A ÚLTIMA FORNADA
A João Ribeiro
Naquele dia era uma
lufa-lufa no engenho do Rosas. Desde meia tarde que aquela boa gente
trabalhadora algazarrava expansiva, na doce alegria bem ganha de uma rude
tarefa acabada.
A mandioca daquele
ano — abundante que nem erva, Jesus! — dava quinhentos alqueires e estava toda reduzida a farinha, e farinha
torrada e clara, parte ensacada e parte empaiolada já, a que era para negócio e
a do gasto da casa. À boca da noite, quando o nordeste de junho, mais afiado e
cortante, assobiava e gemia na palha do engenho e nas laranjeiras em redor,
após o desfalecimento radiante do sol — fora retirada a última
fornada, em largas cuias de meio alqueire. E a família da casa, e moças
parentas que tinham vindo ajudar a farinhada, peneiravam umas, numa pequena
gamela bem limpa, massa para beijus, enquanto outras a conduziam já para o
forno, aglomerando-se em roda e distribuindo-a aos punhados que, dispostos em
ordem sobre a chapa escaldante, tomavam logo, na sua brancura, a forma achatada
e redonda de pequenas luas.
Nessa encantadora e
feminil tarefa, a Mariquinhas Rosas, uma das quatro filhas do velho lavrador, a
terceira, a mais graciosa delas, pela adorável vivacidade dos olhos negros
rasgados, pela alvura alinhada dos dentes sãos e pelo arrebitado atrevido mas
tentador de narizinho curto, era a mais empenhada e adestrada de todas na
feitura dos beijus, sobretudo nos de folhas, cuja massa é tomada em maior
porção e preparada nas mãos, entre duas folhas tenras de bananeira, à
semelhança dos bolos de milho grandes.
No engenho, havia
até aos mais remotos cantos um largo e confortante calor de estufa, que vinha
da boca do forno em brasas, colocado a um ângulo, e de onde irrompia um grande
clarão vermelhante, de uma iluminação intensa e rubra de ciclope, ao sair do
braseiro, e branda, esmorecedora e suave no teto e para os outros pontos
afastados onde a escuridão agonizante tinha, por vezes, audácias indômitas,
tentando invadir tudo quando o fogo desfalecia nas achas. As varas finas da
cumeeira, os caibros, o grosso pião a pino, a roda grande dentada, a de cevar,
ou bolandeira forrada de uma chapa de folha, límpida e reluzente como prata,
toda eriçada das saliências hostis que devoram as raízes, o cocho grande da
lavagem, o da escorredura e a imensa almanjarra em arco, que volteia e
movimenta tudo no pescoço rijo e impulsor dos bois de canga trabalhadores — destacavam-se como o arcabouço estranho e rude, monstruoso de um animal
primitivo, àquela luz enternecedora e saudosa, companheira fiel do trabalho
honrado e humilde, e que se ia extinguir, dali a instantes, para sobreviver um
ano depois!
Logo que a primeira
série de beijus foi retirada do forno, a Mariquinhas, tendo tudo disposto para
entrarem as outras, deixou as alegres companheiras e afastou-se dali,
apressada, num provocante cadenciar de ancas virgens, porque a mãe a chamara
para arrumar o resto da roupa no balaio, enquanto ia, por outro lado, cuidar do
trem de cozinha e depois dar uma chegadinha às Areias, ao José Marcelino, que
ficava a cem braças.
Era a um canto do
engenho, no mais vasto, onde se acomodava toda a família — um lugar dividido apenas em dois por alguns fragmentos das
sebes velhas dos carros e dos paióis, postas ao alto e unidas em cima nos
caibros, sendo um lado ocupado pelo velho casal e outro pelas raparigas em
comum, filhas, parentas e moças da vizinhança, toda essa adorável e ingênua
gente dos sítios que, à noite, se reúne e dorme pelos engenhos, na quadra das
farinhadas.
