sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Iba Mendes: "Estalo Iluminativo"

ESTALO ILUMINATIVO

Desde que perdeu a esposa num grave acidente de automóvel, ficou assim com ar de filósofo e introspectivo.

Passa a maior parte do tempo lendo os escritores russos, e com muito mais afinco Tolstoi, do qual já leu todas as traduções para o idioma português, inclusive duas vezes o “Guerra e Paz”.

Raramente é visto conversando com alguém, e quando o faz, nunca fala de si próprio.

Tenciona escrever um livro, um romance ambientado no século XVIII. Tem-se a impressão de que aguarda o instante propício ou um “estalo iluminativo” para dar o pontapé inicial. Um projeto ambicioso, disse-me tempos atrás.

Antes do falecimento da mulher era uma outra pessoa, o tipo a quem se pode realmente atribuir o rótulo de “popular”; um frequentador contumaz de botecos e um grande apreciador dos destilados.

Não se sabe exatamente se a metamorfose porque passou fora consequência da dor pela perda da companheira ou se o resultado de ponderações filosóficas sobre a morte. Essa incerteza recai no fato de ter vivido um relacionamento conturbado, com brigas constantes e até momentâneas separações. Acrescente-se a isto o inusitado flagrante, no qual fora visto, uma semana após o óbito da mulher, com uma morena de encantador requebro.

Vive dos aluguéis de três casas herdadas da família. Antes era funcionário público, trabalhando como escriturário na Junta Comercial do Estado de São Paulo, até o falecimento do pai.

Mora numa casa simples, porém, muito bem cuidada e mobiliada. Visitas geralmente só em datas especiais, como no Natal, quando dá estadia a uns parentes vindos lá do Rio Grande do Norte.

No mês passado encontrei-o num ônibus. Ia ao médico. Sofria de gastrite e tinha frequentes crises de renite alérgica. Conversamos pouco. Perguntei-lhe se tinha intenção de contrair novo matrimônio, respondeu que sim, mas não por hora. Convidei-o para um almoço no próximo domingo. Aceitou o convite.

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Não veio ao almoço. Ligou-me para pedir desculpas e para justificar sua ausência. Dizia que estava preso a um relevante projeto. Indaguei-lhe se se tratava do romance. Sorrindo, disse sim, que se tratava de um “romance”.

É o “estalo iluminativo”, pensei.


Enganei-me. Era o casamento do nosso filósofo com uma senhora de origem russa, vinte anos mais velha do que ele. Amanhã seguem de lua de mel para Moscou.



Janeiro, 2014.

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