VARECH
Eu estimo sobre
tudo os teus olhos incolores
as tuas mãos
inúteis, a tua boca verde
Eu falo somente
dos relógios caídos, dos autocarros
Eu falo somente
dos pés vermelhos
Eu falo... eu
falo... eu falo...
No vigésimo século
as nuvens são árvores
e os pássaros mais
pequenos grandes paquidermes
Sim, é verdade, os
cabelos loiros
Então, meia-noite!
Senhora, se me dá
licença, este dia acabou
por este dia
simplesmente
A criança é porca,
é inútil
Muito obrigado.
UMA VIDA ESQUECIDA
Para o Fernando
Alves dos Santos
Eu conheço o vidro
franja por franja
meticulosamente
à porta parado um
homem oco
franja por franja
no espaço
meticulosamente
oco uma porta parada.
Um relógio dá dez
badaladas ininterruptamente
dez badaladas por
brincadeira dança
um homem com
pernas de mulher
e um olhar devasso
no Marte
passo por passo
uma criança chora
uma águia e um
vampiro recuados no tempo
PROJETO DE SUCESSÃO
Para o Mário
Henrique
Continuar aos
saltos até ultrapassar a Lua
continuar deitado
até se destruir a cama
permanecer de pé
até a polícia vir
permanecer sentado
até que o pai morra
Arrancar os
cabelos e não morrer numa rua solitária
amar continuamente
a posição vertical
e continuamente
fazer ângulos retos
Gritar da janela
até que a vizinha ponha as mamas de fora
pôr-se nu em casa
até a escultora dar o sexo
fazer gestos no
café até espantar a clientela
pregar sustos nas
esquinas até que uma velhinha caia
contar histórias
obscenas uma noite em família
narrar um crime
perfeito a um adolescente loiro
beber um copo de
leite e misturar-lhe nitro-glicerina
deixar fumar um
cigarro só até meio
Abrirem-se covas e
esquecerem-se os dias
beber-se por um
copo de oiro e sonharem-se Índias.
POEMA DO COMEÇO
Eu num camelo a
atravessar o deserto
com um ombro
franjado de túmulos numa mão muito
aberta
Eu num barco a
remos a atravessar a janela
da pirâmide com um
copo esguio e azul coberto de
escamas
Eu na praia e um
vento de agulhas
com um
Cavalo-Triângulo enterrado na areia
Eu na noite com um
objeto estranho na algibeira
— trago-te
Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de
musgo
VÍRGULA
Eu menino às onze
horas e trinta minutos
a procurar o dia
em que não te fale
feito de
resistências e ameaças — Este mundo
compreende tanto
no meio em que vive
tanto no que
devemos pensar.
A experiência o
contrário da raiz originária aliás
demasiado formal
para que se possa acreditar
no mais rigoroso
sentido da palavra.
Tanta metafísica
eu e tu
que já não
acreditamos como antes
diferentes daquilo
que entendem os filósofos
— constitui uma
realidade
que não consegue
dominar (nem ele próprio)
as forças
primitivas
quando já se tem
pretendido ordens à vida humana
em conflito com
outras surge agora
a necessidade dos
Oásis Perdidos.
E vistas assim as
coisas fragmentariamente é certo
e a custo na
imensidão da desordem
a que terão de ser
constantemente arrancadas
— são da máxima
importância as Velhas Concepções pois
a cada momento
corremos grandes riscos
desconcertantes e
de sinistra estranheza.
Resulta isto dum
olhar rápido sobre a cidade desconhecida.
E abstraindo dos
versos que neste poema se referem ao mundo humano
vemos que ninguém
até hoje se apossou do homem
como o frágil véu
que nos separa vedados e proibidos.
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