sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Antônio Feliciano Castilho: "5 Poemas"

CONVITE PARA A FELICIDADE

Ditoso, Júlia, ditoso,
quem livre de inquietação
come os frutos que semeia,
e dorme no seu torrão;

que desconhece das cortes
intriga, esperança e receios,
que julga acabar-se o mundo,
onde acabam seus passeios.

Penúria e riqueza ignora,
dois escolhos da virtude,
e tira do seu trabalho
bens, prazer, vigor, saúde.

De iguais rodeado vive,
e só tem por superior
seu Criador no outro mundo,
na paróquia o seu pastor.

As aras jamais incensa
de Astreia, Minerva ou Marte,
mas Baco e Pomona e Ceres
lhe riem de toda a parte.

Mais apertado não vive
na avita cabana herdada,
que o rico em salões de estuque,
de alta, soberba fachada.

Em vez de jardins estéreis,
faz consistir seu prazer
em lhe à porta verdejarem
as couves que fez nascer.

Dorme em colmo um sono inteiro,
enquanto, em doirado leito,
o nobre se volve, e geme,
de aflição ralado o peito.

Ao lado lhe dorme a esposa,
fiel, inocente e bela;
o filhinho, imagem sua,
dorme em paz ao seio dela.

Se ela lhe diz: – eu te adoro,
eu te amarei toda a vida! –
de ser verdade o que escuta
nem um momento duvida.

Sabe que a fé, que a virtude,
virtude pura, ilibada,
dons mais belos que a beleza,
são numes da sua amada.

Ela não vive no meio
da corrupta mocidade,
que adorna, envenena, empesta,
das cortes a sociedade.

Não quer brilhar nos passeios,
nem de mil adoradores
vai disputar nos teatros
os suspiros e os louvores.

Passa a noite ao pé do esposo,
entre os filhos passa o dia,
o trabalho a ocupa sempre:
ser infiel poderia?

Da sua família é toda,
nela concentra a afeição,
que as damas à intriga, às festas,
ao jogo, aos enfeites dão.

Quer-se ornar nos santos dias?
Não se assenta ao toucador
em vez de jóias brilhantes
procura singela flor.

Para arranjar seus cabelos,
nem corre ao cristal da fonte;
não carece de outro espelho,
tem seu consorte defronte.

Ele lhe ensina a maneira
por que lhe ficam melhor;
ele lhe diz em que sítio,
e como lhe ajusta a flor.

Se lhe agrada, está contente;
e vai de inocência cheia
entrar com ele nas festas,
nas festas simples da aldeia.

Ah, Júlia! Que sorte a de ambos!
Sem longas filosofias,
sabem melhor do que os sábios
desfrutar serenos dias.

Os princípios, os sistemas,
sonhos de estéril vaidade,
jamais tornaram ditosa
a mesquinha humanidade.

Se existe o bem sobre a terra,
se queres, Júlia, este bem,
uma aldeia... uma cabana...
ternura... inocência... Ah, vem!


 
DEFENSA DE UM INCONSTANTE
(Cançoneta)

Desterra teus vãos ciúmes,
festejo a quantas são belas
mas sempre a rainha delas
és tu, Armânia cruel.

De teu semblante as lindezas
adoro noutros semblantes:
são meus passos inconstantes,
é meu coração fiel.

Não to nego, com Armia
falo às vezes em segredo;
não to nego, este arvoredo
viu-me com Lília brincar:

Porém com Lília só brinco,
por ter nos brincos teus modos;
de Armia os segredos todos
os teus me fazem lembrar.
..........................................
Se a Ismene pedi cabelo,
foi só por também ser louro;
fui rico do teu tesouro,
sem o obter da tua mão.

Amo em Gertrúria o teu riso,
amo os teus olhos em Jônia,
preso nas cartas de Aônia
tua escrita e discrição.

Um só coração me coube,
e tu és a flor das belas!
Nem mesmo entre os braços delas
te fora infiel jamais.

Por distração tenho às outras
vezes mil teu nome dado;
e até hoje inda a teu lado
não tive enganos iguais!

