ENTRE AS COISAS
As coisas
amanhecem claras.
Tão altamente
iluminadas,
há nelas uma
eternidade
possível e
distante, mágica.
Desconhecem o
medo, a fé,
um sentimento
qualquer, breve
ou persistente,
que as revele
vivas, mortais,
talvez rebeldes.
As coisas
anoitecem frias.
Somem na pátina
sombria
a profundeza e a superfície,
a aparente força
infinita.
E permanecem
sempre sós
em sua natureza
imóvel.
Entretanto seguem
velozes
pela imensidão,
como nós.
Assim desaparecem,
mudas,
longínquas e
alheias a tudo,
enquanto nossas
almas, nuas,
combatem nas águas
da dúvida.
NOTURNO
O instável
firmamento
brilhava sobre
nós,
perdidos em
perguntas.
Tantas estrelas
juntas
e nenhuma resposta
ou esclarecimento.
Numa língua
estrangeira
talvez nos
surpreendesse
a grande
explicação.
No entanto aquela
esteira
de luz, sem
interesse,
corria na
amplidão.
Talvez nos caiba a
só
beleza do
espetáculo,
o cativo fervor.
E nada saiba ou
sobre
à palavra do
oráculo,
senão propor o
amor.
Talvez. Mas nunca
é finda
a busca original
de um claro
entendimento.
Pesava, pesa ainda
a falta de um
sinal
do instável
firmamento.
SENHOR
Há muito tempo
venho te escrevendo.
De meus primeiros
endereços,
desde o começo,
desde sempre eu te
escrevi.
Desde os muitos
casarios
– nas alturas,
frente ao mar,
de minha terra
solar
e de lugares
sombrios –
de toda parte
venho te escrevendo.
Mesmo sem dizer
teu nome
ou se obscuro e
cifrado
meu bilhete, meu
recado,
sei que sabes que
te escrevo.
Gravei palavras
nas pedras,
nas ondas e no
papel
te celebrando.
Sabias, desde onde
e desde quando,
se é quase um
livro de horas
o que eu ando te
escrevendo.
Entre os tropeços
da crença
levantei meu
questionário
e a contrapelo é
que escrevo
esse espesso
breviário.
Quando sozinho
protesto
ou me queixo, se
confuso
em teu silêncio te
acuso,
te acusava, a
quem, senão a ti
eu escrevia?
Tamanhas
caligrafias,
tamanhas
indagações,
já não sei se me
perdi
na própria língua
ou se esqueci tua
extensa geografia.
Com tanto infinito
assunto,
como posso
interromper
essa escritura?
SINAIS VITAIS
O belo está no belo que já vimos.
Afonso Felix de
Sousa
Quando o sonho se
esgarça e perde a mágica,
a consciência
acorda e assume a máquina.
Se o que se viu
não passa de lembrança
do já visto,
persiste uma esperança
em recompor o
perdido, o esquecido
entre fulgores
claros repentinos.
Pois somos isso,
nisso confiamos,
no retorno de
quanto fomos quando
era o início de
tudo em nós, ainda,
uma viagem sem
previsto fim.
A beleza dos
corpos, a beleza
das coisas, das
manhãs todas inteiras,
com suas horas
redondas e eternas
dizendo que eram
nossas. E eram belas.
A consciência
recompõe a mágica
se restam forças a
mover a máquina,
para ver outra
vez, para outra vez
viver à plena luz
do que já fez.
Então há um
recomeço em outros termos:
tudo o que
tínhamos volta ao que temos,
é o vivido refeito
entre palavras,
maquinária de
imagens, pensamentos,
na mágica de
sonhos que é sem travas,
ao resgatar idades
e momentos.
Se o tempo fosse
só o que nos mede,
não haveria em nós
qualquer remédio
contra os medos e
o tédio, se a beleza
nublada se
perdesse nessa esteira
de minutos, de
sombras e de insônias.
Nenhum remédio,
nada que reponha
a beleza que fica
na memória.
Esse é um sinal
vital maior que as horas
e é o que temos,
um saber e um sabor
de natureza a
nutrir o que somos.
Esse é um sinal
vital à revelia
do tempo e que
transforma a noite em dia:
recomposta no
sonho e na vigília
a esplêndida
memória imita a vida.
