domingo, 22 de novembro de 2015

Antônio Quadros: "5 Poemas"

ODE AO CRISTO
das Janelas Verdes

Quem te pintou triste e secreto,
Ó Cristo de olhar vendado,
Ó Cristo misterioso,
Abandonado
No Museu das Janelas Verdes,
Quem te pintou saudoso,
Talvez do Céu, talvez do Homem,
Talvez da criação antes da prova,
Quem te pintou assim, sereno e encoberto,
Imagem nova
Que um povo a ti votado
Um dia descobriu?
Ninguém conhece o mestre que te viu
Enigmático, silencioso,
Um Deus, dir-se-ia, envergonhado,
Mais que humilhado,
Vexado
Porque a palavra se cumpriu,
Porque na hora precisa
Os seus irmãos eleitos
O julgaram,
O feriram,
O mataram
E porque ao longo deste tempo interminável,
Após a crucifixão,
Após a ressurreição
O julgamento prossegue,
A tortura, o crime,
A traição,
O deicídio constantemente perpetrado
Ao sabor da existência quotidiana.
Ninguém conhece o pintor, o iniciado,
O sabedor do mistério
Que é o longo movimento necessário
Do nosso universo imaginário,
Onde tudo é signo e símbolo,
Onde o olhar de Jesus, encoberto,
Ensina a suprema perfeição
De um Deus capaz de amar
E de chorar,
De um Deus assassinado capaz de ressurgir
E de voltar
Sem parábolas, sem cifras, sem véus
Na plenitude da final revelação.

Ah, não, bizantinos sonhadores,
Não estetas da Itália,
Da França,
Mestres da Flandria,
Da fria Inglaterra,
Da férrea Germânia,
Não pintores da Espanha,
Vossa não podia ser a exata imagem
Que um português criou e jaz sepulta
No Museu das janelas Verdes, em Lisboa!
De Ti, sábio Jesus,
Promotor do movimento necessário,
Homem secreto do futuro cumprido,
De Ti fizeram um diáfano celeste
De ouro ornado e neste mundo perdido,
Um reflexo do maravilhoso céu sonhado,
Entre nós caído
Para que misticamente o contemplássemos...
De Ti fizeram um Orfeu ou um Apolo,
Querendo idealizar-te à helênica medida,
A finita estrutura
Do sedutor, estético humanismo...
De Ti fizeram um racional justiceiro,
Um implacável profeta, um missionário
Da Lei divina,
Um Rei,
Um General,
Um Papa,
De Ti fizeram ainda um comerciante de almas
Demasiado carnal,
Demasiado terreno em cenas burguesas,
Em habituais paisagens holandesas,
De Ti fizeram um transcendente imperador
Que pela vontade e nela inteligência
Os homens foi capaz, de dominar...
De Ti fizeram um humano angustiado,
Primeiro Ator do teatro do mundo,
Aflito protagoniza de tragédia...
Mas Tu não choras, ó Cristo,
Pelo Teu padecimento,
Não sais fora de Ti em esgares de sofrimento,
Não és o magro asceta castelhano,
O torturado místico envolto em sombras,
O cadaveroso deformado!

Sofres, sereno,
Sofres, saudoso,
Sofres, sábio e santo
Mas não por Ti,
Se sofres é por nós, sempre e hoje,
Nos no longo, interminável tempo,
Nós em guerras, em doenças, em horrores,
Nós, infiéis de geração em geração,
Nós perdidos,
Nós esquecidos,
Nós, livres, libertos, todavia,
Senhores da invocação, da decisão,
Senhores da graça luminosa
Ou do erro gasto e repetido.
Sofres secreto
E o teu olhar de fogo ficará oculto
Até que à pureza humana o possas desvelar.
Este é o povo das grandes, longas quedas
E também das grandes, fundas intuições,
Este é o povo que em Cristo vê o Messias revelado
E também o Messias encoberto de porvir,
Este é o povo que ama o Deus menino
Porque até na maturidade do Cristo renascido
Descobre a virtualidade infinita, irrevelada,
O imenso Ser, para lá de toda a imagem,
O Espírito sem limites que a infância anuncia
E que jamais, num conceito, num olhar,
Jamais numa verdade humana se detém.
Ó Cristo de olhar vendado,
Ó Cristo misterioso,
Abandonado
No Museu das Janelas Verdes,
Ó Cristo encoberto e final,
Vem,
Traz até nós o que ainda não somos,
Ensina-nos a sermos o para que nos criastes,
Em nome do nosso apelo,
Em nome do nosso sonho,
Em nome do nosso almejar-te e conceber-te
Tu e Outro,
Patente e todavia encoberto
Como no Ecce Homo das Janelas Verdes,
Em nome do desejo de total superação
Que subsiste no coração de todos os humanos,
De todos sem exceção,
Vem
E consagra a matéria deste mundo,
O que em nós pesa e obsta
A luz imensa do Teu Espírito,
Que todos pressentimos,
Todos sem exceção,
Ainda quando três vezes Te negamos.

Ó Cristo próximo e distante,
Ó Cristo saudoso,
Misterioso,
Vem...
Conhecemos a dor,
Tarda-nos o amor,
Vem conosco no termos merecido
O império de paz que no mundo cindido
Entre gente próxima edificamos,
Vem conosco no olharmos ao espelho dos teus olhos desvelados.
A nossa clara imagem descoberta,
Vem conosco, Irmão,
Na alegria de cantar aos quatro ventos,
Nos cinco continentes, nas terras e nos céus,
Ecce Homo! Enfim, enfim, o Homem!



