sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Iba Mendes: "O Cético"

O CÉTICO

Manifestava um pavor obsessivo pelo inferno, e de tal modo que a simples chama de uma vela causava-lhe angustiosos arrepios. Era como se fossem chispas incandescentes a alertar-lhe sobre o fatal destino dos pecadores.

Em consequencia disso passou a sofrer de pirofobia, que é o medo mórbido do fogo. Não suportava cenas de incêndio, e qualquer sinal de fumaça fazia estremecer seu corpo, acelerando-lhe os batimentos do coração e lhe secando a garganta.

Não foi por outra razão que abdicou de ser bombeiro, que era o grande sonho do pai. Imaginava incêndios infernais devorando suas carnes, enquanto sirenes atordoantes anunciavam a chegada do juízo final.

Não se sabe exatamente quando e porque foi desencadeado todo esse sentimento de pavor. Suspeita-se que principiou quando era ainda meninote, com as histórias da Literatura de Cordel, que sua avó lhe contava todos os dias antes de dormir. Também entram nesse imbróglio as aulas de catecismo, nas quais aprendeu sobre a condenação eterna dos ímpios no lago de fogo e enxofre. Acrescente-se ainda a tudo isso o seu grande fascínio por filmes de terror e seu excessivo gosto pela pesada música Heavy Metal.

Empenhou-se na superação do problema. Para isso, fez terapia, frequentou seitas e igrejas, buscou refúgio na meditação transcendental, recorreu à ioga, apelou às sessões de descarrego e até praticou os rituais mágicos dos anjos. Tudo em vão. O medo das labaredas infernais perseguia-lhe a alma à mercê de todo o seu esforço para se livrar dele.

Restava-lhe ainda a opção pelo ceticismo. Passou então a ler os filósofos existencialistas e niilistas. Em uma semana deglutiu toda a obra de Nietzsche. Debruçou-se ainda sobre Charles Darwin e outros cientistas da linhagem evolucionista. Leu seguidamente três vezes “O Mundo Assombrado Pelos Demônios”, de Carl Sagan. Por fim, rendeu-se ao ateísmo após a leitura de Richard Dawkins.

Sentia-se, finalmente, livre dos grilhões do inferno. Uma vez livre de Deus, pensava, não teria nenhum motivo para se preocupar com o diabo e menos ainda com o inferno.

Queria comemorar sua libertação. Convidou então os amigos da faculdade para uma festa à fantasia a ser realizada na mansão de um abastardo tio, que lhe cedera com a condição de que a devolvesse em perfeita ordem. O avô financiou o evento. Era ele um próspero comerciante da cidade, proprietário de uma grande madeireira e fabricante de móveis para uso doméstico.

A solenidade foi batizada de a “bacanália”, em referência à celebração realizada na antiga Roma, em honra a Baco, o inventor mitológico do vinho. Iniciar-se-ia às 21 horas do sábado.

Ficou devidamente formalizado que fosse barrada a entrada de quem não estivesse vestido a caráter. O consenso foi geral.

Sábado. Tem-se início à “bacanália”. O primeiro a chegar é um neandertal, seguido de uma bruxa e de um vampiro. O anfitrião está elegantemente de bombeiro, e sua namorada de deusa grega. Vieram em seguida Homer Simpson, Bob Esponja e a Mulher-Gato. Adiante chegaram a Chapeuzinho Vermelho, o Chapeleiro Louco, a Noiva Cadáver, entre outros ilustres personagens da fauna televisiva.

Meia-noite. O ambiente está euforicamente animado. Muita bebida, som estonteante, gritos e explosões de risos realçam o sentido das bacanálias dionisíacas.

- É a festa da libertação! grita com entusiasmo o bombeiro, enquanto é docemente acarinhado pela deusa grega.

Lá fora chove muito. Um forte ruído provocado por uma descarga elétrica  faz apagar a luz. Mais gritos e gargalhadas.  A festa continua dionisiacamente animada.

Alguém bate à porta. O anfitrião vai atender. Abre-a e dá de cara com o capeta com uma tocha acesa na mão. Tremendo e visivelmente atemorizado sai em disparada debaixo da chuva. Os raios cortam os céus. O cético desaparece na escuridão.


É o recomeço do seu inferno...

Fevereiro, 2014.

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