sábado, 14 de novembro de 2015

Afonso Schmidt: "5 Poemas"

GAROA

Que pó de arroz espiritual empoa
o halo dourado e móvel destas urnas,
destes lampiões
nas solidões
noturnas?

Que cabeleira prateada Voa
e se enrosca nas árvores despidas,
crucificadas,
pelas avenidas?

Que agudo lápis, manejado à-toa,
risca de branco a descorada tela
que por moldura tem minha janela?

Que som suave é este que nem soa,
mão de sonho que bate na vidraça,
como quem quer entrar e depois passa?

Que multidão meu silêncio povoa?

Que véu de noiva minha face beija
e que umidade meu olhar mareja?
- A garoa...



OS VAGABUNDOS

Perdidos pela estepe enegrecida e rasa,
Nessa planície igual que a distância arredonda,
Que o inverno enregela e que o verão abrasa,
Dos vagabundos passa a maltrapilha ronda.

As miragens do céu são como pétrea onda...
E o vento forasteiro essa visão arrasa,
Quebrando torreões de arquitetura hedionda,
Catedrais de marfim e florestas de brasa!

Eles passam cantando uma canção dolente,
E vão deixando atrás, por sobre a terra ardente,
Dos seus inchados pés os passageiros rastros...

E quando a noite desce aos desertos medonhos,
Deitam-se sobre a terra e sonham lindos sonhos.
Na solidão da estepe e na mudez dos astros!



CARAS SUJAS

Ao longo destas avenidas,
Recordação de velhas lendas,
Cantam as chácaras floridas
Com suas líricas vivendas.

Lá dentro, há risos, jogos, danças,
Crastinas, módulas fanfarras,
Um pandemônio de crianças,
Um zagarreio de cigarras.

Fora, penduram-se na grade
Os pobre, como gafanhotos;
Têm dos outros a mesma idade,

Mas estão pálidos e rotos.
Chora a injustiça da cidade
Na cara suja dos garotos.


ANHANGABAÚ

No Piques, vagando à-toa,
é raro quem não pressinta
uma toada indistinta
que, sob as pedras, ressoa.

Conta moedas, tilinta,
como refrão de uma loa,
a fonte exilada e boa,
há muitos anos extinta.

Sua alma que ali revoa,
de céus e de ares faminta,
repete a cada pessoa

uma novela sucinta:
noturnos, capas, garoa,
1830...

 

CUBATÃO

Minha terra não passa de uma estrada,
um bambual que rumoreja ao vento;
sol de fogo em areia prateada,
deslumbramento e mais deslumbramento.

O chafariz em forma de carranca,
confidente das moças do arrabalde,
despeja a sua gargalhada branca
no bojo de latão de um velho balde,

Nas portas, parasitas cor de sangue,
um mastro esguio em cada casinhola;
gente tostada que desfolha o mangue,
crianças pálidas que vêm da escola.

Ao fundo, a Serra. Pinceladas frouxas,
de ouro e tristeza, em fundo azul. Aquelas
manchas que são jacatirões — as roxas,
e aleluias — as manchas amarelas.

A minha terra, quando a vejo, escampa,
cheia de sol e de visões amigas,
lembra-me o cromo que enfeitava a tampa
de uma caixa de goma, das antigas...

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