quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Armindo Trevisan: "5 Poemas"

UMA TRISTEZA

Existe em mim a
qualquer hora
uma tristeza
humilde e calma

que a vida pode
atenuar,
mas não privá-la
desta graciosa

fidelidade
que ela me tem,
uma tristeza
que de tão tímida

não diz seu nome,
permanecendo
enrodilhada
na minha alma,

como uma gata
em seu borralho.
Uma tristeza,
que vem do ser

e que não logro
saber por que
não desanima
de ser tristeza

mesmo nas horas
de maior júbilo,
quando minha alma
é paz e risos!

Oh! Sim, existe,
em mim, no fundo,
a nostalgia
de alguma coisa

que outrora fui
e que depois
deixei de ser,
pois não se explica

essa tristeza
que não me dói
senão por sua
simples presença,

por não estar
senão em mim,
por existir
à revelia

de qualquer dor,
de qualquer ódio,
essa tristeza
que é só tristeza,

que é humilde e calma,
que me contempla
com grandes olhos
fixos e doces.

Será preciso
que um dia a aceite,
pois como pode
um coração

se recusar
a tal ternura,
tão natural
e tão gratuita?

Eu bem quisera
Ser todo alegre,
e não amar
senão o júbilo

do mar que escarva
a noite imensa,
do mundo inteiro
em frenesi,

mas é impossível
ser insensível
a tão solícita
melancolia,

que é como o odor
do meu espírito
em solidão
insensível

e que de pura
fidelidade
chega a sorrir-me
quando estou só!

Existe em mim
a qualquer hora
uma tristeza
que é fidelíssima,

e deve ser
a própria queixa
do ser que pede
libertação.

Existe em mim
Algo de tão
puro e essencial
que só me resta

ser tão humano
que não recuse
sua presença
simples e amarga.

  

ELOGIO DA NUDEZ

Quando me vejo nu,
carne e tamanho apenas,
sofrendo a garra de algo
que não me orna, nem me afaga:

sinto por dentro um silêncio
que me deixa ainda mais nu!

Quando me vejo nu
ao sol que me rói, parado,
ao sal que me entra na vida,
ao ar que me desnuda a alma:

fico no mundo sem par,
desejando me enterrar.

Ah, que desnudez faminta!
No banheiro, sobre o leito,
em qualquer parte do mundo,
onde se deixe o vestido:

é o próprio medo do homem,
que aparece sobre a pele!

Mas é tão bom, delicioso,
jorro de água, o unguento,
perfume, a relva, a seda
de outra carne ainda mais nua:

que o terror é esquecido
por um instante florido!

Só um homem todo nu
pode acreditar em algo,
num pássaro azul, em Deus,
numa coisa irreversível...



ALELUIA PARA WALLACE STEVENS

Não há de, no sepulcro, abrir-se a rosa?
Ou se abrirá, no seio do repouso,
na face nua da tarde silenciosa?

Talvez, a Deus, Lhe bastem os gemidos
da criatura em parto, ou, porque dorme,
a luz que acalma os cisnes, perseguidos.

E, sem embargo, o túmulo ressoa
de um som de trompa em corredor perdido,
e nele o osso esplende, e a carne é boa!

A companheira arrulha, quer a vida,
o companheiro a abraça, e liba o mel.
Por que ficou, no chão, torre partida,

a absurda sede que queria tudo?
A morte não é mãe do belo, é fêmea
que rói as unhas sob um velho escudo,

que se jogou, depois de um duelo triste,
à sombra de um menino; e ela sabe
que a roerá, um dia, quem resiste.

Aqui estás, ao sol das onze horas ...
Mas quem és tu? Oh, pobre Rei de Asine,
o verde mar contemplas e, a desoras,

sorves um tempo que te sorverá.
De nada te aproveita o arnês que ostentas,
a vinha nua, o bicho que acolá,

na cauda de mil olhos, te saudava!
Ao câncer, devagar, irás doando
teu coração, que a pedra desmanchava.

