UMA TRISTEZA
Existe em mim a
qualquer hora
uma tristeza
humilde e calma
que a vida pode
atenuar,
mas não privá-la
desta graciosa
fidelidade
que ela me tem,
uma tristeza
que de tão tímida
não diz seu nome,
permanecendo
enrodilhada
na minha alma,
como uma gata
em seu borralho.
Uma tristeza,
que vem do ser
e que não logro
saber por que
não desanima
de ser tristeza
mesmo nas horas
de maior júbilo,
quando minha alma
é paz e risos!
Oh! Sim, existe,
em mim, no fundo,
a nostalgia
de alguma coisa
que outrora fui
e que depois
deixei de ser,
pois não se
explica
essa tristeza
que não me dói
senão por sua
simples presença,
por não estar
senão em mim,
por existir
à revelia
de qualquer dor,
de qualquer ódio,
essa tristeza
que é só tristeza,
que é humilde e
calma,
que me contempla
com grandes olhos
fixos e doces.
Será preciso
que um dia a
aceite,
pois como pode
um coração
se recusar
a tal ternura,
tão natural
e tão gratuita?
Eu bem quisera
Ser todo alegre,
e não amar
senão o júbilo
do mar que escarva
a noite imensa,
do mundo inteiro
em frenesi,
mas é impossível
ser insensível
a tão solícita
melancolia,
que é como o odor
do meu espírito
em solidão
insensível
e que de pura
fidelidade
chega a sorrir-me
quando estou só!
Existe em mim
a qualquer hora
uma tristeza
que é fidelíssima,
e deve ser
a própria queixa
do ser que pede
libertação.
Existe em mim
Algo de tão
puro e essencial
que só me resta
ser tão humano
que não recuse
sua presença
simples e amarga.
ELOGIO DA NUDEZ
Quando me vejo nu,
carne e tamanho
apenas,
sofrendo a garra
de algo
que não me orna,
nem me afaga:
sinto por dentro
um silêncio
que me deixa ainda
mais nu!
Quando me vejo nu
ao sol que me rói,
parado,
ao sal que me
entra na vida,
ao ar que me
desnuda a alma:
fico no mundo sem
par,
desejando me
enterrar.
Ah, que desnudez
faminta!
No banheiro, sobre
o leito,
em qualquer parte
do mundo,
onde se deixe o
vestido:
é o próprio medo
do homem,
que aparece sobre
a pele!
Mas é tão bom,
delicioso,
jorro de água, o
unguento,
perfume, a relva,
a seda
de outra carne
ainda mais nua:
que o terror é
esquecido
por um instante
florido!
Só um homem todo
nu
pode acreditar em
algo,
num pássaro azul,
em Deus,
numa coisa
irreversível...
ALELUIA PARA WALLACE STEVENS
Não há de, no
sepulcro, abrir-se a rosa?
Ou se abrirá, no
seio do repouso,
na face nua da
tarde silenciosa?
Talvez, a Deus,
Lhe bastem os gemidos
da criatura em
parto, ou, porque dorme,
a luz que acalma
os cisnes, perseguidos.
E, sem embargo, o
túmulo ressoa
de um som de
trompa em corredor perdido,
e nele o osso
esplende, e a carne é boa!
A companheira
arrulha, quer a vida,
o companheiro a
abraça, e liba o mel.
Por que ficou, no
chão, torre partida,
a absurda sede que
queria tudo?
A morte não é mãe
do belo, é fêmea
que rói as unhas
sob um velho escudo,
que se jogou,
depois de um duelo triste,
à sombra de um
menino; e ela sabe
que a roerá, um
dia, quem resiste.
Aqui estás, ao sol
das onze horas ...
Mas quem és tu?
Oh, pobre Rei de Asine,
o verde mar
contemplas e, a desoras,
sorves um tempo
que te sorverá.
De nada te
aproveita o arnês que ostentas,
a vinha nua, o
bicho que acolá,
na cauda de mil
olhos, te saudava!
Ao câncer,
devagar, irás doando
teu coração, que a
pedra desmanchava.
Ei-lo, uma pomba!
Ou mais: é cotovia
que canta sobre o
siso e a gerência.
Assim, hás de
voltar ao que se via
ao topo da
criança, ao búzio velho,
em cuja boa a
hóstia é sol hostil.
