sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Basílio da Gama: "5 Poemas"

À NAU SERPENTE

Por ocasião de cair ao mar no Rio de Janeiro
em 8 de fevereiro de 1767
Já do lenho as prisões se desataram
E assustada serpente as águas trilha,
Já ondeia no mar a instável ilha,
E já no fundo as âncoras pegaram.
Os ventos sobre as asas se firmaram
Por ver de perto a nova maravilha,
E ao vasto peso da disforme quilha,
Gemeu Netuno, e as ondas s’encurvaram.
Verdes Ninfas azuis do pego undoso,
Conduzi pelos úmidos lugares
Esse errante edifício majestoso:
E entre tantas empresas singulares,
Veja o mundo qual é mais glorioso,
Dar leis à terra, se pôr freio aos mares.


A UMA SENHORA

Natural do Rio de Janeiro, onde se achava
então o Autor
Já, Marfiza cruel, me não maltrata
Saber que usas comigo de cautelas,
Qu’inda te espero ver, por causa d’elas,
Arrependida de ter sido ingrata.
Com o tempo, que tudo desbarata,
Teus olhos deixarão de ser estrelas;
Verás murchar no rosto as faces belas,
E as tranças d’oiro converter-se em prata.
Pois se sabes que a tua formosura
Por força há de sofrer da idade os danos,
Por que me negas hoje esta ventura?
Guarda para seu tempo os desenganos,
Gozemo-nos agora, enquanto dura,
Já que dura tão pouco a flor dos anos.


 
A RESIGNAÇÃO

Por ocasião do ser o autor condenado pelo
Tribunal da Inconfidência ao degredo
de África.
Temam embora a morte os que aferrados
Aos grossos cabedais, que possuíam,
Nunca tão de repente presumiam
Que lhes fossem das mãos arrebatados.
Sintam deixar co’a vida os começados
Muros d’altos palácios, que erigiam;
A cara esposa, os filhos, que cresciam;
Os brandos leitos; os tremós dourados.
Que eu sem bens e sem casa, vagabundo,
Mal coberto c’o manto da indigência,
Já não temo da morte o horror profundo.
No que me tira não me faz violência,
Que o melhor modo de sair do mundo
É cheio ou de miséria ou de inocência.


 
AO MARQUÊS DE POMBAL

Não temas, não, marquês, que o povo injusto
De teus grandes serviços esquecido,
Pelos gritos da inveja enfurecido
Solicite abolir teu nobre busto.
Para ser imortal teu nome augusto
Não depende do bronze derretido;
Em mais firmes padrões fica insculpido
Teu nome excelso, teu valor robusto.
Lisboa restaurada, o Reino ornado
De ciência, de indústria e de cultura,
De política e comércio apropriado:
A tropa regulada, a fé segura,
O tesouro provido, o mar guardado:
Eis aqui do teu gênio a cópia pura.


 
MORTE DE LINDÓIA

Um frio susto corre pelas veias
De Caitutu que deixa os seus no campo;
E a irmã por entre as sombras do arvoredo
Busca com a vista, e treme de encontrá-la.
Entram enfim na mais remota, e interna
Parte de antigo bosque, escuro e negro,
Onde, ao pé duma lapa cavernosa,
Cobre uma rouca fonte, que murmura,
Curva latada e jasmins e rosas.
Este lugar delicioso e triste,
Cansada de viver, tinha escolhido
Para morrer a mísera Lindóia.
Lá reclinada, como que dormia,
Na branda relva e nas mimosas flores,
Tinha a face na mão e a mão no tronco
Dum fúnebre cipreste, que espalhava
Melancólica sombra. Mais de perto
Descobrem que se enrola no seu corpo
Verde serpente, e lhe passeia e cinge
Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.
Fogem de a ver assim sobressaltados
E param cheios de temor ao longe;
E nem se atrevem a chamá-la e temem
Que desperte assustada e irrite o monstro,
E fuja, e apresse no fugir a morte.
Porém o destro Caitutu, que treme
Do perigo da irmã, sem mais demora
Dobrou as pontas do arco, e quis três vezes
Soltar o tiro, e vacilou três vezes
Entre a ira e o temor. Enfim sacode
O arco e faz voar a aguda seta,
Que toca o peito de Lindóia e fere
A serpente na testa, e a boca e os dentes
Deixou cravados no vizinho tronco.
Açoita o campo com a ligeira cauda
O irado monstro, e em tortuosos giros
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.
Leva nos braços a infeliz Lindóia
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece, com que dor! no frio rosto
Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito.
Os olhos, em que Amor reinava, um dia,
Cheios de morte; e muda aquela língua,
Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes
Contou a larga história de seus males.
Nos olhos Caitutu não sofre o pranto,
E rompe em profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mão já trêmula gravado
O alheio crime, e a voluntária morte.
E por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.
Inda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado, e triste,
Que os corações mais duros enternece.

Tanto era bela no seu rosto a morte!


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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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