A VELA DOS
NÁUFRAGOS
Ao Dr. Gama Rosa
I
A lestada amainara
após seis dias de fúria tremenda, em que o pequeno arraial dos Ingleses jazera,
agachado e tranzido, sob as bátegas diluviais e os espessos nevoeiros. A costa
toda, desde a Lagoinha até a Ponta Grossa, estivera abandonada e deserta, sob a
ação aterradora dos vagalhões revoltos, estourando, dia e noite, em cachões
espumantes, que alagavam as praias, os baixios e os cômoros, turbilhonando
ululantemente sobre os mais altos cabeços. Tudo ficara abandonado, parado ao
Deus dará por aquela semana; nenhuma rede se arriscara no meio da tormenta;
cessara de todo o trabalho. E a pobre e laboriosa população do lugar, condenada
à inação, permanecera penosamente durante esses dias, que se arrastavam longos
e cheios de miséria, tomada de tédio, encolhida, apinhada em casa, tremendo de
frio em rodados braseiros em chamas.
Mas voltara o bom
tempo. Uma madrugada de ouro, uma dessas maravilhosas madrugadas catarinenses
no litoral atlântico, vinha resplandecendo feericamente. O céu, no alto,
arqueava-se todo azul, do azul ideal e transparente de uma velha faiança
holandesa. As praias límpidas e curvas, e os cordões sucessivos dos cômoros
extensos, destacavam magnificamente à luz, numa alvura cegante de trigo. E a
planura verde do mar, levemente ondulada, na estagnação de uma vasta calmaria,
estendia-se para todos os lados, aqui e além mosqueada de altos relevos de
ilhas encravadas em grandes anéis movediços da espuma. A costa inteira tinha de
novo a alegria e o alvoroço das manhãs de bonança: pelos ranchos, reuniam-se
já, numa ruidosa algazarra marítima, os pequenos grupos de roceiros e
pescadores do sítio; canoas grandes de rede, carregadas e prontas, tomada a
palamenta, aguardavam a faina, sobre grossos rolos de madeira; velas curvas em
bojo cruzavam ao longe, num voo branco, como grandes asas ligeiras; e uma
embarcação maior, um iate, que parecia o Andorinha, do Joaquim Patesca,
bordejava a todo pano, em direção ao porto, na altura do Arvoredo.
Então, a Maria
Virgínia, que esquadrinhava minuciosamente o mar desde muito cedo do alto do
pequeno terreiro da casa, seguindo atentamente o navio, mal o viu aproximar-se,
na atitude de dar fundo, começou a descer apressada a encosta até à venda do
Lemos, a colher notícias do Espadarte, o brigue onde andava o
marido, o Manuel Siqueira, e que arrancara para o Rio Grande na véspera da
medonha tormenta. Estava abatida, emagrecida, desfeita, a pobre rapariga, que
ainda há três anos era a primeira beleza dos Ingleses. Tinham-na posto nesse
estado os dois filhos que criava, dois hercúleos fedelhos rosados, de um louro
rembrandtesco, e os cuidados, os temores e as aflições daquela semana, em que a
sua alma não tivera sossego, a se debater, à noite, em meio de pesadelos
horríveis, em que, por vezes, flutuavam, como num quadro estranho de Doré, um
casco de navio perdido e a imagem amada do marido, abandonada e náufraga, num
desespero, sobre as ondas do mar em fúria. Percorrendo nervosamente o tortuoso
atalho vermelho, que se torcia entre a verdura espessa, ela não tirava, um
instante só, o olhar ansioso de sobre as vagas verdes onde, agora, um pequeno
batelão a remos vogava a toda para terra: estugava o passo com esforço, para
colher as notícias dos próprios marinheiros, falar-lhes, perguntar-lhes de onde
vinham, e se tinham apanhado a tormenta. Mas o atalho deprimia-se aí até cair
na estrada do rei, distante ainda muitas braças dos cômoros, e o batelão, já
contra a costa, sumira-se-lhe da vista que, nesse instante, apenas alcançava
uma esteira branca de espuma smorzando saudosamente para além...
