terça-feira, 24 de novembro de 2015

Fernando da Rocha Peres: "5 Poemas"

1936
Para João, garoto e neto

Minha alma foi soprada
pelos ouvidos e quando nasci
em novembro chovia e ventava.
Lembro de ouvir dizer sempre
de luzes e vozes em sala branca
onde um choro estridente brotou
depois de uma palmada e dor
quando comecei a sensoriar tudo
os sons de palavras e rezarias
aprendidas depois para escreviver
suspiros e poemas do indizível
historietas que todos carregam
ora vejam só vocês que estão a ler
este sopropoeta velho de setenta
e cinco anos vividos desde então
por vontades do Criador das gentes.


 ARANEADA
Para Teresa, menina e neta

Uma aranha
tece
e não esquece
o inicio do fio
infindável.
A brisa passa
e treme a trama
tecida e leve
e preso estou
de olho fixo
no risco aéreo
da arquiteta
atentíssima.
Pronta estará
a redefina
se no laço tinir
o primeiro inseto
prisioneiro.
Caça e comida
debatendo-se
são o sinal
do repasto
agonizante.
Labiríntica cena
para quem vê
e sente prazer
de esperar só
o resultado.
A calma que é
na tardezinha
com aranha operosa
e sua obra
até o chuvisco
rasgar a renda
entrelinhada
de um bicho vencido
ao crepúsculo.


PAISAGEM
Para Paula, mocinha e neta

O vento, ventozinho,
suave, brioso,
traz prazer na pele
de gentes e pelos e penas
dos bichos, e muita poeira
de sujidades que esvoaçam
com as folhas e pólens e cheiros
e beija-flores, leves,
e lágrimas de velhos
nos bancos da varanda
mastigando o futuro, insosso,
que tudo encurta
e chega mais perto
a cada domingo, a morte
nas faces estriadas e secas
de mulher ou de homem
seja estação do ano qualquer
chuvosas ou solaradas,
pois já anoitece
e o tempo brisado retorna
com vaga-lumes intocáveis
que piscam, pisca, piscando
para encanto da meninada
e adolescentes que tagarelam
de baixo das árvores sem poda
restantes e enluaradas copas.
Um poeta que sonha adiante
fixa tudo na memória presente
com palavras de muito guardadas.


 QUESTÃO

Que hão de dizer
de mim, Cesário, depois
que você chegou de longa
e inesperada, antiga
viagem transatlântica?

A casa é sua,
o quintal também.
Há verde e vento e sol
esperando o poeta na Bahia,
em Pedras do Rio.

Sou um colega, assim,
neste século de merda
que inicia o nada. Nem
mesmo os mistérios das mulheres
são iguais ao cálido seio, velado,
carnosas coisas inconsabidas.


CARNAVALENDO
Para Caetano Veloso

Na praça a coisa
caetanave:
rampante na multidão.
No som o trino
eletrofante,
e a voz no ouvido
conduz os saltos
do povaréu.
Profana musa carnavalina
abençoai, (amor) talhada
a carne tenra
a boca terna
as mãos mulatas
de Durvalina,
as coxas negras
de Josinete
a nuca branca
de Maria das Dores.
E a quarta-feira
de cruz na testa
(se ainda ha padres!)
refaz o mundo
no seu lugar.
Só na Bahia
(misericordia!)
começa tudo
no próximo ensaio
da Timbalada
de Carlos Brown.

---
Fonte:
REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA, nº 51, 2013

Nenhum comentário:

Postar um comentário