domingo, 15 de novembro de 2015

Afonso Celso: "5 Poemas"

ROSA

Rosa colhia sozinha
Lindas rosas no jardim
E nas faces também tinha
Duas rosas de carmim.
  
Cheguei-me e disse-lhe: Rosa
Qual dessas rosas me dás?
As da face primorosa
Ou essas que unindo estás?...
  
Ela fitou-me sorrindo,
Ainda mais enrubesceu;
Depois, ligeira fugindo,
De longe me respondeu:
  
"Não dou-te as rosas das faces
Nem as que tenho na mão:
Daria, se me estimasses,
As rosas do coração."



NA FAZENDA

Dorme a fazenda. Uniformes,
Com seu inclinado teto,
Têm as senzalas o aspecto
De um bando d´aves enormes.

Os cães, no pátio encoberto,
Repousam de orelha erguida;
São como oásis de vida
Da escuridão no deserto.

De vagos tons uma enfiada
Com o torpor luta e vence-o;
É no burel do silêncio
Franja sonora bordada.

Às vezes, da porta estreita
Sai um chorar de criança,
Chamando a mãe que descansa
Morta do afã da colheita.

Talvez no infantil assombro
Já se lhe antolhe mais tarde:
— O eito enquanto o sol arde,
E o peso da enxada ao ombro.

Os cães levantam-se a meio,
Geme a criança um momento
E, a pouco e pouco, em lamento
Sucumbe o isolado anseio.

Longe, na sombra perdido,
Há no perfil de um oiteiro
Algo de estranho guerreiro
Da cota de armas vestido.

Ao lado reluz a linha
De extensa e alvacenta estrada,
Como a lâmina da espada
Que lhe saltou da bainha.

E o disco da lua nova
No lar azul das esferas,
De nuvens que lembram feras,
Como um réptil sai da cova.

Ondula no espaço o fumo
De algum incêndio invisível;
Chora a criança, impassível
Prossegue a noite em seu rumo.



A CONFIANÇA

Sem ti, a mente se afunda,
Minada em seus alicerces:
Feliz daquela em que exerces
Tua ascendência fecunda.

De quem te adota por guia
Quão segura a diretriz!
Sim! Feliz o que confia,
Feliz, três vezes feliz!

Mas, como o vidro, és frangível.
Não raro, a um gesto, a uma frase,
De chofre vai-se-te a base;
Cais, e, depois, é terrível.

O vidro quebrado corta
A mão que incauta o apertou...
Oh! como a confiança morta,
Coração, te retalhou!

Tudo falácia e quimera...
— Tem talvez sorte bendita
Esse que em nada acredita,
Nada esperou, nada espera.



À MINHA ESPOSA

Sim! Tornou-se-me leve a cruz que eu vinha
A carregar por íngreme ladeira,
Graças ao teu auxílio, ó companheira,
Cireneu de meu fato — esposa minha.

Sobre a data gentil de nosso enlace
Já dos anos avulta a cinza fria;
Mas, desde então, não se passou um dia,
Sem que eu aquele dia abençoasse.

Meu ser sem ti era incompleto. Agora
Deparas-lhe ao viver força e motivo:
— És o porto de paz definitivo,
Onde o batel de meu desejo — ancora.

Nos sorrisos e lágrimas de lacta
Tão gêmeas sempre as almas nos têm sido,
Que não há numa o mínimo vagido
Que noutra logo após não repercuta.

Em derredor do nosso afeto puro,
Que o lar nos enche de calor e brilhos,
Gira a constelação de nossos filhos,
Iluminando os limbos do futuro.

Sim! sou feliz! feliz se num degredo,
Onde o amanhã só de incertezas traja,
Dizer-se possa que venturas haja...
Sim... tão feliz que às vezes tenho medo.

Como a dos corações, em nosso ninho,
Conformidade estreita e harmoniosa,
Nem nas pétalas iguais da mesma rosa,
Nem nas asas irmãs de um passarinho.

Anjo meu tutelar, mimo que abriga
Reta razão, espírito valente,
Sócia fiel, segura confidente,
Ó minha santa, ó minha doce amiga.

Meu talismã, meu dom precioso e raro,
Minha estrela polar, minha riqueza,
Meu sonho, minha flor, minha princesa,
Minha fé, meu orgulho, meu amparo,

Quem me dera que vínculo tão forte
As vidas nos unisse a vida inteira,
Uma noutra a embeber de tal maneira
Que as desatar não conseguisse a morte!

As nossas almas n’amplidão etérea,
Do pesadelo terrenal despertas,
Hão de oscular-se bem melhor, libertas
Das subalternas formas da matéria.

E, na vida de além, que continua
Eternidade afora, sem limite,
Quero-as tão juntas que até Deus hesite
Em dizer qual a minha, qual a tua.



A INDIFERENÇA

Ficar a tudo indiferente,
Pensar que, nunca inteligíveis,
Incertas são, e discutíveis,
Todas as coisas, igualmente;

A ser nenhum sentir apego;
Nada ter, nada esperar,
Sem que este humor, este sossego,
Sucesso algum possa alterar;

Nem na razão, nem nos sentidos
Ter fé jamais, mas por estudo
Em duvidar, sempre, de tudo:
— Falas, sorrisos ou gemidos;

Não ter o mínimo conceito
Seja do bem, seja do mal;
Fazer, com ânimo perfeito,
Renúncia eterna e universal;

Nem ver no túmulo um asilo,
Mas bem iguais Morte e Existência
Considerar — sem preferência,
Pouco importando, isto ou aquilo

— Eis como expõe o seu programa
Um grande espírito ... Mas quem,
Representando o humano drama,
Conseguirá tanto desdém?

Indiferença, o nosso nível
Teu reino olímpico ultrapassa,
Divino dom, suprema graça,
Chamo-te, em vão ... És impossível!

Esse que sabe com tal plano
Levar na terra os dias seus,
Melhor que o déspota romano,
Deve sentir tornar-se Deus.

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