quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Álvaro Alves de Faria: "5 Poemas"

AQUELE HOMEM

Sou aquele homem que não voltou,
que saiu de casa ao amanhecer
e se perdeu para sempre.

Sou aquele homem da fotografia na parede
da casa fechada por dentro.

Sou aquele homem que inventou a tarde,
mas não viu anoitecer.
Sou aquele homem que se perdeu sem saber.

Aquele que não soube nunca,
sou aquele que não soube.

Sou aquele homem que desapareceu,
aquele que acreditou,
e ao se ausentar de si mesmo
sentiu o vazio absoluto de todas as coisas.

Sou aquele homem que se foi
e quando pensou em voltar
não tinha mais tempo,
era tarde demais.

Sou aquele homem que se desfez
depois de enlouquecer
e enlouquecido
tentou refazer o seu destino.

Sou aquele homem que engoliu
um rio
e se afogou adormecido.

Aquele que falou sozinho
diante do espelho
se vendo do avesso.

Sou aquele homem que falava com as pedras
palavras desesperadas
que saltavam da boca
como gafanhotos doentes.

Aquele homem que conversava com os santos
numa igreja sem portas
e que dizia silêncios
em sílabas de gesso.

Sou aquele homem
que enfiou um punhal no coração
como um poeta romântico do século 18.
Sou aquele homem quase lírico
que chamava os pássaros
para uma ceia de sementes.

Aquele homem que rezava
com os anjos expulsos do céu,
sem saber que eu estava
expulso de mim.
Sou aquele homem que amou 30 mulheres
e matou-se por amor 29 vezes.

Sou aquele homem que ao jogar xadrez
fugiu com a Rainha
para um castelo medieval.

Aquele que diante de Deus
pediu para ser destruído,
mas como castigo deixou-me viver mais.

Sou aquele homem que amou
mulheres de porcelana,
com sexo de porcelana,
boca de porcelana,
beijo de porcelana,

língua de porcelana.
Sou aquele homem de porcelana
que se quebra como uma xícara
que cai da mesa.

Sou aquele homem que saiu para dar uma volta
e esqueceu de regressar.



37 Anos

Devia ter-me matado aos 37 anos.
De lá para cá pouca coisa aconteceu
que mereça sem lembrada.

Tirei algumas fotografias,
fiz algumas viagens imaginárias,
amei mulheres tristes
e comprei dois relógios antigos.

Fiz mal
em não ter-me matado aos 37 anos.

De lá para cá
as coisas se repetiram
com a frequência de sempre.

Tive dois punhais
e uma espada japonesa.
Devia ter-me matado aos 37 anos.

De lá para cá só aconteceram
ausências e distâncias,
como um vaso que se quebra,
uma jarra de reminiscências
que não sei recordar.

Escrevi alguns poemas
que depois esqueci em algum lugar.

Devia mesmo ter-me matado aos 37 anos,
ao abrir a janela
para a que seria minha última manhã.
Talvez um tiro no coração,
para não ferir o rosto.

Talvez uma xícara de veneno
que me fizesse adormecer.

Fiz muito mal a mim mesmo
em não matar-me aos 37 anos.

Não veria as coisas inúteis que vi
nem teria rezado tanto para salvar minha alma.

Dela, nada sei
e ela nada sabe de mim.

Também não teria inventado
tantas histórias para viver
esse tempo que afinal
passou sem que eu percebesse.

Não teria sangrado tanto
se tivesse me matado aos 37 anos.

Peço desculpas aos amigos
e aos três anjos que hoje vivem comigo
e comigo falam em silêncio
no meio das noites e dos temporais.

Devia ter-me matado aos 37 anos.

De lá para cá
foram anos que não contei,
só andei perdido de mim
como se não existisse mais..




PROCURA-SE

Procura-se um homem
que desapareceu no dia 14.

Calçava sapatos pretos
e vestia uma espécie de nuvem,
dessas que se acham em qualquer lugar.

Costuma falar sozinho,
especialmente quando caminha.

Quando desapareceu,
carregava uma bolsa
com alguns poemas sem palavras
e alguns acenos suicidas.

Comia morangos
quando desapareceu.

Também carregava
duas estrelas mortas
no bolso da camisa,
do lado esquerdo.

Dizia que não tinha nome,
mas era por esquecimento.

Procura-se esse homem
que sumiu com alguns segredos.

Disse que ia falar com as pedras
e desapareceu no dia 14.

Quem tiver alguma notícia
sobre seu paradeiro
por favor
não informar a ninguém.



O CONTRÁRIO

Quando comecei a andar de costas
não sabia ainda que já tinha enlouquecido.

As coisas
começaram a andar para trás,
mas tudo me parecia normal.

Os relógios marcavam as horas ao contrário,
só porque comecei a andar de costas,
sem saber que já tinha enlouquecido.

Os dias seguiam quinta-feira – 15,
quarta-feira – 14,
terça-feira – 13,
segunda-feira – 12,
domingo – 11.

No domingo 11 fui à missa,
mas cheguei no sábado – 10,
pela manhã.

O Deus que me esperava
já tinha ido embora para outro paraíso,
maltratando-me ao sacerdote
que também já não estava lá,
só porque comecei a andar de costas,
sem saber que já tinha enlouquecido.

As janelas não se abriam mais,
só se fechavam
a um vento ao contrário,
e a chuva saía do chão para o alto,
arrancando as árvores enterradas
com flores de raízes nos vasos.

Quando comecei a andar de costas,
os anos foram voltando no tempo.

Minha cara também mudou,
não era mais a minha,
e o cão que me seguia sempre
ainda não tinha nascido.

A mulher que me matou devassa
tomava hóstias sagradas
diante de altares antigos,
mas antes que me matasse
dormi com ela sempre saindo dela
numa cama que ainda não existia.

Depois passei esmalte nas unhas
e coloquei um véu no rosto,
rezei preces desesperadas,
procurei os anjos expulsos do céu,
sempre andando para trás,
ao contrário de mim mesmo,
com sapatos do avesso,
o direito do lado esquerdo,
o esquerdo do lado direito,
meus pés virados para trás,
vendo na minha sala
as telas que se apagaram.

Até que na tarde
do dia 25 de abril de 1852,
que ainda não tinha chegado,
eu desapareci para sempre
com meu casaco abotoado nas costas.



BARALHO

Jogo minha sorte e minha vida,
mas eles têm as cartas melhores.

Tenho somente o 2 de paus
2 de ouro,
2 de copas
2 de espadas.

Eles têm o ás
além dos reis, dama e valete.

Fora os noves de todos os naipes.

Jogo o que me resta jogar
com uma luz acesa
em cima da minha cabeça.

Com as cartas que tenho
não me resta qualquer chance.

Eles então me olham
com o jogo decidido,
dizem palavras que não ouço
e pedem que me encoste à parede:

o primeiro soco é na boca do estômago.

Minhas cartas caem na mesa,
abertas como uma manhã de setembro.

Então eles rasgam
o que me restou do jogo
e me dão o tiro de misericórdia.


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Fonte:
Revista Brasileira: Fase VIII Janeiro-Fevereiro-Março 2013 - Ano II Nº 74

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