No porto, um grupo
de homens aglomerava-se já em torno da pequena embarcação, em que vinham dois
tripulantes do iate e o contramestre Pedro, um rapaz dos Morretes, que lidava
no mar de menino e era muito conhecido e estimado em toda aquela vizinhança. De
pé, à popa do batelão, o grosso tórax possante atacado numa ampla camisa de
flanela azul, com belo peito escarlate em forma de lira e ornado de bolso, o
boné carregado sobre os olhos, gritou:
— Ó gente, cá estamos de novo! Tudo a salvamento... Felizmente, desta
vez, ainda o mar rejeitou-nos!
De um pulo destro
saltou, distribuindo aqui e ali apertos de mão, falando a um e outro, todo
risonho, numa rude expansão de marítimo; e avistando o Lemos à porta da venda,
rotundo e rubro na sua camisa de algodão grosso:
— Olá! Olha uma bela pinga da branca!
E rompeu, praia
acima, a fortes passadas gigantes, que faziam cantar vivamente, sob as solas
das botas, a alva areia escaldante.
A Maria Virgínia
chegou à praia exausta, ofegante, as pernas trêmulas, quase a cair de fadiga.
Quando entrou na venda, o contramestre Pedro, cercado de povo, a fisionomia
animada, loquaz e gesticulante, perorava, com ardor, sobre o temporal.
— Havia muito tempo, dizia, não se sabia de tamanha borrasca
ao sul. Nem na costa de Laguna, nem em Itajaí, nem na barra do Rio Grande...
Fazia já vinte anos que ele se batia com o mar, em inúmeras latitudes, sob
aguaceiros e trovoadas medonhas, mas jamais vira tanto vento e tamanhos
vagalhões. Verdadeiras montanhas d'água, deslocando-se, esbarrando-se numa
fúria dos demônios... Bordejava para fora, na Barra Velha, quando a lestada
caiu. A princípio, aguentou-se com pouco panovela grande nos rizes e bujarrona,
— a ver no que dava aquilo. Mas o iate era um
cabrito —
saltava, empinava-se, investia na vaga ameaçando ir a pique. Tentou uma
arribada, porém a costa toda sumira-se: nevoeiros densos amortalhavam tudo,
carregados de cinza. Então pôs-se à capa, e toca a rolar para aí... Seis dias e
seis noites vogou perdido, aos tombos, no redemoinho das águas. Ninguém parava,
ninguém dormia, numa faina incessante. Até que, naquela manhã, a borrasca
amainara de todo e, sem saber como, por um acaso imprevisto, quase um milagre,
avistou terra, por barlavento, à distância de milhas. Reconheceu logo o
Arvoredo, os Ingleses, e puxara todo à bolina. E ali estava, graças a Deus, são
e perfeito, com aquela casca de noz do Andorinha e toda a sua
companhia...
Quando ele acabou,
a Maria Virgínia, que ouvira tudo atentamente, imóvel e muito pálida, o coração
palpitante, acercou-se, por entre os homens; e, saudando-o, numa voz doce e
trêmula, cheia de emoção:
— Então, por aqui, depois de tantos trabalhos, hein? Que desgraças por esse
mar! E que grande lestada, nem o temporal de Março de que falava a mãe! Nunca
se vira uma coisa assim! Ali, no arraial, fora uma calamidade, parecia que era
o fim do mundo! E como ele escapara, com tantos perigos, tantas aflições? Só
por Deus, só por Nossa Senhora dos Navegantes!...
— É verdade, Marica, graças ao Pai do Céu, escapamos...
E, num gesto da sua
mão hercúlea, descobriu-se, deixando ver a bela testa tisnada, toda aureolada
de espessos caracóis castanhos.