O cocho grande, que
era o primeiro depósito onde se despejava a farinha já pronta, feito de uma
velha e enorme canoa, ficava também desse lado, correndo na direção dos dois
quartos, justamente para onde dava a abertura. As últimas fornadas o repletavam
já, fazendo no centro um elevado cocuruto de uma brancura de neve, que ia
descendo e diminuindo sensivelmente para as extremidades, tal qual um cômoro de
areia solta. Desse lado, onde o clarão do forno esmorecia de todo, e sentada na
extremidade aberta, numa beirola da madeira, com uma antiga candeia de quatro
bicos ao pé, que mal alumiava o obscuro recanto —
estava a rapariga muito bem a arrumar a roupa, quando, pela porta dos fundos,
surgiu de repente o Manuel Rita, o endiabrado e moreno rapaz que era os seus
feitiços, e que, acercando-se logo, como um namorado querido, começou a
bolir-lhe nas mãos, no queixo, nos cabelos e nos seios, de olhar aceso e
vivíssimo, com as suas costumadas graçolas e cócega. Em seguida, arredando o
balaio, e caindo junto aos joelhos da rapariga, que o fixava silenciosamente,
com uns olhos meigos e úmidos, cheios de um brilho inefável, extasiada e
passiva ante as suas másculas e vencedoras carícias, totalmente entregue aos
seus braços grossos e viris, que lhe enlaçavam docemente a cintura — prorrompeu
a falar-lhe baixinho, com uma grande doçura. E ia apertando-a contra si,
estonteando-a e vencendo-a com o seu hálito morno, a sua voz terna e súplice,
trêmulo, resfolegante, febril. Ela, sem forças para se lhe opor, na sua
profunda paixão, murmurava apenas, quase indistintamente:
— Não!... Não!...
E desfalecia sobre
o montão de farinha nevada, como entre os lençóis puros de um tálamo...
Para os lados do
forno, reinava ainda a faina feminil dos beijus, numa algazarra alegre e vivaz,
cortada às vezes de cristalinas risadas.
De repente, lá
fora, no terreiro, uma voz grossa berrou:
— Ó Manuel Rita, ó diabo! Olha os bois pra canga!
E o rapaz, então,
assustado e tremendo, deitou a correr, sem ser visto, para a janela da
empena, que galgou de um salto.
— Eh lá, Simão! Já lá vou...
E enveredou para o
pasto, cantando o Querido bem, numa toada sonora e vibrante, cheia de
notas álacres de triunfo.
Nesse instante, a
tia Ana Rosas chegava. Estivera com as do José Marcelino. Lá ainda se raspava e
forneava que era um Deus nos acuda. Não era por aqueles seis dias que haviam de
acabar. De mais a mais, o José Marcelino, coitado, estava com as maleitas...
As raparigas tinham
acabado de torrar os beijus, recolhendo-os em montes e arrumando-os num pequeno
cesto. O Simão e o pai, fora, defronte à porta grande de engenho, punham a sebe
no carro, que estava já com o cabeçalho suspenso, sobre o muchaco, a canga e os
cansis prontos para abrochar os bois.
A velha Ana, com a
costumada atividade de mulher magra e trabalhadora, mal entrou da rua, voltou
ainda a remexer pelos cantos, do lado do fogão, no caixão do trem, pelos
tipitins vazios, pela mesa da prensa, por trás dos cochos, por tudo, à cata de
algum objeto esquecido, dando as últimas ordens:
— Andem! Ande! Vejam se não esquecem nada. Olhem que já vai
ficando tarde...
O velho Rosas,
então, gritou “que o carro estava pronto, que não perdessem tempo,
embarcassem. Já era também embromação demais! A que horas iam chegar à casa,
Santo Deus!”
As moças enfiaram
logo para o terreiro, a pequenas carreiras, aos saltos, aguilhoadas pelas
palavras sibilantes da velha, que ralhava esganiçadamente, na precipitação da
partida. E quando iam todas a subir para o carro, deram por falta da
Mariquinhas, que entraram e chamar alto, censurando-a pela tardança:
— Oh! Mariquinhas! Mariquinhas!
E a qualificavam de
“moleza, pamonha, tansa”.
A velha, furiosa,
entrou a descompor:
— Anda daí, diabo! Olha que eu lá vou e esfrego-te! Ora espera, ora
espera...
E já ia para
descer, quando a rapariga apareceu, arrastando-se vagarosamente, de olhar no
chão e chorando, com o balaio da roupa debaixo do braço. Ainda de preto, por
causa do tio Quincas, que morrera há três meses de barriga d'água, trazia
impresso pelas costas, desde a cabeça até à orla do vestido, como um véu
transparente de tule. E assim, como quem vai para um estranho noivado, subiu
para o carro, contrariada, abatida, sob as suas vestes lutuosas e nupciais.
Os bois puxaram. O Simão, à frente, a
aguilhada ao ombro, soltou uma cantiga melancólica. O carro, as cunhas
desapertadas, rolava em silêncio pela estrada branca. E no alto, a noite
azulada e límpida, como em geral as noites tropicais de inverno no Brasil,
tinha um grande esplendor sideral, inteiramente pespontada de ouro.
Rio, 1891.
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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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