quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Faustino Xavier de Novais: "5 Poemas"

EMBIRRAÇÃO

A balda alexandrina é poço imenso e fundo,
Onde poetas mil, flagelo deste mundo,
Patinham sem parar, chamando lá por mim.
Não morrerão, se um verso, estiradinho assim,
Da beira for do poço, extenso como ele é,
Levar-lhes grosso anzol; então eu tenho fé
Que volte um afogado, á luz da mocidade,
A ver no mundo seco a seca realidade.

Por eles, e por mim, receio, caro amigo;
Permite o desabafo aqui, a sós contigo,
Que á moda fazer guerra, eu sei quanto é fatal;
Nem vence o positivo o frívolo ideal;
Despótica em seu mando, é sempre fátua e vã,
E até da vã loucura a moda é prima-irmã:
Mas quando venha o senso erguer-lhe os densos véus,
Do verso alexandrino ha de livrar-nos Deus.

Deus quando abre ao poeta ás portas desta vida,
Não lhe depara o gozo e a gloria apetecida;
E o triste, se morreu, deixando mal escritas
Em verso alexandrino histórias infinitas,
Vai ter lá n'outra vida insípido desterro,
Se Deus, por compaixão, não dá perdão ao erro;
Fechado em quarto escuro, á noite não tem luz,
E se é cá do meu gosto o guarda que o conduz,
Debalde, imerso em pranto, implora o livramento;
Não torna a ser, aqui, das Musas o tormento;
Castigo alexandrino, eterna solidão,
Terá lá no desterro, em premio da ilusão;
Verá queimar, á noite, as rosas esfolhadas,
Que a moda lhe ofertara, e trouxe tão cuidadas,
E ao pé do fogo intenso, ardendo em cruas dores,
Verá que versos tais são galhos, não dão flores;
Que, lendo-os a pedido, a criatura santa,
A paciência lhe foge, a fé se lhe quebranta,
Se vai dum verso ao fim; depois... treme... vacila...
Dormindo, cai no chão; mais tarde, já tranquila,
Sonha com verso-verso, e as ilusões floridas,
Risonhas, vem mostrar-lhe as largas avenidas
Que o longo verso-prosa oculta, do porvir!
Sonhando, ao menos, pode amar, gozar, sentir,
Que um sono alexandrino a deixa ali em paz,
Dormir... dormir... dormir... erguer-se, enfim, vivaz,
Bradando: “Clorofórmio! O gênio que te pôs,;
A palma cede ao metro esguio, teu algoz!”

E aspiras, vate, assim, da gloria ao ideal?
Triste e funesto afã!... tentativa fatal!
Nesta sede de luz, nesta fome d'amor,
O poeta corre a estrela, á brisa, ao mar, á flor;
Quer ver-lhe a luz na luz da estreita peregrina,
Quer-lhe o aroma sentir na rosa da campina,
Na brisa o doce alento, a voz na voz do mar;
Ó inútil esforço! Ó ímprobo lutar!
Em vez da luz, do aroma, ou do alento, ou da voz,
O verso alexandrino, o impassível algoz!...

Não cantas a tristeza, e menos a ventura;
Que em vez do sabiá gemendo na espessura,
Imitarás, no canto, o grilo atrás do lar;
Mas desse estreito asilo, escuro e recatado,
Alegre hás de fugir, que erguendo altivo brado,
A lírica harmonia ha de ir-te despertar!

Verás de novo aberta a copiosa fonte!
Da poesia verás tão lúcido o horizonte,
Que a mente não calcula, e onde se perde o olhar,
Que nas asas do gênio, a voar pelo espaço,
Dá perna sacudindo o alexandrino laço,
Hás de a mão bendizer que o soube desatar.

Do precipício foge, e segue a luz secreta,
Essa estrela polar dos sonhos do poeta;
Mas, n'outro verso, amigo, onde ao mago ideal
A musica se ligue, o senso e a verdade;
— N'um destes vai-se, a ler, da vida a imensidade
Da sílaba primeira á sílaba final!

Meu Deus! Esta existência é transitória e passa;
Se fraco fui aqui, pecando por desgraça;
Se já não tenho jus ao vosso puro amor;
Se nem da salvação nutrir posso a esperança,
Quero em chamas arder, sofrer toda a provança
— Ler verso alexandrino... Oh! isso não, Senhor


 
 
INTRODUÇÃO DO BARDO

Eis aí mais um jornal
De versos, á luz do dia!
E ninguém tome isto a mal;
Haja, ao menos, de poesia
Abundancia em Portugal.