O BANQUETE INFINITO

Poesia chorada, como o mar sob a chuva?
Poesia aflita, como um farol no denso nevoeiro?
Poesia angustiada, como a futura mãe?
Alegre o olhar, os meus dedos são mensageiros dos deuses
E cantam o que me sobra e eu não sei entender.
Alegre o coração, escapa-se de mim um fumo de dor,
E enquanto rio, sou também lágrimas e soluços.
O acordo é uma promessa do paraíso perdido mas não morto,
pois as suas portas choram por mim em mim.

Poesia triste, triste face, coração ardente, sorriso imanente,
Tudo se comprime num verso obscuro e intocável.
Julgo perder-me num meandro de luzes e sombras,
De estrelas e pântanos, profetas e deuses.
Tarda-me a achar o caminho dos caminhos.
Aquele que, enfim, conduz a alguma parte.
Sei que tudo é — mas como conhecer o que, sendo, indica e ilumina?
Os meus gestos são pesados e lentos, pois temem
Matar o inocente e dar vida ao monstro.
Já não hesitam, porém, e quando eu puder olhar atrás de mim
A estrada percorrida, os destroços abandonados,
Os cadáveres imolados à vontade torturada,
Então sabereis os frutos a escolher e os manjares a saborear
espera-me o banquete infinito.
Iguaria ou conviva, o que importa é chegar com o destino cumprido.



POÉTICA CONTRADITÓRIA

Não digas o que sabes nos teus versos,
Deixa para trás a ciência e a consciência;
Tudo aquilo que em ti não for ausência
São ideais perdidos, ou submersos.

Abandona-te às vozes que não ouves,
E liberta os teus deuses nos teus dedos;
Não busques os sorrisos, mas os medos,
E o que não for ignoto e só, não louves.

Ser misterioso e triste, é ser poeta:
Mesmo a luz que palpita nos teus cantos.
É uma imagem heroica dos teus prantos.

Percorre o teu caminho até ao fundo,
E com os versos que achaste, aumenta o mundo.
Não sejas um escritor, mas um profeta.


  
ODE AO INOMINADO

Em mim,
ó inominado, ó infigurado,
ó transfigurado,
em mim subsistes.

Sêmen primeiro e perene,
aparição absurda no vazio,
nódulo subtil e diáfano,
continente microcósmico de todo o cósmico,
ímpeto puro, movimento puro,
espetacular súbito ator original,
haver ser no não-ser,
espaço conquistado ao nada,
tempo inventado,
átomo, molécula, ínfima partícula,
verbo indizível,
minúsculo, majestoso,
pequena gigantesca energia,
forma matéria achada,
em mim subsistes,
existes,
persistes,
vives crescendo até à altura do infinito,
teu-meu fito
neste atroz, maravilhoso porto
em que me debato.

Noite alta,
o sonho explode, a angústia, esperança,
saudade,
estranheza de entre-acordar e entre-viver,
emersão em véus, objetos, emoções que se dissipam
num quotidiano mal recuperado.

Noite alta, ó inominado,
sou em ti o enigma de aparecer, de aparecer-me
e ser.



ODE À ALEGRIA


Na hora matinal do ser,
a face diurna
no tempo da infância
eu canto a alegria, eu canto a alegria.

Alegria de estar vivo
e ser a seiva a brotar
e ser a vida a brotar
e ser o impulso viril
que abre os caminhos, que sobe as montanhas,
que descobre outra vez o que já fora esquecido
que refresca, que renova, que retoma
e dá o passo que ainda não fora dado.
Na hora matinal do ser,
no riso da criança,
no sorriso do velho,
o mundo nasce outra vez,
o homem separa-se da argila,
regenera-se o ímpeto criador
e a alma humana, genesíaca,
levanta ao alto o universo.
Na hora matinal do ser,
na gargalhada do jovem,
no canto da mãe,
desvela-se, da terra, o enigma,
revela-se, da água, o segredo,
mostra-se, do ar, o sentido
e descobre-se, do fogo, o mistério,
não decerto por razões e por conceitos,
mas sim por dizer sim,
Senhor, sim, sim
na confiança,
na euforia,
na esperança
e na alegria que brota, espontânea,
do diálogo franco,
dos olhos nos olhos,
das mãos estendidas,
das vozes sinceras,
a infância revivida
na idade transcendida.
Na hora matinal do ser,
na face diurna,
inesperada e fugaz surge a alegria,
fugaz e breve,
rápida como um clarão,
aleatória,
surpreendente,
ela chega não sei de que esferas longínquas,
atravessando não sei que paragens sombrias…
No seio da viscosa indiferença,
no ritmo mecânico da árida utilidade,
na perversão do vício
ou no sacrifício sem grandeza,
na própria câmara asfixiante do sofrimento,
para além das mil máscaras da dor,
nos olhos febris do doente,
nos olhos ardentes do revoltado,
nos olhos cansados do vencido,
nos olhos fugidios do humilhado,
nos olhos desesperados do escravo,
nos olhos vazios do miserável,
ela nasce,
espontânea e fugaz,
flor da rocha,
flor da lama,
flor absurda em terra absurda,
e desabrochando, radiante,
ainda que só por um instante,
vem trazer à corrupção
o protesto da vida,
a afirmação do ser,
o sinal da perene mocidade do mundo,
o signo da renovação
o signo da ressurreição.

Na hora matinal do ser
- a manhã renasce em todos os momentos - ,
na face diurna
- depois da noite, sempre o dia chega -,
no tempo da infância
- a infância é eterna -,
Perdoai-me, Senhor,
eu canto a alegria, eu canto a alegria,
eu canto a alegria…

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