NA ILHOTA
A Santos Lostada
Nessa Noite de S.
João, em Canasvieiras, tudo gelava. Mas, desde o escurecer que o estreito e
arenoso caminho da praia, nos outros dias, silencioso e deserto, cobrira-se de
gente, enchera-se de animação e ruído. Eram famílias da freguesia e
circunvizinhanças que se encaminhavam para o mar, até à Ilhota, onde havia os
festejos de todos os anos, em casa de João Monteiro. A festa lá, nessa noite,
ia ser boa, porque coincidia com as festas da chegada do Manuel Lemos, o
capitão do Estrela, o noivo da Mariazinha, que vinha da costa da África,
por onde errara longos meses, sem se saber dele, na última viagem: e a sua
volta, depois de tanto tempo, derramava uma grande alegria no seio da boa gente
do Monteiro e por todo o sítio, onde era muito estimado.
Choviam os
comentários com o regozijo inesperado do aparecimento do navio que já contavam
perdido, lembrando-se do Gaivota que, de uma feita, indo para a Costa,
desaparecera por esses mares de Deus! E o Chico Helena, que fora nessa viagem,
coitado! ninguém mais soubera dele! Felizmente ao Manuel não lhe sucedera
aquela desgraça...
O navio do Manuel
Lemos era um magnífico brigue, há poucos anos reconstruído, e que se chamara
outrora o Galgo. Valente nos temporais, muito seguro, era célebre pela
velocidade da marcha no tempo do tráfico dos africanos, em que, mesmo nas
situações mais arriscadas, soubera sempre, com êxito, em meio dos vagalhões
encapelados do Atlântico, fugir à proa perseguidora e temerosa dos cruzeiros
ingleses. Contavam-se dele, dessa época, episódios heroicos, lendas que o sol
dourara e o oceano embalara em seus braços gigantescos, faltando-lhe apenas as
narrações de Fenimore Cooper. À popa, à bolina ou a um largo não havia então
quilha que o vencesse. E isto fazia agitar, muitas vezes, a calma habitual dos
oficiais ingleses que lhe davam caça, perseguindo-o, tenazmente, por longos
dias azuis de céu e mar. Uma bela tarde o barco velejador sumia-se no horizonte
ao fechar de um poente vermelho... O gajeiro bretão, no arco da gávea, não o
avistava mais com o longo olhar verde e descortinador... O cruzeiro virava na bordada
de terra, e a cólera dos capitães das ilhas de ouro e ferro da Mancha estrugia
com desesperação, pondo a prêmio a bela cabeça branca do velho Sumares.
O Estrela
estava fundeado no estreito canal de águas muito seguras que existe entre a
Ilhota e a Ponta das Pedras; e ao cerrar-se a noite, na densa escuridão que se
alastrava em torno e afogava a paisagem em redor, só o seu farol luzia, como um
olho de sangue que espreitasse sinistramente o canal, riscando as ondas com um
trêmulo fio de nácar.
As famílias que
desciam, algumas vindas lá dos Ingleses e das Aranhas, um rancho de moças,
rapazes, velhos e velhas, palradores e expansivos naquela noite de S. João, de
tantas recordações meigas e amorosas que a tradição vem projetando, com a rubra
iluminação de uma fogueira, até aos nossos dias, do fundo remoto dos Séculos — tiveram
quase um arrepio, em presença das ondas, que se quebravam algidamente contra a
praia estendendo-se e cercando-a de carícias de espuma. Havia, a essa hora, uma
calada vasta e taciturna, vagamente açoitada pelo ruído rouco e sonoroso, multo
longínquo, do mar, lá fora, a despedaçar-se continuamente sobre os costões
rochosos. Tremia-se de frio, mas nem por isso as gargalhadas das moças deixavam
de cantar, límpidas no ar, de envolta com as vozes tumultuosas dos rapazes em
festa.
