ALFORRIA
Digo sempre à
minha sombra:
anda, por favor
desgruda,
mas ela surda,
xifópaga
não pensa em me
abandonar.
Sol a pino ou à
socapa
de nuvens de
chumbo e chuva
amável desaparece
em manifesta
clemência.
Algoz me segue e
persegue
no longo correr
das horas
laçando-me em sua
corda.
Eu, a pobre
encarcerada.
Por fim, jogou-me
no chão
mostrando-me a
horizontal:
vai, deita-te,
dorme ou morre
e serás livre de
vez
DECLARAÇÃO DE AMOR
Para Giles
Os outros não
sabem.
Convictos da
ausência
de teus sinais
aparentes
pensam: partiste
de vez.
Mas eu que aprendi
a
sentir além dos
sentidos
contesto o falso
vazio
do vasto lado de
fora.
Sei que permaneces
dentro
de mim recolhido
em
devaneio e
memória.
Sei que só irás
embora
junto comigo, na
hora
do indefinido
adeus.
SONHANDO PARA TRÁS
Se pelo imenso
mundo o pai e a mãe
nunca se houvessem
um dia encontrado
nem atingido o
êxtase carnal
se por acaso um
deles fosse estéril
ou o feto afetado
em doença fatal
ou na hora do
parto viesse a ocorrer
um triste
enforcamento umbilical
onde eu, que
confrontei tantos perigos
– o precipício do
nada beirando –
me encontraria
agora senão no limbo
perdida meio a
múltiplas hipóteses
anônimas anêmicas
e vagas
dormitando em
latência infinita
sonho absurdo, voo
viúvo de asas?
TATUADA DE SOMBRAS
Menina busco o pai
nos campos da
insônia.
Subo em alto
balanço
roçando as nuvens
e nunca o alcanço.
Corro atrás do
filho
desaparecido
que surge veloz
ao volante e a luz
do farol me
derruba.
Vou atrás do amado
por estrada e rua.
Esquadrinho a casa
farejando à toa
seu aroma e
rastros.
Deus, onde esses
vultos?
Tatuada de sombras
vestida de luto
persigo fantasmas
no vazio absoluto.
NO UMBIGO DO RIO
Inocente fui pela
aragem da manhã
colher flores
selvagens, dessas miúdas
de tufos baixos e
corolas brancas
dessas que trocam
sem problema
o chão dos campos
por jarros na sala
até ficarem
cinzentas, cobertas de pó.
Assim me extraviei
entre moitas
atrás das tais
sempre-vivas-do-mato ...
Ao sair do sol
entrei num túnel de galhos
que levava à
corrente e à pequena praia
de areias alvas
como macaxeiras nuas.
Daí entrei num
banho de águas castanhas
anoitecendo cada
vez mais escuras
e logo me senti
envolvida num abraço
que me puxava ao
fundo, como se houvesse
alguma armadilha
de peixe submersa
meus pés tentando
em vão tocar o chão,
o grito quando eu
vinha à tona, sumia
abafado no gorgolejo
da correnteza,
e o caudal sempre
me enrolando brutal
sem que eu pudesse
me desvencilhar.
Pensei, em vez de
flores quase eternas
vou colher agora a
flor da minha morte
no olho deste
abismo, no umbigo do rio.
Então deu-se o
milagre! Um anjo, saído
do verde ou do
céu, me salvou das águas.
Tudo isso
aconteceu há meio século
e a paisagem de
tão antiga evaporou-se.
Aqui estou vestida
com a poeira do tempo
irmã das flores
que buscava em meu passeio.
---
Fonte:
Revista Brasileira: Fase VIII - Janeiro-Fevereiro-Março: 2015 - Ano IV - Nº 82
Fonte:
Revista Brasileira: Fase VIII - Janeiro-Fevereiro-Março: 2015 - Ano IV - Nº 82
Nenhum comentário:
Postar um comentário