Esses vates, escolhidos,
Que n’esta empresa afanosa
Se acham, comigo, envolvidos,
Pela lira sonorosa
Se tornaram conhecidos.

Foi isso que me excitou
Leda esperança, e se espero
Vir a ser o que não sou,
Por tal caminho só quero
Chegar onde alguém chegou.

Não vem de tais intenções
Ao meu nome algum desdouro;
Também tenho pretensões
A c’roas, se não de louro,
Ao menos, de dez tostões.



A VESPA

Homens loucos! desgraçados,
Que em liberdade falais!
Viveis todos enganados;
Livre sou eu – ninguém mais!
Por todo o mundo girando
Me vereis sempre, voando,
Pica-aqui, pica-acolá;
Enquanto que algum ingrato,
Com a sola do sapato,
Crua morte me não dá!

Vós, ó homens, quantas vezes,
Malvados no coração,
Sois na aparência corteses,
Pra ocultardes a traição!...
Infâmia! cruel engano!
Eu – se em volta dum magano
Dou três giros, sem parar,
É que o julgo puro e honrado;
Porém se o creio culpado
Hei de o por força picar.

Cuidareis vós que algum tolo,
De muitos que a gente vê –
Que não levam muito bolo
Por não haver quem lhos dê –
Algum parvo d’excelência,

Por vergonhosa influência,
Pode embotar-me o ferrão?
E, embora seja um maluco
Donde eu possa tirar suco,
Há de escapar-me?... pois não!..

Quando pilho um desses nobres,
Ricos só d’áureo metal;
Mas d’espírito tão pobres
Que não possuem real;
Não lhe saio do costado:
Sei que é trabalho baldado,
Porque a pele dura tem,
Mas eu fico satisfeita,
Que o meu ferrão só respeita
A virtude – mais ninguém!

Pois quando encontro uma dama
Que literata quer ser,
E por fim bespa me chama,
Sem disso a causa saber?!...
Não só então a não poupo,
Mas sinto não ter um choupo
,
Do meu ferrão em lugar;
Se quer desculpa das faltas,
Não se meta em danças altas,
Entretenha-se a fiar.

E há tantas dessas patetas,
Sempre filadas ao b,
E que tentam ser poetas,
Sem saberem o – a – b – c – !
Tolas! nas horas perdidas,
Pegai nas FOLHAS CAÍDAS,
Boa lição achareis!
E se um conselho tão rico
Desprezais... então... eu pico
E depois, não vos queixeis.

Quando encontro um rapazinho
Que se diz senhor doutor,
E anda muito encanadinho,
Deitando grande fedor;
E que inda, além do mau cheiro,
É nas leis tão estrangeiro,
Ou inda mais que um bedel;
Destes... se posso apanhá-los,
Que prazer sinto em picá-los!
São docinhos como mel!

Mesmo o médico homeopata,
Ou aquele que o não é;
Raspailista ou alopata,
Que nenhum pra mim tem fé;
Não fogem à minha agulha!
Não... que todos têm borbulha
,
Onde se espete o ferrão;
Embora se fiquem rindo,
Às picadas resistindo,
Tão duros como um barão!

O poeta que juntando,
Brisas, fadas e condões
Vai tudo em linha formando
Com outros tais palavrões;
Esse irrita, coitadinho,
As iras cá do bichinho,
Que só aos tolos quer mal!
Fuja, pois, quem tem o sestro,
Quando não pico-lhe o estro
Com picadela mortal.

Pra o gordo comerciante,
Que fidalgo exige ser;
E se torna um traficante,
Sem disso precisão ter;
E depois se finge beato
E nos mostra o seu retrato
Em todos os hospitais,
Meu ferrão não vale nada;
Para esse – espora – e aguilhada!
E não digam que é demais! –

Macho ou fêmea, velho ou novo,
Feio ou belo, sábio ou não,
Ou seja nobre, ou do povo,
Chega a todos meu ferrão:
Se mais do que isto desejas,
Mesmo em ti – quem quiser que sejas –
Hei de ferrar-te, leitor!
Mas suspende o teu juízo!
Que me entendas é preciso;
Sou Vespa – não ferrador –!



O VENTO LESTE

Um dia, em que o vento leste
Sibilava com furor,
A revolta em Rilhafoles
Ao mundo causava horror.

Um, soprando furibundo,
E correndo a casa inteira,
Gritava, com voz roufenha,
Ai que brisa tão fagueira!