E ali, sem
penhoar, brandir o relho
às ancas do corcel
alimentando-o
com o temor. E
após queimá-lo vivo
na sarça que
Moisés viu, hesitando.
Aos mortos o que é
seu. Que bem moídos,
na escuridão da
gleba, onde a semente
os quer,
reapareçam submergidos
na glória do
festim. E à relva deem
um pouco de
respiração. Calçados,
em direção à
sombra, voem também.
O HERÓI
Desceste das
nuvens
e encilhaste a
fome.
A lata de tua
armadura
envelheceu,
teus queijos
rescendem
a essências da
China.
Nós,
lúcidos, sábios,
sóbrios,
esquivamos como
mariposas
a dança das
flamas.
Quem examina
nossos heróis?
Somos o escabelo
de teus pés,
a palha de trigo
de teus olhos.
II
O rouxinol canta
no coreto
de buganvílias.
Tu, Dulcineia,
tece sobre nossas
cabeças
o véu da solidão.
III
Donde vieste?
Por que
teus cabelos se
desatam
sobre o mar?
Uma língua de fogo
escreve
em nossos nervos.
A teus pés depomos
o mundo que não
construímos.
IV
Teu cavalo é o
sonho do povo
que devasta as
flores,
e rola de olho em
olho
pelos abismos do
medo.
V
A febre
alimenta-o
com pastagens
nascidas de soluços.
Nas prisões
a boca da lua
fia o grande
passo,
e são moitas
o favo
onde te aninhas,
pássaro
endoidecido.
VI
Rói o caminho,
andante vitorioso,
rói tua vida.
Este suspiro é a
rédea que nos salva.
VII
Teu corpo repica
em nosso corpo,
tua alma
pendura-se
na miséria,
vamos ao teu
encalço
na rua
onde os moinhos
apodrecem.
Quebramos
tua lança
contra nossos
dentes.
Estes dedos
tangem a guitarra,
nasceram em ti,
e são duros
como estrelas
caídas num poço.
Ao teu lado
apascentamos os
ossos.
O elmo é a nudez
da terra faminta.
Teus punhos?
Teu estribo?
Voz de uma
multidão
que as salinas
amamentaram.
X
Cavaleiro da
triste figura,
o enterro
de tua visão,
a pedra
de teus braços,
eis os gemidos que
embebedam
teu escudeiro.
XI
Nossa pobreza
caminha
Em teu farnel,
nosso orgulho
reluz
em tua couraça,
somos de alumínio,
de junco,
e não choramos.
Quem sabe
onde a semente
principia?
XII
Esta noite acordas
no milímetro
que separa beijo a
beijo.
No vento
as narinas dos
mortos
são clarinetas que
te trazem
da escuridão.
Pequenino,
cortas a cidade
pelo meio.
Poucos
te prendem pela
fímbria
do vestido.
XIII
No adro das
igrejas
imolas touros,
ao pé dos
edifícios
rasgas códices,
tua nudez sob as
pérgolas
assusta
banqueiros.
Nalguma parte o
esperma dos
recém-nascidos
esporeia a
loucura.
XIV
Dói-nos,
cavaleiro,
a alegria dos
triunfos
na árvore de vosso
pranto.
Cavaleiros de
outros triunfos,
aqui nossa roupa,
ali nosso caixão:
tantas árvores
tantos mundos tantos jumentos tantos demônios!
Que mundo é este
cuja ponta
viola o coração?
XV
Mundo de palmo e
cruz,
nossa luta desliza
nas tuas formigas.
Lavraremos o que
nos pertence.
SALMO DAS AVES DO CÉU
Olhai as aves do
céu:
as águias
descem sobre
vossos cordeiros
e os devoram
os abutres:
limpam vossas
estâncias
os pardais:
dilapidam vossas
hortas
Aprendei dos
lírios do campo:
não trabalham nem
fiam
é ali
que a hóstia
mói-se
com o esperma de
vosso suor
e o vinho
rebenta das pedras
Contemplai
Salomão:
com todo o seu
esplendor
chega (como um de
vós) vestido
com o macacão de
garagista
vai morrer
crucificado
em vosso
relógio-ponto
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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VIII Julho-Agosto-Setembro 2012 - Ano I - Nº 72
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