Ei-lo, uma pomba! Ou mais: é cotovia
que canta sobre o siso e a gerência.
Assim, hás de voltar ao que se via

ao topo da criança, ao búzio velho,
em cuja boa a hóstia é sol hostil.
E ali, sem penhoar, brandir o relho

às ancas do corcel alimentando-o
com o temor. E após queimá-lo vivo
na sarça que Moisés viu, hesitando.

Aos mortos o que é seu. Que bem moídos,
na escuridão da gleba, onde a semente
os quer, reapareçam submergidos

na glória do festim. E à relva deem
um pouco de respiração. Calçados,
em direção à sombra, voem também.

  

O HERÓI

Desceste das nuvens
e encilhaste a fome.
A lata de tua armadura
envelheceu,
teus queijos rescendem
a essências da China.

Nós,
lúcidos, sábios, sóbrios,
esquivamos como mariposas
a dança das flamas.

Quem examina nossos heróis?

Somos o escabelo
de teus pés,

a palha de trigo
de teus olhos.
  
II
O rouxinol canta
no coreto
de buganvílias.

Tu, Dulcineia,
tece sobre nossas cabeças
o véu da solidão.
  
III
Donde vieste?
Por que
teus cabelos se desatam
sobre o mar?

Uma língua de fogo
escreve
em nossos nervos.

A teus pés depomos
o mundo que não construímos.
  
IV
Teu cavalo é o sonho do povo
que devasta as flores,
e rola de olho em olho
pelos abismos do medo.
  
V
A febre
alimenta-o
com pastagens nascidas de soluços.

Nas prisões
a boca da lua
fia o grande passo,

e são moitas
o favo
onde te aninhas,
pássaro endoidecido.

VI
Rói o caminho,
andante vitorioso,

rói tua vida.
Este suspiro é a rédea que nos salva.
  
VII
Teu corpo repica em nosso corpo,
tua alma pendura-se
na miséria,

vamos ao teu encalço
na rua
onde os moinhos apodrecem.

Quebramos
tua lança
contra nossos dentes.

 VIII
Estes dedos
tangem a guitarra,

nasceram em ti,
e são duros
como estrelas caídas num poço.

Ao teu lado
apascentamos os ossos.

 IX
O elmo é a nudez da terra faminta.
Teus punhos?
Teu estribo?

Voz de uma multidão
que as salinas
amamentaram.

X
Cavaleiro da triste figura,

o enterro
de tua visão,
a pedra
de teus braços,

eis os gemidos que embebedam
teu escudeiro.

XI
Nossa pobreza caminha
Em teu farnel,
nosso orgulho reluz
em tua couraça,
somos de alumínio,
de junco,
e não choramos.
Quem sabe
onde a semente

principia?

XII
Esta noite acordas
no milímetro
que separa beijo a beijo.

No vento
as narinas dos mortos
são clarinetas que te trazem
da escuridão.

Pequenino,
cortas a cidade pelo meio.

Poucos
te prendem pela fímbria
do vestido.

XIII
No adro das igrejas
imolas touros,
ao pé dos edifícios
rasgas códices,
tua nudez sob as pérgolas

assusta banqueiros.
Nalguma parte o esperma dos
recém-nascidos
esporeia a loucura.

XIV
Dói-nos, cavaleiro,
a alegria dos triunfos
na árvore de vosso pranto.

Cavaleiros de outros triunfos,

aqui nossa roupa,
ali nosso caixão:

tantas árvores tantos mundos tantos jumentos tantos demônios!

Que mundo é este
cuja ponta
viola o coração?

XV
Mundo de palmo e cruz,

nossa luta desliza
nas tuas formigas.

Lavraremos o que nos pertence.


SALMO DAS AVES DO CÉU

Olhai as aves do céu:
as águias
descem sobre vossos cordeiros
e os devoram
os abutres:
limpam vossas estâncias
os pardais:
dilapidam vossas hortas

Aprendei dos lírios do campo:
não trabalham nem fiam
é ali
que a hóstia mói-se
com o esperma de vosso suor
e o vinho
rebenta das pedras

Contemplai Salomão:
com todo o seu esplendor
chega (como um de vós) vestido
com o macacão de garagista

vai morrer crucificado
em vosso relógio-ponto



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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VIII Julho-Agosto-Setembro 2012 - Ano I - Nº 72

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