus declives
e ladeiras,
nem seus pórticos
e janelas
coloniais. Nem as
varandas
visitadas pelos
fantasmas.
Nem escadas de
puro cedro
nem volúpias
arquitetônicas
nos telhados e nas
cornijas.
Vejo a cidade na
penumbra
dos desmaios
crepusculares.
Vejo-a nas fotos e
nas lendas,
nos perfis dos
mortos sem máscaras,
nas estrofes de
seus poetas.
No sangue que
explode as retinas
dos monumentos de
seus mártires.
Vejo-a no limo dos
sobrados,
na memória dos
azulejos
e nos retratos de
Marília.
Nos olhos, que já
não suplicam
primaveras para as
abelhas.
Vejo-a nas fontes
que ainda arrulham,
no sangue que
jorra das pedras,
nas retinas das
esmeraldas.
Olhos verdes que
seduziram
Chico Rei com
flechas e dardos.
Vejo-a no Paço da
Cadeia,
nos Profetas do
Aleijadinho,
nas curvas dos
anjos barrocos.
Que às vezes
passeiam nos adros
ou fazem xixi nos
devotos.
Vejo-a no Arraial
do Ouro Podre,
nas pinceladas de
Athayde.
Nas igrejas e
monumentos,
nos museus, na
Casa da Ópera
e nos devaneios do
gótico.
Sonhei que estava
em Ouro Preto
numa sexta-feira
de Páscoa.
Choviam cânticos a
cântaros.
Corujas rasgavam
mortalhas
ao som sinistro
das matracas.
Ouro Preto não se
desvela,
e nisso imita
algumas divas.
Guardam seus dons
a sete chaves,
e as relíquias de
seus encantos
das emboscadas dos
lascivos.
Visitei capelas,
igrejas.
Nossa Senhora do
Pilar
mais a do Rosário
dos Brancos.
Na Casa dos
Contos, contei
cem degraus de
assombros e espantos.
Tardes de Ouro
Preto. No azul
do céu, o azul das
turmalinas.
Heras nos muros de
outras eras.
Na meia-cana dos
chafarizes
bebi do espírito
de Minas.
Em Nossa Senhora
do Carmo,
ouvi salmos e
misereres.
Fui a Casa da
Baronesa,
que permutava
diamantes
por inconfidências
do Alferes.
Ouro Preto
ultrapassa o tempo,
além das curvas e
das retas.
Está na ausência
das paredes,
no barroco das
esculturas,
no parapeito das
janelas.
Vila Rica foi Vila
Pobre,
num passado mais
que pretérito.
Patrimônio da
Humanidade,
pastoreia a
infância de Minas
sob a cavalgada
dos séculos.
Ouro Preto pagava
com
patacas de sangue
à Coroa,
pelo quinto das
nossas dívidas.
Ali se plantava a
semente
da liberdade e das
intrigas.
Cidade que outrora
escutava
as serestas da
metafísica.
E, sob o luar das
candeias,
enfeitiçava as
mais bonitas,
herdava o alazão
das mais feias.
Cidade dos
Inconfidentes,
das pedras que
escondem segredos
nas rachaduras das
cavernas.
Teus sobrados
viram fantasmas
decapitados pelos
espelhos.
Viram fantoches de
outras eras,
impostores da
Monarquia.
Arlequins, talvez
foragidos
de alguma ribalta
vazia.
E o luar descendo
dos morros.
Viram Tiradentes
na forca.
Esqueleto aos
ventos de abril,
exposto à fúria
dos cachorros.
O sangue a jorrar
das artérias
das paredes e
anjos barrocos.
Ouro Preto, tu me
visitas
nos teus espectros
e revérberos
que incendeiam
minhas retinas.
Loba de mamilos de
pedra,
que amamenta os
veios de Minas.
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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Julho-Agosto-Setembro 2007 - Ano XIII - Nº 52
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