OS BOIS XUCROS
A Eduardo Salamonde
I
Eram princípios de
agosto. Nessa noite começavam os terços do Bom Jesus em casa do Nicácio. Às
ave-marias entrara a afluir para ali, aos poucos, toda a boa gente das
circunvizinhanças. No céu saíra já a rondar a lua, iluminando tudo com a poeira
sutil da sua luz fria de grande lâmpada incandescente de Brush. As pequeninas
casas de S. Francisco branquejavam, afastadas umas das outras, entre sebes,
cafezais e laranjais murmurosos, como ovelhas, espalhadas pelos socalcos e
inclinações de uma encosta.
II
Desde meia tarde
que as raparigas da Maria Veríssima — a Berta, a Bernardina
e a Clara — curricavam pela casa das amigas, gárrulas, alvissareiras e
alegres, a comunicar as novas ocorridas, durante o dia, na freguesia.
Contara-lhas o irmão, o João, que andara na rede, lá fora. — Era o casamento, no dia seguinte, de José Alexandre com a Maria Luísa Rosas,
a do patacão. O escândalo do Manuel Téa pegado ao romper do dia, com a
Maricota Sodré, lá no sítio do Claudino, na casinha do carro — forte pouca vergonha! O Maurício esbofeteado pelo Joaquim Valente, no
caminho do campo, por umas histórias de ciúmes. O filho da Leandra, o
magricela, que era caixeiro e usava casaco comprido, como de padre, que chegara
pela manhã da cidade. O Antônio Rego, que viera dos Ratones com uma tropa de
bois xucros: o Justino já tinha apartado um para a vara; era um bagual, o raio,
procurava a gente que nem um cachorro e, na Cachoeira, segundo diziam, partira
dois laços só de um tirão!... Mas, de tudo, o que mais as encantava era o do
Nicácio, desde muito esperado, que ia afinal começar e que só acabaria oito
dias depois, conforme o velho lavrador prometera quando estivera de cama, quase
a espichar, com as sezões.
— Ia ser
só do fino o terço do Nicácio! exclamavam elas, numa balbúrdia
adorável. Uma semana inteirinha! Ai-ai! ia doer de bom!...
E combinaram com as
do Chico Pereira para irem juntas, com a mãe, assim que anoitecesse. Mas
careciam da companhia de um homem, por causa dos bois xucros. Quem havia de
ser? Tinham tanto medo de bois xucros, Nossa Senhora! O pai andava fora, pelas
alturas do Arvoredo, na pescaria do mar grosso, e nesse dia não voltava; o
João, esse, não servia para nada, não prestava mesmo, o galinha, não
valia o comer que comia, pois se tinha mais medo de almas do outro mundo que
elas próprias, coitadas, umas pobres mulheres! Mas quem havia de ser então?...
E na pressa de se ajustarem, para se irem logo arranjar, não achavam quase um
conhecido, um amigo, um parente que as acompanhasse.
— Quem havia de ser? refletiam. Eram raros os rapazes daqueles
lados, e os poucos que havia andavam azeitando lá para as Coivaras, onde
também se rezava o terço, no Luiz Boião, para as bandas do porto. Os primos das
Areias também não vinham, por terem piorado das febres. Só se fossem os do Luiz
Maria e os do Rufino, que não perdiam nada, principalmente no Nicácio que era
ainda contraparente deles.
Assentaram,
definitivamente, em aguardá-los, ir com eles, de companhia. Mas debalde
esperaram. Entrou a noite, fez-se o luar, e nada dos rapazes! Estavam já num
desespero, numa inquietação, aflitas, quase a chorar. Para os lados do Nicácio,
de vez em quando, um filete de luz rubra erguia-se, varava o ar, estourava numa
explosão de faíscas.
— Lá atiçam foguetes! Lá atiçam foguetes! Murmuravam. Já
principiou! Não! Ninguém podia perder aquele tercinho da alma!...
De instante a
instante, davam uma chegadinha ao Caminho Novo. Nada! Ninguém!
E entraram a pedir
à mãe para irem assim mesmo.
— Também isso de medos era uma bobagem! Tanta gente na estrada!
A noite tão clara! Que tolice! Depois, os bois não iam sair do pasto àquela
hora!...
E convenceram a
velha que, carinhosamente, resoluta mas supersticiosa, enfiou para a rua de
xale na cabeça:
— Olhem, depois não se queixem se vier por ali alguma!...
E puseram-se em marcha, numa algazarra
vivaz, cheias de risos onde transparecia a animação da alegria — as mais audazes adiante, as mais tímidas atrás, cosidas umas às
outras.
