quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Delfim Guimarães: "5 Poemas"

TRADUÇÕES DE CHARLES BAUDELAIRE

A BELEZA

De um sonho escultural tenho a beleza rara,
E o meu seio, — jardim onde cultivo a dor,
Faz despertar no Poeta um vivo e intenso amor,
Com a eterna mudez do marmor' de Carrara

Sou esfinge subtil no Azul a dominar,
Da brancura do cisne e com a neve fria;
Detesto o movimento, e estremeço a harmonia;
Nunca soube o que é rir, nem sei o que é chorar.

O Poeta, se me vê nas atitudes fátuas
Que pareço copiar das mais nobres estátuas,
Consome noite e dia em estudos ingentes..

Tenho, p'ra fascinar o meu dócil amante,
Espelhos de cristal, que tornaram deslumbrante
A própria imperfeição: — os meus olhos ardentes!



O AZAR

Com peso tal, não me ajeito;
Dá-me, Sísifo, vigor!
Embora eu tenha valor,
A Arte é larga e o Tempo Estreito.

Longe dos mortos lembrados,
A um obscuro cemitério,
Minh'alma , tambor funéreo,
Vai rufar trechos magoados.

— Há muitas jóias ocultas
Na terra fria, sepulturas
Onde não chega o alvião;

Muita flor exala a medo
Seus perfumes no degredo
Da profunda solidão



A MUSA ENFERMA

Ó minha musa, então! que tens tu, meu amor?
Que descorada estás! No teu olhar sombrio
Passam fulgurações de loucura e terror;
Percorre-te a epiderme em fogo um suor frio.

Esverdeado gnomo ou duende tentador,
Em teu corpo infiltrou, acaso, um amavio?
Foi algum sonho mal, visão cheia de terror,
Que assim te magoou o teu olhar macio?

Eu quisera que tu, saudável e contente.
Só nobres idéias abrigasses na mente,
E que o sangue cristão, ritmado, te pulsara

Como do silabálirio antigo os sons variados,
Onde reinam, o par, os deuses decantados;
Febo, pai das canções, e Pã — senhor da seara!



O IDEAL

Nunca poderá ser pálida bonequinha,
Produto sem frescor qual manequim de molas,
Pés para borzeguins, dedos p'ra castanholas,
Que há de satisfazer almas como esta minha.

Eu deixo a Gavarni, poeta de enfermaria,
Seu rebanho gentil de belezas cloróticas,
Porque nunca encontrei n'essas plantes exóticas
A rubra flor que anhela a minha fantasia.

Meu torvo coração, na angústia que o oprime,
Sonha Lady Macbeth, alma fadada ao crime,
Pesadelo infernal que um Ésquilo criou;

E contigo também, ó Noite grandiosa,
Filha de Miguel-Anjo, esfinge misteriosa,
Sereia colossal que algum Titã gerou!



A MÁSCARA

Contempla esse perfil de graças florentinas;
Na sóbria ondulação do corpo musculoso
Excedem Força e Proporção, irmãs divinas.
Essa mulher, fração de um ser miraculoso,
Divinamente forte, amavelmente pobre,
Criada foi para no leito arder em gozo,
Saciando os ócios de um pontífice ou de um nobre.

- Repara-lhe o sorriso fino e voluptuoso
onde a vaidade aflora e em êxtase perdura;
Esse lânguido olhar oblíquo e desdenhoso,
Esse rosto sutil, na gaze da moldura,
Cujos traços nos dizem com ar vitorioso:
"A Volúpia me chama e o Amor cinge-me a testa!"
Ao ser que esplende assim com lúbrica realeza
Vê que encanto febril a formosura empresta!
Chega mais próximo e circunda-lhe a beleza.

Ó que blasfêmia da arte! Ó que assombro fatal!
A divina mulher, que ao prazer nos enlaça,
Lá no alto se transmuda em monstro bifrontal!

- Não! É uma máscara, uma sórdida trapaça,
Essa face torcida e de esquisito aspecto,
E, repara, também crispada ferozmente,
A cabeça concreta, o rosto circunspecto
Oculto por detrás do semblante que mente.
Ó mísera beleza! O magnífico rio
De teu pranto deságua ao pá de meus abrolhos;
Teu embuste me embriaga, e minha alma sacio
Nessas ondas que a Dor faz jorrar de teus olhos!

Mas por que chora enfim a beleza absoluta
Que a seus pés tem o ser humano submetido,
Que misterioso mal lhe rói o flanco em luta?

- Ela chora, insensata, por haver vivido!
E por viver ainda! E o que ela mais deplora,
O que a faz ajoelhar-se em frêmito feroz,
É que amanhã há de estar viva como agora!

Amanhã e depois e sempre! - como nós!



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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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