Em seguida, ela
contou-lhe, num grande abalo íntimo, em frases entrecortadas e soluçantes, os
lindos olhos negros arrasados de pranto, que o que a levara até ali fora a
profunda ânsia em que estava por “alguma nova”
do Siqueira, que se fizera ao mar um dia antes de cair aquele “inferno de tempo”. De certo, andara rolando também, aos trambolhões,
por esses mares de Deus... E quem sabe o que lhe teria sucedido sobre as ondas
em sanha?... Desde que aquilo desabara, não parara um instante, inquieta, num
desespero contínuo, passando os dias e as noites junto ao oratório, rezando. E
não sabia porque, mas, “por dentro”, uma coisa lhe dizia que tinha havido um
desastre, alguma desgraça, pois sentia como um “peso”
terrível sobre o coração.
E desatou a chorar
alto, perdidamente, batida de uma rajada de dor.
O Pedro, com a sua
bondade de gigante, sensibilidade incomparável e santa de todos os marujos,
cujas almas vivem perpetuamente carregadas de amor, de ternura, da nostalgia
sem fim do oceano, ficara logo com os seus grandes olhos azuis mareados de
lágrimas; e, atarantado, num enleio, numa perturbação, mal podia dizer
meigamente:
— Que, infelizmente, não encontrara um só navio, uma única
vela, durante a terrível viagem, mesmo porque era impossível distinguir coisa
alguma em meio à cerração. Mas que não se amofinasse, não perdesse a esperança.
O Siqueira era um marinheiro às direitas, conhecia o mar como as palmas das
mãos. Depois, o Espadarte era navio de aguentar todo o tempo; aquilo era
seguro como um rochedo; para ele não havia vagalhão. Certamente a lestada fora
de tremer, mas não faltavam recursos para um bom mareante: havia a capa, havia
o encalhe em um costão de remanso e, se nada disso se pudesse alcançar, era dar
à popa e deixar-se levar sobre as águas, aos trancos... Não! Que ela não
pensasse em desgraças! Era uma tolice! O Siqueira, àquela hora, talvez
estivesse chegando ao Rio Grande...
Sob estas palavras,
que lhe caíam docemente na alma, como um alívio, uma consolação, a Maria
Virgínia foi pouco a pouco serenando; mas lembrando-se de repente de que os
pequeninos, os filhos, tinham ficado sozinhos lá em cima com a mãe, coitada,
que vivia paralítica, a um canto, quase sem se poder mover, despediu-se imediatamente:
— Ora, há de ser o que Deus quiser... E adeusinho, Pedro; até depois. Olha,
aparece lá em casa. Assim que puderes, dá uma chegadinha ao morro. A mamãe há
de gostar de te ver...
E saiu correndo,
num movimento adorável dos quadris cheios, da cinta estreita e do lindo busto
alto onde o seu pescoço bem feito e o moreno rosto escultural se erguiam
deliciosamente em meio da luz radiante.
II
Daí a quinze dias,
pela manhã, espalhava-se por todo o arraial dos Ingleses a lutuosa notícia de
que o Espadarte tinha ido a pique, uma madrugada, a vinte milhas do cabo
de Santa Marta, tendo perecido nele o contramestre, o gajeiro grande e o
capitão Siqueira. Soubera do caso o filho do Patesca, que viera da cidade onde
estivera com os tripulantes que haviam escapado, e que de certo chegariam ali
pela tarde, porque vinham por terra, de sítio em sítio, em procissão com a
gávea, a tirar esmolas para uma promessa à Senhora dos Navegantes. Um deles, o
Manuel Figueira, narrara-lhe, na véspera, como se dera o naufrágio.
O navio abrira
água, um dia antes do sinistro, com dois mares de través, que o alagaram de
popa, ao desfazer de uma capa. Mas, com as bombas a trabalhar incessantemente,
aguentara ainda até à noite seguinte, em que a guarnição, já exausta, largou
tudo por mão, e o brigue entrou a se sentir mal sobre as vagas. Os marinheiros
começaram então a tratar da salvação, ensacando provisões, entrouxando a roupa,
arranjando os objetos náuticos mais necessários —
remos, velame, cabos — safando ao mesmo tempo as talhas do escaler pequeno e da
lancha grande de carga, a fim de os poderem arriar ao primeiro sinal. E as
horas corriam, sob o fragor clamoroso do mar e a negrura densa da noite
insondável... De repente, um marinheiro, que descera ao rancho, deparou com o
porão cheio d'água e, voltando, correra à ré, a dar parte ao contramestre que
estava ao leme, enquanto o capitão, a um bordo, contra a balaustrada, com os
olhos fisgados na noite e nas ondas, acenava, a espaços, com o braço gritando: orça!
alivia! para evitar as montanhas de mar embatendo em assaltos gigantes...