Meu pensamento amoroso
é qual Fovônio entre as flores,
que, a mil sussurrando amores,
elege a rosa entre mil;

Por todo um jardim vagueia,
mas guarda a afeição saudosa;
passa, e lembra-nos da rosa,
da rosa ingênua e gentil.

Quanto mais julgas, ingrata,
perder a tua conquista,
tanto mais se aumenta a lista
dos teus triunfos sem par.

De meu coração te queixas
serem sem conto as rainhas!
São escravas, que não tinhas,
que vão teu carro puxar.

Dez Análias te abandono,
Jônias duas, seis Temires,
e após estas quantas vires
de semblante encantador.

Armânia, sobre áureas rodas,
por tuas rivais tirada,
sobe, de mirto coroada,
ao Capitólio de amor!

Lá, sobre as aras do nume,
jura um prêmio aos meus ardores.
Quanto amará teus favores
quem tanto os desdéns te amou!

Depois, sofre que ame sempre
em teu sexo a todos grato
os pedaços de um retrato
que a natureza quebrou.

 

OS TREZE ANOS
(Cantilena)

Já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro:
Madrinha, casai-me com
Pedro Gaiteiro.

Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já bailo ao domingo
com as mais no terreiro.

Já não sou Anita,
como era primeiro;
sou a Senhora Ana,
que mora no outeiro.

Nos serões já canto,
nas feiras já feiro,
já não me dá beijos
qualquer passageiro.

Quando levo as patas,
e as deito ao ribeiro,
olho tudo à roda,
de cima do outeiro.

E só se não vejo
ninguém pelo arneiro,
me banho com as patas
ao pé do salgueiro.

Miro-me nas águas,
rostinho trigueiro,
que mata de amores
a muito vaqueiro.

Miro-me, olhos pretos
e um riso fagueiro,
que diz a cantiga
que são cativeiro.

Em tudo, madrinha,
já por derradeiro
me vejo mui outra
da que era primeiro.

O meu gibão largo,
de arminho e cordeiro,
já o dei à neta
do Brás cabaneiro,

Dizendo-lhe: “Toma
gibão, domingueiro,
de ilhoses de prata,
de arminho e cordeiro.

A mim já me aperta,
e a ti te é laceiro;
tu brincas com as outras,
e eu danço em terreiro”.

Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro.

Já não sou Anita,
sou a Ana do outeiro;
Madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Não quero o sargento,
que é muito guerreiro,
de barbas mui feras
e olhar sobranceiro.

O mineiro é velho;
não quero o mineiro:
Mais valem treze anos
que todo o dinheiro.

Tão-pouco me agrado
do pobre moleiro,
que vive na azenha
como um prisioneiro.

Marido pretendo
de humor galhofeiro,
que vive por festas,
que brilhe em terreiro.

Que em ele assomando
com o tamborileiro,
logo se alvorote
o lugar inteiro.

Que todos acorram
por vê-lo primeiro,
e todas perguntem
se ainda é solteiro.

E eu sempre com ele,
romeira e romeiro,
vivendo de bodas,
bailando ao pandeiro.

Ai, vida de gostos!
Ai, céu verdadeiro!
Ai, páscoa florida,
que dura ano inteiro!

Da parte, Madrinha,
de Deus vos requeiro:
Casai-me hoje mesmo com
Pedro Gaiteiro.

