quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Astrid Cabral: "5 Poemas"

ALFORRIA

Digo sempre à minha sombra:
anda, por favor desgruda,
mas ela surda, xifópaga
não pensa em me abandonar.

Sol a pino ou à socapa
de nuvens de chumbo e chuva
amável desaparece
em manifesta clemência.

Algoz me segue e persegue
no longo correr das horas
laçando-me em sua corda.
Eu, a pobre encarcerada.

Por fim, jogou-me no chão
mostrando-me a horizontal:
vai, deita-te, dorme ou morre
e serás livre de vez


DECLARAÇÃO DE AMOR
Para Giles

Os outros não sabem.
Convictos da ausência
de teus sinais aparentes
pensam: partiste de vez.

Mas eu que aprendi a
sentir além dos sentidos
contesto o falso vazio
do vasto lado de fora.

Sei que permaneces dentro
de mim recolhido em
devaneio e memória.

Sei que só irás embora
junto comigo, na hora
do indefinido adeus.


SONHANDO PARA TRÁS

Se pelo imenso mundo o pai e a mãe
nunca se houvessem um dia encontrado
nem atingido o êxtase carnal
se por acaso um deles fosse estéril
ou o feto afetado em doença fatal
ou na hora do parto viesse a ocorrer
um triste enforcamento umbilical
onde eu, que confrontei tantos perigos
– o precipício do nada beirando –
me encontraria agora senão no limbo
perdida meio a múltiplas hipóteses
anônimas anêmicas e vagas
dormitando em latência infinita
sonho absurdo, voo viúvo de asas?



TATUADA DE SOMBRAS

Menina busco o pai
nos campos da insônia.
Subo em alto balanço
roçando as nuvens
e nunca o alcanço.

Corro atrás do filho
desaparecido
que surge veloz
ao volante e a luz
do farol me derruba.

Vou atrás do amado
por estrada e rua.
Esquadrinho a casa
farejando à toa
seu aroma e rastros.

Deus, onde esses vultos?
Tatuada de sombras
vestida de luto
persigo fantasmas
no vazio absoluto.



NO UMBIGO DO RIO

Inocente fui pela aragem da manhã
colher flores selvagens, dessas miúdas
de tufos baixos e corolas brancas
dessas que trocam sem problema
o chão dos campos por jarros na sala
até ficarem cinzentas, cobertas de pó.
Assim me extraviei entre moitas
atrás das tais sempre-vivas-do-mato ...
Ao sair do sol entrei num túnel de galhos
que levava à corrente e à pequena praia
de areias alvas como macaxeiras nuas.
Daí entrei num banho de águas castanhas
anoitecendo cada vez mais escuras
e logo me senti envolvida num abraço
que me puxava ao fundo, como se houvesse
alguma armadilha de peixe submersa
meus pés tentando em vão tocar o chão,
o grito quando eu vinha à tona, sumia
abafado no gorgolejo da correnteza,
e o caudal sempre me enrolando brutal
sem que eu pudesse me desvencilhar.
Pensei, em vez de flores quase eternas
vou colher agora a flor da minha morte
no olho deste abismo, no umbigo do rio.
Então deu-se o milagre! Um anjo, saído
do verde ou do céu, me salvou das águas.
Tudo isso aconteceu há meio século
e a paisagem de tão antiga evaporou-se.
Aqui estou vestida com a poeira do tempo
irmã das flores que buscava em meu passeio.



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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VIII - Janeiro-Fevereiro-Março: 2015  - Ano IV - Nº 82

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