O CÉTICO
Manifestava um pavor obsessivo
pelo inferno, e de tal modo que a simples chama de uma vela causava-lhe
angustiosos arrepios. Era como se fossem chispas incandescentes a alertar-lhe
sobre o fatal destino dos pecadores.
Em consequencia disso passou a
sofrer de pirofobia, que é o medo mórbido do fogo. Não suportava cenas de
incêndio, e qualquer sinal de fumaça fazia estremecer seu corpo, acelerando-lhe
os batimentos do coração e lhe secando a garganta.
Não foi por outra razão que
abdicou de ser bombeiro, que era o grande sonho do pai. Imaginava incêndios
infernais devorando suas carnes, enquanto sirenes atordoantes anunciavam a
chegada do juízo final.
Não se sabe exatamente quando
e porque foi desencadeado todo esse sentimento de pavor. Suspeita-se que
principiou quando era ainda meninote, com as histórias da Literatura de Cordel,
que sua avó lhe contava todos os dias antes de dormir. Também entram nesse
imbróglio as aulas de catecismo, nas quais aprendeu sobre a condenação eterna
dos ímpios no lago de fogo e enxofre. Acrescente-se ainda a tudo isso o seu
grande fascínio por filmes de terror e seu excessivo gosto pela pesada música
Heavy Metal.
Empenhou-se na superação do
problema. Para isso, fez terapia, frequentou seitas e igrejas, buscou refúgio
na meditação transcendental, recorreu à ioga, apelou às sessões de descarrego e
até praticou os rituais mágicos dos anjos. Tudo em vão. O medo das labaredas
infernais perseguia-lhe a alma à mercê de todo o seu esforço para se livrar
dele.
Restava-lhe ainda a opção pelo
ceticismo. Passou então a ler os filósofos existencialistas e niilistas. Em uma
semana deglutiu toda a obra de Nietzsche. Debruçou-se ainda sobre Charles
Darwin e outros cientistas da linhagem evolucionista. Leu seguidamente três
vezes “O Mundo Assombrado Pelos Demônios”, de Carl Sagan. Por fim, rendeu-se ao
ateísmo após a leitura de Richard Dawkins.
Sentia-se, finalmente, livre
dos grilhões do inferno. Uma vez livre de Deus, pensava, não teria nenhum motivo
para se preocupar com o diabo e menos ainda com o inferno.
Queria comemorar sua
libertação. Convidou então os amigos da faculdade para uma festa à fantasia a
ser realizada na mansão de um abastardo tio, que lhe cedera com a condição de
que a devolvesse em perfeita ordem. O avô financiou o evento. Era ele um
próspero comerciante da cidade, proprietário de uma grande madeireira e
fabricante de móveis para uso doméstico.
A solenidade foi batizada de a
“bacanália”, em referência à celebração realizada na antiga Roma, em honra a
Baco, o inventor mitológico do vinho. Iniciar-se-ia às 21 horas do sábado.
Ficou devidamente formalizado
que fosse barrada a entrada de quem não estivesse vestido a caráter. O consenso
foi geral.
Sábado. Tem-se início à
“bacanália”. O primeiro a chegar é um neandertal, seguido de uma bruxa e de um
vampiro. O anfitrião está elegantemente de bombeiro, e sua namorada de deusa
grega. Vieram em seguida Homer Simpson, Bob Esponja e a Mulher-Gato. Adiante
chegaram a Chapeuzinho Vermelho, o Chapeleiro Louco, a Noiva Cadáver, entre
outros ilustres personagens da fauna televisiva.
Meia-noite. O ambiente está
euforicamente animado. Muita bebida, som estonteante, gritos e explosões de
risos realçam o sentido das bacanálias dionisíacas.
- É a festa da libertação!
grita com entusiasmo o bombeiro, enquanto é docemente acarinhado pela deusa
grega.
Lá fora chove muito. Um forte
ruído provocado por uma descarga elétrica
faz apagar a luz. Mais gritos e gargalhadas. A festa continua dionisiacamente animada.
Alguém bate à porta. O
anfitrião vai atender. Abre-a e dá de cara com o capeta com uma tocha acesa na
mão. Tremendo e visivelmente atemorizado sai em disparada debaixo da chuva. Os
raios cortam os céus. O cético desaparece na escuridão.
É o recomeço do seu inferno...
Fevereiro, 2014.
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