CÂNTICO DA NOITE

Sumiu-se o sol esplêndido
Nas vagas rumorosas!
Em trevas o crepúsculo
Foi desfolhando as rosas!
Pela ampla terra alargar-se
Calada solidão!
Parece o mundo um túmulo
Sob estrelado manto!
Alabastrina lâmpada,
Lá sobe a lua! Entanto
Gemidos d’aves lúgubres
Soando a espaços vão!
Hora dos melancólicos,
Saudosos devaneios!
Hora que aos gostos íntimos
Abres os castos seios!
Infunde em nossos ânimos
Inspiração da fé!
De noite, se um revérbero
De Deus nos alumia,
Destila-se de lágrimas
A prece, a profecia!
A alma elevada em êxtase
Terrena já não é!
Antes que o sono tácito
Olhos nos cerre, e os sonhos
Nos tomem no seu vórtice,
Já rindo, e já medonhos,
Hora dos céus, conserva-me
No extinto e no porvir.
Onde os que amei? sumiram-se.
Onde o que eu fui? deixou-me.
Deles, só vãs memórias;
De mim, só resta um nome:
No abismo do pretérito
Desfez-se choro e rúy
Desfez-se! e quantas lágrimas
Brotaram de alegrias! Desfez-se!
e quantos júbilos
Nasceram de agonias!
Teu curso, ó Providência,
Quem no previu jamais?
Que horas dest’hora tácita
Me irão desabrochando?
Quantos nos fêz cadáveres
Num leito o sono brando!
Vir-me-ão co’a aurora próxima
As saudações, os ais?
Se o penso, tremo, aterro-me;
Porém, se ao Pai Supremo
Remonto o meu espírito,
Exulto; já não tremo,
A alma lhe dou; reclino-me
No sono sem pavor. Chama-me?
Ascendo à pátria; Poupa-me?
Aspiro a ela.
Servir-te! ou ver-te e amarmo-nos!
Que sorte, ó Deus, tão bela!
Vem, cerra as minhas pálpebras,
Virgem do casto amor!


A NOITE DO CEMITÉRIO
Un cemetière aux champs !
Quel tableau | quel trèsor !
(LERGOUVÊ. La Mélancolie)

Neste lugar solitário
Que faz mais saudosa a noite,
Quero que ao mundo fugido
O meu coração se acoite.

Enquanto o silêncio umbroso
Envolve o meu hemisfério,
Venho sentar-me sozinho
Da morte no ermo império.

…………………………..

A noite reina; já tudo
Dorme na próxima aldeia;
A imensidade do espaço
Se aclara co..a lua cheia.

……………………………

Já na terra se descrevem
Os vastos, fendidos muros;
Já pelo chão se retratam
Longos ciprestes escuros.

Enquanto aos ciprestes esguios troncos
Altos espectros se abraçam,
Ou com mil formas terríveis
Ante mim calados passam,

Enquanto larvas aéreas
Ao luar sentar-se vão,
Além, de escalvados crânios
Sobre terrível montão;

Nestas ervas recostado,
Neste deserto profundo,
Conversei c..os finados,
Filhos outrora do Mundo.

Aqui onde há pouco a terra
Parece que foi volvida,
Que humano dorme? Que humano
Saiu há pouco da vida?

Em nome dos céus responde;
Abre a terra; a pouco e pouco
Se levanta; a voz desprende
Do peito gelado e rouco.

Quem és? Não temo; declara:
Avança, tudo aqui dorme.
Olha em torno tudo é noite;
Avança fantasma enorme.

Vem-te assentar ao meu lado,
Aumenta-me o meu terror;
De tuas compridas roupas
Que importa o medonho alvor?

Nem teu olhar agoireiro?
Nem teus vagarosos pés?
Nem tuas mãos descarnadas?
Nem tua palidez?

Mas que som se escuta ao longe!
Os galos cantam na aldeia,
Os galos? Vai pois a noite
Apenas correndo em meia.

……………………………….

Porque pois de mim te afastas,
Fantasma? Porque te esvais?
Deixou-me; somente escuto
Ao longe seus frouxos ais.

Tornou-se ao perpétuo leito,
Dorme no seio do nada,
Ante meus pés, nesta terra
Recentemente cavada.

Mas quem é?... Não, não me engano:
A última que aqui veio,
Foi tenra, inocente virgem,
Trança escura e branco seio.

Por pouco que a minha dextra
Este terreno escavasse,
Daria co..as mãos unidas
Tocaria a fria face.

Outrora Ninfa entre os homens,
Outrora os passos movia,
Era das festas a glória,
Dançava, cantava e ria.

De amores lisonjeiros
Vivia sempre cercada,
Com descantes amorosos
Era à noite acalentada.

Agora dorme esquecida,
Agora, já não é bela,
Ninguém celebra o seu nome,
Ninguém suspira por ela.

……………………………….

Tudo o que é belo entre os homens,
Aqui recebe a impressão
De afetos tristes, mas doces,
Bem doces ao coração.

Tudo o que é belo entre os homens
Aqui é belo, mas triste;
Todo o prazer neste sítio

Todo em lágrimas consiste.


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Fonte
"Toda a Poesia: Antologia Poética". Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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