segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Cyro de Mattos: "5 Poemas"

DA NASCENTE INFÂNCIA

I

Da nascente infância cachos de uva
Deslizavam nas vagas. O perfume
Nos remansos dizia do costume
De o sol aquecer meu corpo. Entregava

Assim seus frutos dourados à vida
Prazerosa, de fluxos colorida.
Era o que importava: o vivo sabor
De folhas úmidas, o puro ardor

Do salto nas águas. Este fervor
Que me impelia para desfrutar
O mel descendo dos ramos da chuva.

De doçura lambuzado nadava
E nadava sem querer descansar.
Do céu nas águas, ó rio do amor.



II

Descubro pepitas nas goiabeiras
Carregadas de goiabas maduras.
Na ilha, no meio do rio, provoca
A cena meus olhos. E minha boca

Molha com o que dia e noite sonhei.
Nada melhor pra dizer dessa vez
Da inocência do que a descoberta
Que ressoa dentro o mel da colheita.

No aprendiz reverbera a linguagem
Formada por pássaros, peixes, flores
Das margens e das vagas. Blindagem

Do tempo que nesse sol venturoso
Brilha, respira sem o perigoso
Gesto do viver, que há de vir com dores.



DO ESGOTO A CÉU ABERTO

Ficou claro que as lavadeiras, quando
Botavam as roupas para secar,
Coloriam as inúmeras pedras
Pretas, levando emoção a quem visse.

A cidade sabia que a argamassa
Das casas era feita duma fibra
Especial: calo, suor e areia.
O peixe fabricava o pão da vida.

O aguadeiro anunciava a água fresca
Com uma voz cristalina. O visual
De tão lindo parecia sem fim.

Ficou claro que de tanto no ventre
Virar lodo o espetáculo envergonha.
Eis que escorre no esgoto a céu aberto.

  

DO JULGADO DO RIO

Venho sendo omisso pra refazer
Virginais caminhos de água, dizendo
Melhor, matei o que era para ser
Vivo no seu amanhecer líquido.

Eu me acuso por ser indiferente
Ao benefício, sempre abundante,
De água pura que jorrava na fonte.
Peixe e rede no orvalho competente.

E como réu confesso que merece
Por tão grave ilícito ser punido,
Chegando do que lhe foi natural,

Em noite morta, que nunca apetece,
Lavro minha sentença, condenado
A ver as mãos usadas para o mal.

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Fonte:
Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 53, 2015

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