Nessa ocasião, já o navio ameaçava soçobrar, em horríveis balanços. Eles,
imediatamente, lançaram o escaler e a lancha fora das amuradas, destacando o
gajeiro grande para a popa, a prevenir o capitão de que tudo estava pronto a
largar. Porém, nisso, um vagalhão terrível inopinadamente rebentou sobre
o salto, avançando, carregando tudo num turbilhão formidando... Ouviram-se
gritos... O brigue medonhamente enterrava-se, de alheta, erguendo a proa
balouçante. Eles, alucinados, num estranho pavor no meio do tumulto infernal,
cortaram logo as talhas, e, a toda força de remos, aguentaram para o largo, à
distância... Quando o dia alvorou, já em calma, nada mais se avistou sobre o
mar, além deles e do disco ermo e nostálgico do horizonte ao longe...
E a viva narração
do marinheiro voava de boca em boca, eletricamente, despertando enternecimentos
e lágrimas pelas casas, os engenhos e os ranchos, e adquirindo, a cada nova
edição oral, cores e linhas estranhas.
À casa da Maria
Vírgínia já haviam acudido os parentes, as amigas e toda a vizinhança — e as portas e as janelas cerradas, deixavam escapar
desoladoramente, apesar do belo sol da manhã, um coro abafado e lúgubre de
vozes soluçantes.
A pobre rapariga
recebera o grande golpe aflitivo logo ao amanhecer, quando, como de costume,
depois da tempestade, postada ao paredão do terreiro, esquadrinhava, com um
longo olhar melancólico, a linha clara do horizonte. Levara-lhe a dolorosa
comunicação uma comadre sua, a Josefa Dutra, que passara ainda escuro pela casa
do Patesca, onde se detivera a tomar o “aparado” e a
descansar da longa caminhada que trazia, desde o cantar do galo, lá do Rio Vermelho,
onde estivera em busca de remédios para o marido, caído com as sezões, havia
dois meses. Desde esse instante até aquela hora, a Maria Virgínia se debatia,
em gritos, numa ânsia e num desalinho, na agitação do desespero, inconsolável,
aturdida e perdida no fundo do seu infortúnio. Todos a rodeavam afetuosamente,
procurando acalmá-la com palavras meigas e enternecidas, que envolviam uma
imensa consolação de carinhos — palavras
deliciosas, palavras santas, que são, na desgraça, como um vasto manto
aconchegante de plumas e um suave, incomparável bálsamo bendito!...
A casa inteira
parecia também envolta na rajada sinistra, em meio à desolação: de todos os
lados, de todos os cantos, erguia-se, funerariamente, na desordem das coisas,
como uma levada tumultuosa de sofrimentos, que se desprendia do choro
inconsciente das criancinhas órfãs e do soluçar rouquejante da pobre avó
paralítica. Até na cozinha as velhas pretas da casa faziam um coro vivo de
pranto. E a imensa aflição deste lar humilde ecoava lutuosamente por aquelas
cercanias onde, como em todos os sítios, a vida corre docemente enlaçada, na
solidariedade fraternal de uma mesma família, compartilhando igualmente as
alegrias e as privações.
Mas o dia
encaminhava-se para a tarde e a luz desbotava lentamente num dourado esvaído.
Pelos morros, distinguiam-se os grandes lençóis coloridos das rocas, onde
predominavam intensamente o verde negro da mandioca e o louro seco dos milhos.
