sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Bernardo Guimarães: "5 Poemas"

HINO À AURORA

E já no campo azul do firmamento
A noite extingue os círios palejantes,
E em silêncio arrastando a fímbria escura
Do tenebroso manto
Transpõe do ocaso os montes derradeiros.
A terra, de entre as sombras ressurgindo
Do mole sono lânguida desperta
E qual noiva gentil, que o esposo aguarda,
De galas se adereça.
Rósea filha do sol, eu te saúdo!
Formosa virgem de cabelos d'ouro,
Que prazenteira os passos antecedes
Do rei do firmamento,
Em seus caminhos flores despargindo!
Salve, aurora! - quão donosa surges
Nos azulados topes do oriente
Desfraldando o teu manto aurirrosado!
Qual cândida princesa
Que em desalinho lânguida se erguera
Do brando leito, em que sonhou venturas,
Tu lá no etéreo trono vaporoso
Entre cantos e aromas festejada,
Sorrindo escutas os melífluos quebros
Das mil canções com que saúda a terra
O teu raiar sereno.
Também tu choras, pois em minha fronte
Sinto teu pranto, e o vejo em gotas límpidas
A cintilar na trêmula folhagem:
Assim no rosto da formosa virgem
- Efeito às vezes de amoroso enleio -
Brilha através das lágrimas o riso.
Bendiz o viajor extraviado
Tua luz benigna que a vereda aclara,
E mostra ao longe fumegando os tetos
De alvergue hospitaleiro.
Pobre colono alegre te saúda,
Por ver em torno do singelo colmo
Sorrir-se vicejante a natureza,
Manso rebanho retouçar contente,
Crescer a messe, as flores desbrocharem;
E unindo a voz aos cânticos da terra,
Aos céus envia sua humilde prece.
E o desditoso, que entre angustias vela
No inquieto leito sôfrego volvendo-se,
Espia ansioso o teu fulgor primeiro,
Que lhe derrama nas feridas d'alma
Celeste refrigério.
A ave canora para ti reserva
De seu cantar as mais suaves notas:
E a flor, que expande o cálix orvalhado
As estremes primícias te consagra
De seu brando perfume...
Vem, casta virgem, vem com teu sorriso,
Teus perfumes, teu hálito amoroso,
Esta cuidosa fronte bafejar-me;
Orvalho e fresquidão piedosa verte
Nos ardentes delírios de minh'alma,
E desvanece estas visões sombrias,
Funestos sonhos da penada noite!
Vem, ó formosa... Mas que é feito dela?...
O sol já mostra na brilhante esfera
O disco ardente e a linda moça etérea
Que inda há pouco entre flores reclinada
Sorria-se amorosa no horizonte,
Enquanto a saudava com meus hinos
- Imagem do prazer, que breve dura, -
Se esvaeceu nos ares...
Adeus, esquiva ninfa,
Fugitiva ilusão, aérea fada!
Adeus também, canções enamoradas,
Adeus, rosas de amor, adeus, sorrisos...



PRELÚDIO 
  
 Neste alaúde, que a saudade afina,
Apraz-me às vezes descantar lembranças
 De um tempo mais ditoso;

 De um tempo em que entre sonhos de ventura
Minha alma repousava adormecida
 Nos braços da esperança.
Eu amo essas lembranças, como o cisne
Ama seu lago azul, ou como a pomba
 Do bosque as sombras ama.

Eu amo essas lembranças; deixam n'alma
Um quê de vago e triste, que mitiga
 Da vida os amargores.

Assim de um belo dia, que esvaiu-se,
Longo tempo nas margens do ocidente
 Repousa a luz saudosa.

Eu amo essas lembranças; são grinaldas
Que o prazer desfolhou, murchas relíquias
 De esplêndido festim;
Tristes flores sem viço! - mas um resto
Inda conservam do suave aroma
 Que outrora enfeitiçou-nos.

Quando o presente corre árido e triste,
E no céu do porvir pairam sinistras
 As nuvens da incerteza,

Só no passado doce abrigo achamos
E nos apraz fitar saudosos olhos
 Na senda decorrida;

Assim de novo um pouco se respira
Uma aura das venturas já fruídas,
 Assim revive ainda

O coração que angústias já murcharam,
Bem como a flor ceifada em vasos d'água
 Revive alguns instantes.


EU VI DOIS PÓLOS

Eu vi dos pólos o gigante alado
Sobre um montão de pálidos coriscos,
Sem fazer caso dos bulcões ariscos
Devorando em silêncio a mão do fado.

Cinco fatias de tufão gelado,
Figuravam na mesa entre os petiscos,
Envolto em crepe de fatais rabisco
Campeava o sofisma ensanguentado.

Quem és? Que assim me cercas de episódios
Lhe perguntei com voz de silogismo,
Brandindo um facho de trovões serôdios!

Eu sou, me disse, aquele anacronismo
Que a vil caterva de sulfúricos ódios,
Nas trevas sepultei de um solecismo.


NARIZ PERANTE OS POETAS

Cantem outros os olhos, os cabelos
E mil cousas gentis
Das belas suas: eu de minha amada
Cantar quero o nariz

Não sei que fado mísero e mesquinho
É este do nariz
Que poeta nenhum em prosa ou verso
Cantá-lo jamais quis.


ILUSÃO DESFEITA

Acabou-se o ardor antigo,
Tenho o peito sossegado;
Nem para fingir-me irado
Acho agora em mim paixão.
 (Tradução de Metastásio)

"Oh! acredita, nunca olhar de virgem
Coou-me n'alma tanto ardor assim;
Nunca amor me sorriu com tanta graça
Em lábios de carmim!

"Tu és o anjo sonhado que minha alma
Aos céus pedia; - a flor que em meus caminhos
Encontrei a sorrir pura e fragrante
Do mundo entre os espinhos.

"Pio romeiro, irei aos pés depor-te
Oferenda singela, porém fida;
A ti a lira e o coração do bardo!...
A ti a minha vida.

"Cantar-te as graças, e mandar teu nome
Unido ao meu aos séculos vindouros,
Seria para mim melhor que um trono,
Melhor que mil tesouros.

"Porém passar meus dias a teu lado,
Ouvir-te as falas, contemplar-te o riso,
Gozar teus mimos, fora para esta alma
Melhor que o paraíso!"

***

Assim dizia-te eu naquele dia,
- O mais doce talvez da minha vida,
Em que na meiga luz desses teus olhos
Minha alma vi perdida.

Foi um sonho fugaz; - breve delírio.
De novo tenho o coração vazio;
E se no peito meu a mão pousares,
Achá-lo-ás bem frio!..

Caíste enfim da região de encantos,
A que meus puros sonhos te elevaram;
Desfez-se o talismã; - foram-se enganos,
Que outrora me embalaram.

Perdeste um coração que te adorava...
Porém que importa? se por um, que esfria,
Mil outros corações após teus risos
Vão correndo à porfia.

Mas não receies que eu maldiga aquela
Que num momento a vida me dourara;
E que num pego de emoções bem doces
Outrora me entranhara.

Oh! não receies, não, que eu te maldiga;
Graças a ti, aprendo hoje por fim
A não crer tanto nos fagueiros risos
De uns lábios de rubim.

Proveitosa lição nos fica n'alma,
Quando a ilusão se esvai:
Deixa um fruto no ramo, em que nascera
A flor, que murcha e cai.


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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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