segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Izacyl Guimarães Ferreira: "5 Poemas"

ENTRE AS COISAS

As coisas amanhecem claras.
Tão altamente iluminadas,
há nelas uma eternidade
possível e distante, mágica.

Desconhecem o medo, a fé,
um sentimento qualquer, breve
ou persistente, que as revele
vivas, mortais, talvez rebeldes.

As coisas anoitecem frias.
Somem na pátina sombria
a profundeza e a superfície,
a aparente força infinita. 

E permanecem sempre sós
em sua natureza imóvel.
Entretanto seguem velozes
pela imensidão, como nós.

Assim desaparecem, mudas,
longínquas e alheias a tudo,
enquanto nossas almas, nuas,
combatem nas águas da dúvida.



NOTURNO

O instável firmamento
brilhava sobre nós,
perdidos em perguntas.

Tantas estrelas juntas
e nenhuma resposta
ou esclarecimento.

Numa língua estrangeira
talvez nos surpreendesse
a grande explicação.

No entanto aquela esteira
de luz, sem interesse,
corria na amplidão.

Talvez nos caiba a só
beleza do espetáculo,
o cativo fervor.

E nada saiba ou sobre
à palavra do oráculo,
senão propor o amor.

Talvez. Mas nunca é finda
a busca original
de um claro entendimento.

Pesava, pesa ainda
a falta de um sinal
do instável firmamento. 



SENHOR

Há muito tempo venho te escrevendo.
De meus primeiros endereços,
desde o começo,
desde sempre eu te escrevi.
Desde os muitos casarios
– nas alturas, frente ao mar,
de minha terra solar
e de lugares sombrios –
de toda parte venho te escrevendo.

Mesmo sem dizer teu nome
ou se obscuro e cifrado
meu bilhete, meu recado,
sei que sabes que te escrevo.

Gravei palavras nas pedras,
nas ondas e no papel
te celebrando.
Sabias, desde onde e desde quando,
se é quase um livro de horas
o que eu ando te escrevendo.

Entre os tropeços da crença
levantei meu questionário
e a contrapelo é que escrevo
esse espesso breviário.

Quando sozinho protesto
ou me queixo, se confuso
em teu silêncio te acuso,
te acusava, a quem, senão a ti
eu escrevia?

Tamanhas caligrafias,
tamanhas indagações,
já não sei se me perdi
na própria língua
ou se esqueci tua extensa geografia.

Com tanto infinito assunto,
como posso interromper
essa escritura?
  


SINAIS VITAIS
O belo está no belo que já vimos.
Afonso Felix de Sousa

Quando o sonho se esgarça e perde a mágica,
a consciência acorda e assume a máquina.

Se o que se viu não passa de lembrança
do já visto, persiste uma esperança
em recompor o perdido, o esquecido
entre fulgores claros repentinos.

Pois somos isso, nisso confiamos,
no retorno de quanto fomos quando

era o início de tudo em nós, ainda,
uma viagem sem previsto fim.

A beleza dos corpos, a beleza
das coisas, das manhãs todas inteiras,

com suas horas redondas e eternas
dizendo que eram nossas. E eram belas.

A consciência recompõe a mágica
se restam forças a mover a máquina,
para ver outra vez, para outra vez
viver à plena luz do que já fez.

Então há um recomeço em outros termos:
tudo o que tínhamos volta ao que temos,
é o vivido refeito entre palavras,
maquinária de imagens, pensamentos,
na mágica de sonhos que é sem travas,
ao resgatar idades e momentos.

Se o tempo fosse só o que nos mede,
não haveria em nós qualquer remédio
contra os medos e o tédio, se a beleza
nublada se perdesse nessa esteira
de minutos, de sombras e de insônias.

Nenhum remédio, nada que reponha
a beleza que fica na memória.

Esse é um sinal vital maior que as horas
e é o que temos, um saber e um sabor
de natureza a nutrir o que somos.

Esse é um sinal vital à revelia
do tempo e que transforma a noite em dia:
recomposta no sonho e na vigília
a esplêndida memória imita a vida.