E na serenidade do ar erguia-se, por vezes, um vago trêmulo amoroso de
campesinas cantigas. Pela costa, canoas de rede, na faina intensa da pescaria,
iam traçando incessantemente, sobre a lousa verde do mar em calma, longos
hieróglifos de giz. Pequenas velas ao longe abriam melancolicamente o triângulo
claro e vogador da sua asa alígera. E no horizonte além, a saudosa neblina de
pérola das águas longínquas...
De repente, vozes
frescas de rapazes estalaram lá embaixo, no caminho:
— Olha uma vela de navio! Olha uma vela de navio! E a gente
do Espadarte... Aí vem!...
E logo a notícia de
que os náufragos tinham chegado espalhou-se por todo o sítio dos Ingleses.
Efetivamente, na
encruzilhada da praia, de onde partia um ramal de estrada branco e arenoso
estendendo-se pelo litoral até à Ponta das Canas e a Cachoeiras, um grupo
triste de homens descalços, em camisa, o boné sob o braço, as calças
arregaçadas, apertadas na cinta escarlate dos marujos, avançava, conduzindo à
mão, pelas carregadeiras, o pano grande de uma verga. Molhos de rosas e palmas,
deitados decerto por mãos piedosas de roceiras trigueiras — mães, filhas, noivas e irmãs — na passagem pelos sítios,
perfumavam, enfeitavam risonhamente aquela velha lona que fora outrora, no alto
das mastreações, tão amada do sol e dos ventos do oceano.
O préstito
caminhava cantando. Era uma dessas canções embaladas e monótonas, de uma
cadência acre da onda em tormenta, implorativas, convulsas, ansiosas, de uma
nostalgia sem termo. Cada estrofe dizia, primeiro, o rugir dos ventos, o
espumar dos vagalhões em fúria, o despedaçar dos lenhos; depois, os gritos, as
pragas duras, blasfemas, os fundos desesperos da marinhagem impotente, em luta
brutal com os elementos. Mas o estribilho ritmado e frequente, tinha uma
mansidão suplicante, o ansiar resignado de íntimos sofrimentos, a doçura
suavíssima de uma prece plangente:
Senhora dos
Navegantes,
Amparai-nos lá dos
céus:
Que por todos os
quadrantes
Acalmem-se os
escarcéus.
De vez em quando,
em frente às casas, a vela parava, e um marinheiro se destacava, abordando as
janelas ou as portas, de barrete estendido, esmolando. E as moedas negras de
cobre e os níqueis radiantes surgiam de toda a parte, caindo de mãos femininas
e brancas, num rápido gesto espontâneo.
Uma aglomeração de
rapazes e homens cercava logo a companhia, e os conhecidos e amigos a inquiriam
candidamente, pedindo notícias, pormenores do sinistro.
As famílias dos
náufragos que moravam distante, lá para a Lagoinha, desciam em direção à praia,
num alvoroço: para abraçar os pais, os maridos e os filhos. Havia por isso, em
todo o arraial, um movimento de romaria. E quando algum dos marinheiros avisava
os seus entes queridos, o seu lar, o bem maior da sua vida, desprendia-se, por
instantes, do lutuoso cortejo, e eram então abraços ardentes, choros de emoção
e de alegria, nas porteiras, nos terreiros sob as ramagens verdes dos
caminhos...
Mas logo a vela prosseguia,
naquela peregrinação dolorosa.
Ao chegar à venda
do Lemos, uma multidão de ajudantes, camaradas das redes e alguns
tripulantes do Andorinha, que ainda permanecia no porto carregando — correram ao encontro dos náufragos, ruidosamente, num júbilo:
— Ó Antonio! Ó Figueira! Ó Constâncio!... Então por
aqui, depois de tantos perigos?... Ora sempre Deus era grande e tinha compaixão
dos infelizes!
— É verdade, gente. Mas lá ficou o nosso capitão, lá ficaram o Samuel e o
Justino, coitadinhos! Quem diria que tornaríamos sem eles! O que era a vida, o
que era o destino!
E dos olhos de
todos aqueles marítimos, raiados de sangue pela refração solar do oceano, nos
tombadilhos, as lágrimas corriam, duas a duas, silenciosamente...
