sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Antônio Gomes Leal: "5 Poemas"

CARTA ÀS ESTRELAS

Ninguém soletra mais vossos mistérios
Grandes letras da Noute! sem cessar...
Ó tecidos de luz! rios etéreos,
Olhos azuis que amoleceis o Mar!...

O que fazeis dispersas pelo ar?!...
E há que tempos há já, fogos sidéreos,
Que ides assim como uns brandões funéreos
Que levais o Deus Padre a sepultar?!

Há que tempos, dizei! - Há muitos anos?...
E, com tudo, astros santos, desumanos,
A vossa luz é sempre clara e igual!

Há muito, que sois bons, castos, brilhantes!...
— Mas, também... ó cruéis! sempre distantes...
Como dos nossos braços o Ideal!



"EPITÁFIOS"
 De uma cocotte

Como era bom pompear, em carros a Daumont,
sensacionais chapéus!
Mas lá no céu cristão que falta de bom-tom!
Não se usa lá carmim, pó-de-arroz, nem lorgnon,
nem se bebe Bordéus!...

De uma mundana

Rainha dos salões, mais formosas que as lendas
feéricas do Erin!
O que te há de afligir nestas horas tremendas
é aparecer a Deus sem peignoir de rendas
e sem pôr o teu carmim.

Da Rigolboche

Deusa do bacanal, foste a amável Naná,
ruidosa do bom tom.
E se acaso, nos céus, se baila como cá,
decerto já piscaste um olho a Jeová,
dançando o cotillon.


ROMANTISMO

Quando ergue o transparente da janela,
Ou que o seu quarto se inundou de luz,
Eu amo vê-la, sedutora e bela,
— Longos cabelos sobre os ombros nus.

Oh como é bela! e como a fico a olhar,
Dos seus cabelos desatando a fita!...
Lembram-me as virgens que do austero Ermita
Vinham as noites de orações tentar.

Oh como é bela! - Tem na luz do olhar
Quais violetas quando as fecha o sono,
Não sei que doce e lânguido abandono,
Não sei que vago que nos faz cismar!...

Como eu a espreito, palpitante o seio,
Como eu a sigo nos seus gestos vários,
Naquele quarto, aquele ninho cheio
Da doce voz dos joviais canários!...

Como eu quisera ser, nos sonhos dela,
Um rei das lendas, o fatal D. Juan,
pirata mouro, em galeões à vela
Como minaretes sob o céu do Iran!...

Como eu quisera - e que vontade intensa!-
Só pelo brilho dessa longa trança,
Ser cavaleiro de invencível lança,
Ou rei normando duma ilha imensa!...

Como eu quisera, no seu pensamento,
Ser o rei bardo no rochedo duro,
E ambos, fugindo, recortar o vento,
Sobre a garupa dum cavalo escuro!...

Se me morresse, que comprido choro!
Como vergara sob a cruz de Malta!
Como eu deitara a minha trança d’Ouro,
Por causa dela, duma torre alta!...

***

E assim por ela fico preso, enquanto
O sol se esconde no ocidente triste...
Um cravo murcha, numa jarra, a um canto,
- E as aves voam, debicando o alpiste.


AUTÓPSIA DO AMOR

O Amor — essa paixão romanesca e fagueira —
que os vates têm cantado em bemol comovido,
é, na forma, uma coisa assaz brusca e grosseira,
como o assalto da fera e o ataque do bandido.

Tal e qual como o lobo ataca uma cordeira,
a empolga e lhe crava o colmilho atrevido,
assim ataca o Amor. — São da mesma maneira
o Espasmo, a Fúria, o Uivo, o Estertor, o Rugido.

Nas contorções do Cio e os seus enlaçamentos,
há o ardor da Serpente, a enroscar-se nas preias,
e a estrangular o touro enorme e mugidor.

E quer cheire ao sertão, ou da Lais aos unguentos,
Nos rosais, num covil, ou de Nero nas ceias,
— são sempre os mesmos ais, o Pranto, o Espasmo, a Dor.


A CIDADE

Em vão busco na velha e hostil Cidade,
Beata amante, de gangrenas cheia,
As dispersas raízes da Verdade,
Como uma flor, num pátio de cadeia.

Quando, alta noite, D. Juan passeia,
Ela põe-lhe em leilão a mocidade...
Tratada com a mística ansiedade,
Com que um sábio cultiva a flor da Ideia.

Mas, contudo, ninguém receia tanto
O áspero Deus e o lenho sacrossanto
Da dorida tragédia do Calvário...

E, ó D. Juan, às luzes das estrelas,
Tu bem sabes se encontras, nas ruelas,

Mais de uma vez, perdido algum rosário!...


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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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