A estrada
desenrolava-se branca, deserta, aqui e além malhada de sombras pelos
espinheiros e bananais das margens. O curvo azul dos céus resplandecia, muito
alto, cheio de um misterioso encanto. Numa vasta paz mística que as gargalhadas
perturbavam sonoramente.
III
O Sebastião e o
Vicente, companheiros inseparáveis das correrias noturnas, famosos quebras que
vagavam toda a noite pelos sítios, em endemoninhadas aventuras, metendo-se
atrás das porteiras ou das moitas da estrada para dar sustos às mulheres vinham
repontando na encruzilhada da praia, quando ouviram de repente, no vasto
silêncio, para os lados da Ponte Velha, gritinhos de moças, exclamaçõezinhas,
risadas. Pararam, puseram-se à escuta: queriam reconhecer as vozes... Ah! eram
as da Maria Veríssima e outras, que iam para o terço! E combinaram-se logo para
lhes pregar um susto.
— Havia de ser com os bois xucros... Elas tinham muito medo
dos bois xucros... A tropa toda estava no pasto do Constâncio...
E, já descalços,
com os tamancos nas mãos, largaram à disparada pela picada que dava para lá.
Esconderam-se numa roça de cana, do lado da porteira, junto à cerca de espinhos.
Aí, de vez em quando, chegava-lhes aos ouvidos a alegria ruidosa do terço do
Nicácio.
A casa ficava a
algumas braças, logo passando o riacho, num alto, do lado do morro. Pelas
janelas abertas saía uma iluminação muito viva, que dourava a verdura circunjacente
manchando a fria dealbação do luar. No pequeno terreiro em frente, silhuetas
escuras, microscópicas, moviam-se, apinhadas, à flamejação das luzes. E vozes
frescas e agudas de crianças brincando, punham na noite silenciosa e albente
uma zurzinada festiva.
Mas os dois quebras
terríveis não queriam saber de nada, com o ouvido assestado para os lados de
baixo. Daí a instantes sentiram de novo as risadas das raparigas que, pouco a
pouco, avançavam para eles, tornando-se mais nítidas, com o seu timbre alegre e
cristalino. Depois fez-se um estrépito claro de passos e vozes femininas.
Eles, erguendo a
cabeça, puderam enxergar, por entre o crivo das ramagens, já próximo à
porteira, à esquerda, o bando das moças, todas de branco, e lindas, ao luar,
como visões de baladas: vinham pela banda de cima, agarradas umas às outras,
rente à cerca, aterrorizadas, num fru-fru de saias engomadas e roçagantes,
estacando, às vezes, com gritinhos e saltos, à proporção que enfrentavam o
pasto:
— Ninguém fale!...
ninguém fale!... ciciavam elas. Lá estão os bois, Virgem Maria!...
E prosseguiam
sempre, cautelosamente, sutilmente, como sobre um tapete, por cima da grama das
beiradas. Já tinham passado a porteira quando os rapazes lançaram-se às
carreiras dentro do canavial, levantando, por entre a folhagem, a matinada de
um gado em tropel, e gritando:
—
Arreda! arreda! Aí vêm os bois xucros!...
As raparigas
dispararam, estonteadas, aos gritos, num pânico, numa corrida de desastre,
precipitando-se dentro do pequeno rio, ou arranhando-se ao contato brutal dos
espinheiros da estrada...
Da casa do terço
acudiram logo, homens e mulheres, correndo:
— O que era aquilo, Jesus?!... O que era aquilo?!...
E vieram encontrar as raparigas numa
lástima, molhadas, feridas, descompostas, empastadas de lama. Socorreram-nas
logo, levando-as em braços para a casa do Zé Rocha, que ficava para dentro de
um cafezal, muito perto dali. Aí mudaram de roupa, todas nervosas, a tremer,
quase a chorar...
No caminho, os
curiosos, apenas conhecido o fato, entraram a dispersar. Um velho, que chegava
a cavalo, vindo do mar, e que soubera de tudo exclamava, brandindo o relho, com
cólera:
— Não tinha que ver, aquilo tinha sido obra dos rapazes da
praia, os canalhas! Ah! que se os pegasse... Lanhava-os! Grandíssimos cães!...
E, teso na sela,
com a nobreza de um cossaco, deu de rédea irado e partiu a galope, num impulso
vingador.
Os rapazes então,
que tinham saboreado tudo agachados ainda entre as canas para não serem
espancados, saltaram para a estrada, a toda, e irromperam às gargalhadas na
noite clara...
Santa Catarina, 1889.
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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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