O ACUSADO
Estava
jantando, quando ouviu uma voz chamar lá fora. Saiu irritado e deu de cara com
um homem desconhecido, alto e de um olhar severo e perscrutador.
- Pois
não, o que deseja?
- O
senhor é o Acácio Justiniano da Silva?
- Sim,
ele mesmo.
- Sou
Oficial de Justiça do Ministério Público do Governo Federal e trago-lhe uma
intimação. Adianto-lhe que não tenho autorização para fornecer nenhuma
informação sobre o processo. Assine aqui e aqui.
O homem
estremeceu e olhou para o agente do Governo, espantado e desconfiado,
mirando-lhe bem o crachá, indagando-lhe se ao menos poderia esclarecer sobre o
teor do tal processo, pois desconhecia qualquer acusação contra ele. O oficial,
no entanto, repetiu apenas que não estava autorizado a fornecer qualquer
informação, e que tudo constava nos autos.
Ele
assinou a Intimação com as mãos trêmulas e entrou sem perguntar mais nada,
enquanto o outro se afastava rapidamente sem qualquer manifestação de cortesia,
limitando-se apenas a olhar para trás, anotando em seguida alguma coisa em uma
agenda grande e vermelha.
Nem
sentara e foi logo abrindo o envelope, pardo, com timbres e carimbos que
indicavam tratar-se de fato de um despacho público.
O
Ministério Público do Governo Federal, no desempenho de suas atribuições
institucionais, com fundamento no artigo 135, inciso IV, da Lei nº 335, do
Código de Condutas e Procedimentos, INTIMA Vossa Senhoria a comparecer na
Secretaria de Condutas e Procedimentos, conforme endereço e data em epígrafe, a
fim de participar, como réu, de uma audiência, relativa ao Processo nº 15445,
em tramitação neste Ministério Público do Governo Federal.
Sentou-se
apavorado com o papel nas mãos, buscando reproduzir na memória algum
acontecimento que pudesse ter sido o gerador de tal processo, porém, não se
lembrou de nada, afinal não devia nada a ninguém.
Era um
cidadão pacato e ordeiro, um rígido cumpridor das leis, ostentando inclusive um
certo orgulho de nunca ter se envolvido em negócios sujos ou de ter seu nome
arrolado em falcatruas. Aquela Intimação não apenas lhe afligia o espírito,
como, também, aviltava-lhe seus brios de homem íntegro e honesto.
Passou
uma noite cruel, entre a agitação e o abatimento. Teve pesadelos horríveis,
acordando sobressaltado e cheio de dúvidas sem respostas.
Engoliu o
café, aprontou-se e saiu rapidamente em busca de assistência jurídica em algum
escritório de advocacia no centro da cidade. Entrou no primeiro que viu. O
bacharel examinou com cuidado os papéis, consultou a última edição do Vade mecum, recorreu ainda a outras
obras da sua esfera de saber, e confessou, surpreso, que desconhecia a tal Lei
335, embora certificasse que o documento apresentado fosse de fato emitido pelo
órgão do Governo, não apresentando nenhum indício de falsificação.
Não
satisfeito, dirigiu-se a outros advogados, os quais também declararam
desconhecer a Lei 355, e o aconselhou a tentar buscar informações na própria
Secretaria de Condutas e Procedimentos, pois poderia tratar-se de um preceito
novo, que ainda não tinha sido publicado no Diário Oficial nem divulgado na
imprensa.
Na
Secretaria foi informado que não havia informações disponíveis, e que deveria
aguardar o dia do julgamento, quando então ficaria a par do conteúdo dos autos.
- E os
meus direitos, como ficam? indagou ao funcionário, que parecia não se importar
nem um pouco com seu desespero.
-
Aconselho-o a contratar um bom advogado, pois para atuar nesse tipo de caso é
necessário alguém com vasta experiência jurídica, disse o escriturário público.
Enraivecido,
deixou a Secretaria e meteu-se novamente para o centro da cidade, numa
tentativa desesperada de encontrar algum profissional especializado neste tipo
de questão. Porém, não obstante peregrinar por muitos escritórios, nenhum
bacharel mostrou-se interessado em defender sua causa, cada um com suas recusas
e evasivas.
Sem mais
ânimo e sentindo-se desamparado, dirigiu-se para casa onde rezou e chorou
copiosamente. Por alguns instantes imaginou que tudo aquilo poderia ser apenas
um grande equívoco, talvez um engano relacionado a uma outra pessoa, que
poderia ser um homônimo seu, inclusive no sobrenome. Logo, porém, traçou
mentalmente outras conjecturas, talvez algum vizinho com despeita de seu
sucesso, o denunciou falsamente. Neste caso, poderia mover uma ação contra ele
por danos morais e por injúria, mas tudo isso estava no âmbito da hipótese e
não aliviava seu sofrimento, nem dirimia sua ansiedade. Restava-lhe apenas
esperar, afinal, dizia para si mesmo: “quem não deve não teme”.
Chegou
uma hora antes da audiência. Mostrava-se visivelmente ansioso. Seu semblante
denotava ao mesmo tempo angústia e pavor. Era um homem honesto, não deveria
está passando por aquele vexame, não havia nenhuma razão para que fosse acusado
de alguma coisa, divagava o tempo todo, buscando assim confortar-se da enorme
tensão que perturbava sua mente.
Anunciaram
seu nome. Entrou cabisbaixo e silencioso. Sentou-se. Instado se não tinha um
defensor, respondeu que nenhum deles se interessou por sua causa, mas que não
tinha o que temer, afinal, dizia gesticulando, era um homem honesto e não devia
nada a ninguém, inclusive ao governo.
Bem atrás
na sala de audiência, um homem vestido de túnica talar preta examinava uns
papéis e fazia anotações na agenda vermelha. Após alguns instantes abanou a
cabeça, ergueu os ombros, levantou os olhos para o réu e anunciou secamente:
- Acácio
Justiniano da Silva, o senhor foi acusado por este órgão do Governo Federal de
um gravíssimo crime de Conduta. Sua situação é muito delicada do ponto de vista
jurídico. Em consequência disso, este Tribunal decidiu protelar este julgamento
para uma data ainda não definida, de modo que o senhor terá tempo suficiente
para se amparar com um advogado, que lhe será de muita valia quando for
novamente intimado a depor.
Ele ia
falar, mas reprimiu-se. Estava exausto e sentia-se sufocado. Era como se
estivesse num eterno pesadelo, descendo a um abismo infinito. Confuso,
retirou-se.
Em casa
atirou-se sobre a cama, refletindo no que acabava de acontecer. Que crime
gravíssimo teria cometido? Voltou sua mente ao passado, buscou mais uma vez
descobrir algo ou algum ato que porventura praticara e que poderia ser a causa
de tudo aquilo. Não se lembrou de nada. Seu passado fora tão tranquilo quanto
foi toda sua existência, até o momento que recebera aquela maldita intimação,
que transformou sua vida num verdadeiro inferno, imputando-lhe uma culpa para a
qual sequer conhecia as razões.
À noite
não conseguia dormir. Os pesadelos atormentavam-lhe o sono. No trabalho não
conseguia concentrar-se nas atividades de rotina. Os poucos parentes que
tinham, abandonaram-lhe. Os amigos se distanciaram. Os vizinhos passavam ao
largo. Sentindo-se abandonado, recolheu-se em seu quarto, onde, após alguns
meses, adoeceu e morreu sozinho. Ao seu lado foi encontrada uma agenda
vermelha, onde constavam todos os delitos de que tinha sido acusado.
Fevereiro,
2015.
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