Belas, magia e
máquina se espelham,
e assim,
serenamente adormecemos.
PROMENADE
1.
Ouço a grande
porta de Kiev
e sem que a veja a
imagino.
Vejo as naturezas
mortas
nas paredes
infindáveis
sem perder os seus
aromas.
Cheiro as flores
dos jardins
impressionistas e
as colho
em ramalhetes de
sons.
A clorofila
infinita
de Cézanne uma vez
mais,
essa Vênus, esse
Apolo,
os burgueses de
Calais
– meu museu
imaginário
e o de Malraux me
acompanham
quando fecho
minhas pálpebras.
Todas as coisas
despertas
nos sentidos da
memória
são eternas e
imutáveis.
Todas as coisas
lembradas
eternizam meus
minutos.
2.
La guitarra es um
pozo
Con aire em vez de
água.
Gerardo Diego
A guitarra de
Gerardo Diego
não é azul como
aquela de Wallace
Stevens. Mas as
duas soam soltas
nas telas de
Picasso, Gris e Braque.
Ou soam afinadas
em concertos
sobre as mesas
floridas dos pintores.
Sem partitura ou
mãos que as toquem, dormem.
Curvilínea
madeira, uma guitarra
guarda em segredo
poços de água e sons,
azuis ou verdes.
Seus corpos de fêmeas
saltam das telas e
dançam: gitanas
flamengas,
carmens. São mulheres, todas,
mas no repouso dos
traços, das cores,
as linhas se
transformam em palavras.
3.
Aquém ou além da
fotografia,
do filme, da
cegueira apenas breve
de meu sono, há
imagens que se movem
a despeito de mim
ou dos passantes.
Partem barcos
velozes nas regatas,
as bandeiras
ventando pelos mastros
num cais suspenso
sobre um mar intacto.
Um casario sobe
pela encosta
e são cubos
apenas, sem janelas.
A toalha na grama
me convida
e cavalos galopam
na batalha
em que os corpos
inertes dos soldados
sangram nas
baionetas já caladas.
Olhares de
senhoras e varões
me pedem companhia
entre as molduras
como grades sem
chaves, me despedem.
Na multidão,
manchado de pincéis,
recebo a chuva
antiga atravessando
uma Paris molhando
meus sapatos.
Na solidão desse
museu me perco
e me procuro,
tendo só o olhar
que sou, que fui,
que me prende e confunde,
na ocupação da
realidade oculta
nas camadas
secretas das idades.
4.
Se meus olhos
falassem,
meus ouvidos
ouvissem,
muito
conversaríamos,
estes
auto-retratos
e eu, os olhos nos
olhos:
jovens, velhos
Rembrandts,
um e outro Van
Gogh,
Portinari e seus
óculos.
Levanto meus
espelhos
para que possam
ver
como eram e são,
quando o tempo se
encolhe
e podemos falar
sem pressa, sem
temor
aos relógios e às
noites
que se acumulam
densas
sobre os dias
distantes
que nos separam.
Mas
agora estamos
juntos,
eles e os rostos
todos
que me espreitam
nas salas,
pois é de
auto-retratos
que de um jeito ou
de outro
se ocupam nossas
tintas,
nossa conversação
em preto e branco,
muda.
5.
Entre o que vejo e
penso,
entre a pintura
feita
e a natureza vista
(ou inventada,
outra,
ou nenhuma, mental),
entre olhar e
lembrar,
a tela permanece
indiferente e
livre.
Assim qualquer
poema
disposto numa
página,
qualquer mármore
ou bronze
numa praça com
pombos,
bancos, folhas que
caem,
ou esse som no
ouvido
sem visível
orquestra,
voz humana a meu
lado.
Entre uma obra
entregue,
o tempo de fazer
e o de receber, há
uma noite, um
silêncio.
Há uma espera de
troca e entendimento, gozo.
Espera sem
relógios,
duração sem
medida.
Nas salas dos
museus
sussurros se
acumulam,
personagens
espiam,
objetos
envelhecem.
Todo o mundo
renasce
à aberta luz do
dia,
no espaço entre o
que vejo
e meço, penso e digo.
e meço, penso e digo.
---
Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Outubro-Novembro-Dezembro 2007 - Ano XIII - Nº 53
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