LUNALVA
Se quiserem saber
quem sou
- Não sei quem sou
Só sei que em mim
A sombra e a luz
São vultos
Que se buscam e se
amam
Loucamente
Se quiserem saber
do meu destino
- Não sei do meu
destino
- Não sei do meu
nome
Só sei daquela
sede
Imensa sede
Que ainda não foi
saciada
Se quiserem saber
donde venho
- Não sei donde
venho
Talvez venha do
vento
Do deserto
Do mar
Ou do fundo das
madrugadas
Não
Não me amem tão
depressa
"Não me
compreendam tão depressa"
Não me julguem tão
fácil
Por favor
Não me julguem tão
mesquinho
Tão cotidiano
O pão que trago
comigo
- Não é pão
É fogo
O vinho que trago
comigo
- Não é vinho
É sangue
E eu vos afirmo
- Todos hão de
beber
Do Fogo e do
Sangue
APREENSÃO
Procederam a
apreensão
dos instrumentos
seguintes,
encontrados juntos
ao réu.
O chapéu
e a velha máscara,
que se gruda
contra a cara,
ruga.
As idéias, ostras
na garrafa, impassíveis
sob
a aba.
O casaco e a
camisa,
a vendarem-lhe o
peito,
catapulta de
pássaros,
onde o inferno
late, uníssono.
Os livros,
com moscardos
sobre a borda.
Neles vagam
javalis,
presos à cauda.
E, por fim,
os orifícios dessa
fé,
aguçada,
calcinada,
mas em pé.
NO TRIBUNAL
Eu e o tribunal,
e sua fria mudez.
O juiz no centro e
no fim,
o rosto girando em
mim,
farândola.
Vim, com a escura
coragem,
de um réu antigo e
selvagem.
O que me prendeu,
lutou comigo e
venceu.
Vacilava em me
reter,
mas eu que me
entregava,
por saber que
minha chaga
estava exposta na
lei.
Giram as mãos
e os pés atados. O
juiz
é um vulto que eu
mesmo fiz
com meus esboços.
O juiz
no centro, no fim,
no tribunal onde
vou,
no tribunal donde
vim.
E assim me
condenei
a permanecer aqui.
DO TRATO COM A MORTE
Sempre tratei a
morte
como toira pesada.
sempre tratei a
morte
na lavrada.
sempre tratei a
morte
como um odre.
À vida, a morte me
trata
com a cautelosa
pata.
II
O morto
como um móvel,
na sala, de perto,
conformado e justo
no bote, coisa
entre coisas.
Seu rosto
pendurado
no corpo, engaste,
disciplina férrea
do tronco, ave
empalhada no
pouso.
Sempre tratei a
morte como toira pesada.
III
O morto
com seus navios
atracados por
estrago;
desprovido de
companhia
ou casas, anódino,
e que não finge.
no cargo.
O morto
e as ânsias
entupidas na
laringe,
moscas.
O morto
e a hortaliça no
estômago,
ao reverso de tudo
sem trajeto ou
porto.
Sempre tratei a
morte
na lavrada.
IV
O morto e seu
motor paralisado,
com ferrugem nas
correias e peças,
mofo nas hélices.
O morto, troféu
sem dono,
dentro do ar se
infiltra
e se põe sob a
tampa
do acontecido.
Tudo na pele
envidra
e o regato de sentidos
ali, não vinga.
Forço-o
como quem arromba
a porta
de um prédio em
cinzas.
Sempre tratei a
morte
como um odre.
À vida, a morte me
trata
com a cautelosa
pata.
A PAZ
Nunca terás
a paz.
Por mais que a
busques,
com ou sem funcho,
brota o quintal.
A paz palmeira
cresce por trás
de uma trincheira.
Pobre de ti
que a procuras.
Bebes o ódio
na tua cuia.
Comes o ódio,
bolo em fatias.
Quem te visita?
O ódio sempre,
adulterino,
bichado dentro:
flor, passarinho.
Palmilhas tantos
recintos,
edifícios,
labirintos.
Só a paz não te
acompanha.
A paz não gera teu
filho
e se corrói com
tua fama,
com teus talhares,
domingos.
Buscas o que te
busca.
Escutas a lamúria,
sem telégrafo,
dos que a esposam,
viúva.
Nunca terás a paz
nos sótãos do
tempo,
sob o lençol do
sol,
amada escura.
Renascendo,
vivendo,
castidade dura,
nem o amor te dará
o seu intento.
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