Lá em cima, no
morro, a Maria Virgínia, a essa hora mais calma, mais resignada, naquela quase
consolação de poder ver ao menos a vela do navio do marido, queria por força
descer abaixo, ao caminho. Mas os parentes e as amigas protestavam, opunham-se:
— Que não! Que não! Pois se a vela ia passar por ali, porque
tinha de ficar aquela noite na ermidinha da Senhora dos Navegantes! Não! Que
tivesse paciência, esperasse um instante. Ela viria...
Com efeito, o pano
do brigue ia ser depositado ali até outro dia. O Figueira já falara ao
sacristão, e este apressara-se logo a subir à capelinha, cuja porta abria-se
agora lá no alto da montanha, dominando as praias, as ilhas, todo o oceano,
como nas manhãs claras de missa...
Mas o sol rolava já
no horizonte, numa barra sulferina. A planura imensa das águas
resplandecia a oeste, maravilhosamente, como um estranho tablado de pedrarias.
Canoas ao longe corriam, com velas tintas a zarcão, sob a luz fugidia, evocando
feericamente o esquisso luminoso de uma remota marinha fenícia, singrando, num
poente vermelho, o cetim do mar de Tiro. E contra a costa arenosa e límpida
fechada a um lado pelas rochas altas do Rapa, cobertas agora de uma fascuração
sanguínea de mica, o cair lento e melancólico de uma poeira de nanquim, onde se
distinguiam, numa eteral agonia, os primeiros lilases e lírios das
ave-marias...
Então os náufragos
apressaram-se e, arrumados à vela, de onde as rosas e palmas pendiam, já
murchas e tristes, como sobre um pano de esquife, tomaram o tortuoso e empinado
caminho que levava à ermida. E, de novo, repetidamente, o estribilho sonoro da
canção marítima ecoou pelo ar, manso, súplice, pungentíssimo:
Senhora dos
Navegantes,
Amparai-nos lá dos
céus:
Que por todos os
quadrantes
Acalmem-se os
escarcéus.
Em frente ao
terreiro da Maria Virgínia o préstito estacou. Uma aglomeração de pessoas
tomava aí a estrada, numa altitude compungida. E logo, da casa toda aberta e em
sombra, rompeu uma orquestração clamorosa de choros e gritos. Dentro, a pobre
rapariga debatia-se, numa angústia sem nome, em meio aos braços das amigas, que
a conduziam carinhosamente para uma das janelas, procurando impedi-la de sair
ao caminho, dizendo-lhe docemente:
— Olha daqui! Olha daqui!
Porém ela,
desatinada, convulsa, num nervosismo, retorquia-lhes:
— Não! Não! Deixem-me sair! E com a ideia sempre fixa no marido: — Quero ir beijar ao menos a vela que lhe escutou o último
suspiro...
E, desprendendo-se
de repente, atirou-se para a rua, como uma louca, por entre a multidão
estarrecida.
Foi então uma cena comovente, tristíssima.
Todos, em volta, tinham os olhos rasos d'água, as pessoas do povo como aqueles
velhos marítimos.
E a Maria Virgínia,
de joelhos, abraçada à vela, toda banhada em pranto e agitada por soluços que a
sacudiam intermitentemente, beijava a velha lona náufraga, beijava-a, como numa
ardente e extraordinária consagração divina. A sua voz, a espaços, debilmente
vibrava: trêmula, entrecortada, aflitíssima, no meio do pesado silêncio do céu
vespertino:
— Ai! que dor! Ai! que dor!... Virgem Santíssima!...
E como ela se
delongava sonambulamente nessa genuflexão de martírio, o rosto desfigurado,
muito branco, como quem vai cair numa síncope, os parentes acudiram,
arrancando-a piedosamente dali.
A vela, sempre
acompanhada de povo, pôs-se outra vez a caminho, embalada pelo ritmo sonoro da
canção, cujo agro estribilho aumentava agora de dolência monótona. Nesse
instante, o crepúsculo cerrara-se de todo, amortalhando os longes, as montanhas
e as águas, com os seus grandes véus mortuários de cinza...
Rio, 1893.
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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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