Belas, magia e máquina se espelham,
e assim, serenamente adormecemos.

  

PROMENADE

1.
Ouço a grande porta de Kiev
e sem que a veja a imagino.
Vejo as naturezas mortas
nas paredes infindáveis
sem perder os seus aromas.
Cheiro as flores dos jardins
impressionistas e as colho
em ramalhetes de sons.
A clorofila infinita
de Cézanne uma vez mais,
essa Vênus, esse Apolo,
os burgueses de Calais
– meu museu imaginário
e o de Malraux me acompanham
quando fecho minhas pálpebras.
Todas as coisas despertas
nos sentidos da memória
são eternas e imutáveis.
Todas as coisas lembradas
eternizam meus minutos.

2.
La guitarra es um pozo
Con aire em vez de água.
Gerardo Diego

A guitarra de Gerardo Diego
não é azul como aquela de Wallace
Stevens. Mas as duas soam soltas
nas telas de Picasso, Gris e Braque.
Ou soam afinadas em concertos
sobre as mesas floridas dos pintores.
Sem partitura ou mãos que as toquem, dormem.
Curvilínea madeira, uma guitarra
guarda em segredo poços de água e sons,
azuis ou verdes. Seus corpos de fêmeas
saltam das telas e dançam: gitanas
flamengas, carmens. São mulheres, todas,
mas no repouso dos traços, das cores,
as linhas se transformam em palavras.

3.
Aquém ou além da fotografia,
do filme, da cegueira apenas breve
de meu sono, há imagens que se movem
a despeito de mim ou dos passantes.
Partem barcos velozes nas regatas,
as bandeiras ventando pelos mastros
num cais suspenso sobre um mar intacto.

Um casario sobe pela encosta
e são cubos apenas, sem janelas.
A toalha na grama me convida
e cavalos galopam na batalha
em que os corpos inertes dos soldados
sangram nas baionetas já caladas.
Olhares de senhoras e varões
me pedem companhia entre as molduras
como grades sem chaves, me despedem.
Na multidão, manchado de pincéis,
recebo a chuva antiga atravessando
uma Paris molhando meus sapatos.
Na solidão desse museu me perco
e me procuro, tendo só o olhar
que sou, que fui, que me prende e confunde,
na ocupação da realidade oculta
nas camadas secretas das idades.

4.
Se meus olhos falassem,
meus ouvidos ouvissem,
muito conversaríamos,
estes auto-retratos
e eu, os olhos nos olhos:
jovens, velhos Rembrandts,
um e outro Van Gogh,
Portinari e seus óculos.
Levanto meus espelhos
para que possam ver
como eram e são,
quando o tempo se encolhe
e podemos falar
sem pressa, sem temor
aos relógios e às noites
que se acumulam densas
sobre os dias distantes
que nos separam. Mas
agora estamos juntos,
eles e os rostos todos
que me espreitam nas salas,
pois é de auto-retratos
que de um jeito ou de outro
se ocupam nossas tintas,
nossa conversação
em preto e branco, muda.

5.
Entre o que vejo e penso,
entre a pintura feita
e a natureza vista
(ou inventada, outra,
ou nenhuma, mental),
entre olhar e lembrar,
a tela permanece
indiferente e livre.

Assim qualquer poema
disposto numa página,
qualquer mármore ou bronze
numa praça com pombos,
bancos, folhas que caem,
ou esse som no ouvido
sem visível orquestra,
voz humana a meu lado.

Entre uma obra entregue,
o tempo de fazer
e o de receber, há
uma noite, um silêncio.
Há uma espera de troca e entendimento, gozo.
Espera sem relógios,
duração sem medida.

Nas salas dos museus
sussurros se acumulam,
personagens espiam,
objetos envelhecem.
Todo o mundo renasce
à aberta luz do dia,
no espaço entre o que vejo
e meço, penso e digo.


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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Outubro-Novembro-Dezembro 2007 - Ano XIII - Nº 53

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