segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Floriano Martins: "5 Poemas"

FULGOR DE NADA

Animal na sagrada sede de sua hora,
espírito que rasga o enigma
e ainda mais intenso outro lhe surge.
Me tocas, mármore que baila,
carne convertida em riso,
na fúria que se desnuda oh deusa.
Em ti a louca loca do absoluto,
fenda que me traga mares e estrelas,
lâmpada no abismo de meu canto.
Ali gozamos dançando enquanto dure
o fogo, o mundo, ritmos de risos que se tocam.
Ainda te ouço morrendo no turbulento abraço do ser,
e rio desamparado.



ENIGMA DO SOL

As tuas lágrimas me acariciam: um dilúvio atávico.
Em nada resulta consultar a folha de infortúnios.
Temos uma ilusão objetiva da existência
e não aprendemos nunca com nossos acertos.
Tu és a semelhança do que cobiças.
Eu te ofertei o meu abandono.
Me deste uma lâmpada viciada em espelhos.
Não vês diferença alguma entre perda e sacrifício.
Deixo a minha roupa à entrada de tua casa.
Tu me recebes nu e nada ali se parece contigo.
Não sei quando volto, mas estou certa do engano:
não andas em mim por onde me reconheço.
  


DILEMA DE EVA

Teu corpo distingue-se sobre o meu
pela diáfana desordem, gemidos flutuantes,
que guardam em si a virtude dos temporais.
Teu corpo imerso em lágrimas vulcânicas
violando os nomes que dedico a seus rostos.
Mitos surpreendidos por escavações.
Já não habitas o sítio impreciso da miséria
humana. Novas palavras escalam teus seios,
fogos disfarçados, mistério relutante. Quando
estás sobre mim, derramas uma verdade
incontida que nutre os provérbios de teu gozo.
E te refazes com urgência, repondo tecidos
e maquiagem, a caminho do esquecimento.
A vida inteira amparada em sua devassidão.

  
A TORTURA DA REFLEXÃO

Precipitas teu olhar sobre meu corpo,
entrelaçando vertigens, salpicando hábitos,
adiando aquele último verso que expande
o que jamais em mim conquistarias.
Não é em mim que teu mundo se esgota.
Nem sou o lastro de tua agonia irremediável.
Tuas mãos soluçam ilusões quando me tocam,
lapidam amores perfeitos pela tarde inteira.
Não há linguagem que não se adie ante a flor
que descanso à margem de minha saia.
Não importa que me confundas com outra:
os teus enganos serão sempre os mesmos.



TUAS NEGRAS GEMAS

Não faço idéia se é noite, vertigem ou silêncio.
Sopra um vazio contínuo, sem que o identifique.
Persiste a catástrofe da memória, a recordar
coisas que nunca viveu. A desossar-me.
Urro selvático do extravio. Perdemos tudo.
Tão sós que sequer percebemos o abandono.
A flor-obsessão se foi desmembrando, gerando
conflitos: pequenos e grandes pomares.
Eu te amei até onde pude estar apenas contigo.


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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Janeiro-Fevereiro-Março 2007 - Ano XIII - Nº 50 (Academia Brasileira de Letras)

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