sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Iba Mendes: "A Santa"

A SANTA

Era uma mulher triste; gostava de rezar costumeiramente às 18 horas, quando tocava no rádio a “ave-maria”.

Nesse dia, contudo, ela não rezou. Havia 15 anos que não falhara um só dia sua prática habitual de devoção.

Se a causa foi o esquecimento, este deve ter sido acompanhado por alguma doença grave, posto que prometera a Deus por meio de uma solene promessa que manteria esta regra todos os dias até o último dia de sua vida.

No dia seguinte nada havia em sua aparência que pudesse denotar sintoma de alguma moléstia; tampouco se notava alguma alteração na maneira de conduzir seus afazeres domésticos. Tudo estava como dantes, exceto seu compromisso com a “ave-maria”.

Passou-se uma semana sem rezas. No horário em que outrora praticava suas orações, ligava o rádio para ouvir Roberto Carlos, ao mesmo tempo em que  diariamente preparava o jantar para a mãe, há muito enferma e de cama.

A mãe, embora houvesse percebido a mudança, não se atrevia a perguntar a razão, temendo alguma reação que a deixasse irritada ou que a fizesse sofrer: “Vai ver arrumou um homem”,  pensava a padecente.

Não se sabe, porém, de nenhum homem; e se houvesse, tratava-se de um romance muito bem dissimulado, afinal,  ela nunca fora vista em circunstâncias que pudesse denunciar um caso amoroso. Nunca.  

O fato é que já havia se passado um ano desde a sua última reza, sem nenhuma resposta para tão súbita transformação.

Aproximando-se seu aniversário, a enfermidade da mãe agravou-se sobremaneira. Era caso certo de morte. Restavam-lhe alguns dias, talvez dois, diziam os médicos.

- Filha, você sabe que estou indo dessa pra melhor – balbuciava com gemidos a velha. - Faz um ano que algo atormenta minha cabeça; uma pergunta a qual, por receio, sempre evitei fazer, mas  creio que agora é chegado o momento.

- Pergunte minha mãezinha, pergunte.

- Há 15 anos você fez um voto a Deus, lembra-se?

- Sim, minha mãe – respondeu visivelmente agitada.

- Então, há um ano que você não cumpre mais seu voto. Por que, filha?

Neste instante a enferma é acometida de uma violenta convulsão e morre. A filha, desesperada, aproxima seu rosto do ouvido da defunta e diz:


- É que nunca acreditei em Deus, minha mãe, e chora copiosamente.


Janeiro, 2014.

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