sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Cláudio Portella: "5 Poemas"

PAPO-CABEÇA OU UMA VEZ A CADA QUATRO ANOS

O barulho da britadeira esfolando o asfalto,
estardalhaça minha cabeça.
Já tão pesada com a consciência do mundo.
Escrupulosamente vasculhada à caça de lucidez.
E eu que vivo a pensar,
andando na rua,
tomando um ônibus,
explorando meu corpo
e dinamitando minha cabeça.
Eu que vivo sonhando com noites de autógrafos,
e um bom papo-cabeça num bar.
Mas vêm as trevas e carregam-me
para longe, longe dos sonhos
e perto da vidinha comum.
Da mesma comida.
Das mesmas roupas.
Dos mesmos preconceitos.
Não! Não quero.
Chega da palavra não
pronunciada no ouvido,
feito um tapa no pé-da-orelha.
O que quero é a liberdade plena,
a liberdade conquistada,
roubada à força,
arrancada de dentro das cabeças
e repassada para a minha.
Minha cabeça-chata.
Que só reclama,
porque necessita urgentemente
encontrar um bom papo-cabeça
para florir.



VIVER É APRENDER A IR EMBORA

Sempre achei que devesse dar
o adeus aos meus amantes
com o requinte do
final de “Casablanca”
Mas só consigo
terminar em botequins,
nas mesas, ao alvorecer
bêbada
cabelo desgrenhado
até nunca mais
Foi maravilhoso viver com você
Adeus
E no dia seguinte
eu ligava aflita, desesperançada
quero vê-lo
preciso
Hoje à noite
no mesmo boteco
e novamente a aurora
o teor alcoólico
os cabelos fazendo festa
e mais um adeus
um exercício por fazer
um novo copo
e minha cabeça falando ao
meu coração
adeus, adeus, adeus...
Mas ele é burro feito uma pedra
Até nunca mais
nunca mais
Mais!


O DESINTERESSE DE FRANCIS PONGE

Toda vez que minha poesia
não arrebanha um prêmio
num concurso literário
tenho a confirmação de continuar
no caminho certo
Minha poesia é elaborada justamente
para não ganhar concursos
Feita de encomenda para ser o dissídio
do sentimentalismo humano
Ela é a palavra pelo avesso
A carta na manga do jogador de pôquer
E ela, não busca senão, ela mesma
É ela jogando paciência na beira do mar
Enquanto o furacão, aproxima-se, mais e mais
Até atingir o jogador e arremessá-lo às rochas
Deixando as cartas na areia da praia, impecavelmente imóveis



A FORMA DE TIRAR O CD E PÔR O VINIL

Tinha palavras lindas para o réveillon
pretendia juntar um a
um eme um ó e um erre
destilar poesia
e tomar um porre dela
Embriagar-me de alegria
da sua falsa alegria
Delicadeza demais é hipocrisia
Mas você me recebeu tão bem
que não atinei o que podia ou não podia
e não sabia onde colocar as mãos, as pernas...
Agora você me fala numa língua que desconheço
Desconheço mas boto fé
e lhe ofereço um café
uma água
e tudo que posso
nessa paisagem surreal
onde saboreio um fumo
e tomo um café forte e doce
pois a lua transita em libra
e preciso permanecer acordado
para não sucumbir à sua ira



CHOQUE DE CHUVEIRO ELÉTRICO

Não consigo ter certeza se quando digo:
algo pron. indef. 1. Alguma coisa.
Estou sendo claro ou esse algo está sendo entendido.
por adv. 2. Um tanto, um pouco.
E vice-versa.
As palavras não me dão paz.
Digo-as na frente de todos,
dos falsos, dos verdadeiros.
Desnudo-me delas e entro d’baixo do chuveiro elétrico,
sem nenhuma certeza de que o que falo
é realmente o que deveria falar na hora certa.
Ou se a hora é certa e o falar não.
A impressão que tenho – já que nunca se tem certeza de algo –
é que há algo a dizer.

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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VII - Janeiro-Fevereiro-Março 2010 - Ano XVI - Nº 62 - (Academia Brasileira de Letras - ABL)

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