Fitando os olhos no teto,
E pras moscas apontando,
Vinde ver – outro dizia –
As estrelas cintilando!

Outro, na cama estendido,
Alto bradava: “ó rapaz!”
Fecha a janela! – estou morto!
Só da campa quero a paz!

Dançando como um possesso,
Um bradava com furor:
Oh caramba! – Eu vim ao mundo
Pra ser vítima da dor!

Nisto ao longe orneia um burro!
Diz um, cheio de paixão:
Eis a voz meiga e sentida
Que me fala ao coração!

Um, pegando num bacio,
Diz, com voz sentimental:
Deixa-me depor um beijo
Nos teus lábios de coral!

Outro arreganhando a boca,
Dizia: olhem cá para mim!
Vejam quantos anos tenho,
Nestes dentes de marfim!

Em pelo, sob uma colcha,
Outro de bruços dormia,
Quando diz um, descobrindo-o:
Surge, ó astro da poesia!

Um, vendo outro com um vaso,
Diz: – não leves ao saguão:
Deita aqui nos seios d’alma,
No fundo do coração!

E vindo-lhe um grosso escarro
A um olho, diz ele agora:
Oh! Como é vivificante
O doce orvalho d’aurora!

E juntos, cada um dos doudos
Solta a própria inspiração,
Espalhando em toda a casa
Alarido e confusão!

Zé Povo, que era o porteiro,
Seu lugar deixa, espantado,
E correndo à enfermaria
Exclama, todo pasmado:

“Oh que gênios! – que talentos
Tem Portugal produzido!
Que pensamentos sublimes
Hoje tenho aqui ouvido!”

E a porta aberta pilhando
Fogem todos os patetas!
– Desde então, por toda a parte
Ninguém vê senão poetas! –



INSTRUÇÕES DUM BARÃO NOVO, A UM CRIADO VELHO
Ó João!... anda cá, quero falar-te,
Pra ensinar-te a viver d’hoje em diante;
E nada tens depois pra desculpar-te,
Se um dia eu te chamar tolo ou tratante!
Ora olha se escutas bem!
Hein?...

No modo de tratar é mister que andes
Com mais delicadeza, e com cuidado:
Olha que já não sou Sê Zé Fernandes,
Como sempre até’qui me tens chamado!
Se não és homem capaz...
Zás!...

E não te queixes! – graças aos sob’ranos,
Sou hoje Sê Barão de cascas d’alhos:
Já servi, como tu – e há poucos anos
Que pra sempre deixei esses trabalhos! –
Inda tu serás barão,
João!

E não te rias! – olha que o dinheiro
É capaz de fazer virar-se o mundo!
Não hás de ser barão ou conselheiro,
Só porque outrora foi carreiro imundo
Teu pai ou teu avô?...
Bô!...

Não chames a tua ama – Sêra Aninhas,
Que ela agora é também – Sê Baronesa;
Se vier a Maria das Soquinhas,
Ou outra minha irmã, Ana Teresa,
“’Stá cá o meu irmão?”
– Não! –

Que não saiba ninguém que essas mulheres
São irmãs dum fidalgo tão distinto;
E previne-as tu lá, como puderes,
Que ouvir delas um – tu – já não consinto!
Que elas o não saibam já,
Vá!

Carreiros todos são os meus parentes,
E não sabem tratar com gente nobre;
Mas quando traga algum roupas decentes,
E tu vejas que à porta se descobre,
E – “O sê Barão ‘stá cá?”
– ‘Stá! –

Sempre à porta estarás – e tem paciência,
Que para outros serviços te não chamo:
Darás a toda a gente uma excelência,
Pra que saibam, assim, que a tem teu amo;
E se algum se rir de mau,
Pau!...

E quando no portal juntos estejam
À espera de teu amo, alguns sujeitos;
Embora malcriados eles sejam,
E conversem, notando-me defeitos,
Tu, como quem não ouviu,
Siu!...

Inda mesmo que algum mais atrevido
Diga que rico sou por ser tratante,
Que sou por grande parvo conhecido,
E, por minha conduta degradante,
Na nobreza um labéu,
Chéu!...

Não te esqueças, João, do que te digo,
Nem faltes ao programa um só momento;
Bem vês que hoje um Barão é grande amigo!
E atende a que o teu regulamento,
Sem falta começará
Já!

Se um vosmecê me dás, ou à tua ama,
Tomando contra ti, por mariola,
Vingança que esse crime atroz reclama,
Fecho-te... lanço mão duma pistola,
E sem ter pesar algum,

Pum!...
---
Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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