Então, na Ilhota,
foguetes numerosos rasgaram o escuro, subindo em hastes escarlates que feriam o
céu verticalmente, estalavam, pondo lágrimas de luz, que desciam lentamente, em
cachos. E, em seguida, avistaram um largo clarão manchando a noite, por detrás
do pequeno platô das Feiticeiras, iluminando de través as águas do Porto do
Norte. A paisagem, aí, desenhava-se numa esmorecida luz avermelhada e
enternecedora, em cuja faixa vacilante cenografavam-se feericamente massas
negras de verdura, abertas em crivo, todas rútilas de pedraria fantástica. Da
vasta iluminação da água, onde tremiam escamas de prata límpida, sob as
primeiras rajadas do sueste que caía fresco, erguia-se, mal contornado, no
fundo daquele céu de nanquim, o casco colossal do navio, aproado ao vento, o
gurupés alto e aguçado, a cordoalha retesa, muito ereta a alta mastreação
artística. A sua sombra, meio caída à ré, dançava a um bordo, em tremuras
elásticas, na ondulação viva, e as vergas, os mastros e os mastaréus cheios de
guinda lançavam, na vaga claridade, como um estranho, gigantesco tecido de
malhas. De bordo, um bote impelido a remos, largou na direção de terra. A sua
mancha esguia e fina, onde se moviam bustos, avançava, numa esteira de espuma,
por entre o ranger das toleteiras rijas e o compassado chiar das remadas.
A um e outro lado,
na costa, pedaços de praia límpida alvejavam, quando a fogueira erguia mais
alto as suas chamas.
Todos esperavam a
embarcação com impaciência. Vinha já muito próxima, entre fosforejantes olhões
de ardentia, abrindo-se à superfície da água, no mergulhar dos remos. A três
braças de terra, disseram: leva! — e o proeiro
salto no paneiro de proa. O escaler encalhou, então, com um ruído de onda
espraiada, dando um raspão na areia. Lançaram logo uma prancha. E o embarque
efetuou-se cheio dos gritinhos de temor das moças e das grossas risadas dos
rapazes.
Na Ilhota os
foguetes continuavam a subir, a esfuracar o céu com filetes de zarcão. Já na
Prainha, metida entre duas pontas de pedra, onde o mar escachoa noite e dia
fustigado pela aspereza das nortadas, o Monteiro e as filhas esperavam os
convidados.
II
Logo ao atracar do
bote as meninas do Monteiro romperam em exclamações de alegria, ao mesmo tempo
que as outras, que chegavam: e foi toda uma confusão festiva e musical de
gorjeios femininos, por entre o reboliço do desembarque. E após seguiram-se os
abraços, falando sempre, estalando muito os beijos nas faces.
Tomaram todos o
pequeno caminho que conduzia à habitação. A casa, lá no alto do terreiro,
branquejava, fantástica, por detrás das labaredas, lembrando incêndios em
cenografias célebres de dramalhões e óperas, num desenlace trágico, de muita
sensação. Cantava cristalinamente, em vozes límpidas, desprendendo-se de
pulmões e gargantas frescas, uma revoada de meninos, cujos perfis inquietos de
diabinhos dançavam em redor das chamas, como numa alegoria do Inferno. Uma
gaita, ronceira e triste, lançava até as ondas, num som roufenho e monótono,
notas incompletas de uma polca. Homens descalços, rapazes e mulheres das
proximidades, com crioulos forros que vadiavam, grupavam-se à porta da rua,
arregalando os olhos curiosos. Quando as moças aproximaram-se, abriram alas,
dispersando no escuro, sob os cafeeiros.
Na sala principal,
então, houve toda uma alegre balbúrdia de saudações.
A família do Chico
Maria e a do Viana, que moravam perto, já lá estavam com um pelotão de filhas
moças, garridas e planturosas, assinalando bem a proliferaridade amplíssima das
populações da beira-mar.
Na onda dos
recém-chegados vinha também a tia Clara, uma velha professora da roça dos bons
tempos, de poucas letras e muitas virtudes, insigne nos trabalhos de agulha e
sabendo curar por benzeduras, que a fazia venerável e sobrenatural no sítio.
Era cunhada do Monteiro e comadre dele três vezes, tendo-lhe batizado dois
filhos logo no começo de casado e, ainda nos últimos anos, uma menina, a mais
moça, a quem dera, por pedido dos pais, o seu nome. A tia Clara era viúva há
treze anos Tinha duas filhas moças — a Eugênia e a
Guiomar. A primeira, já trintona, não era bonita, a pele murcha e desbotada, os
lábios tristes, os olhos apagados pelas desilusões; mas a última, mais moça dez
anos, prendia e fascinava, com um florescimento juvenil de roseira agreste, as
formas amplas e virgens, o rosto lindo, onde os olhos faiscavam.
O Manuel Lemos, que
estava sentado na saleta próxima, teve uma grande impressão quando a viu
entrar, e subitamente levantou-se, fazendo cessar de chofre a conversa que travara,
momentos antes, com um velho roceiro esquelético, engelhado e de grandes barbas
brancas que, vendo o outro afastar-se, deixá-lo bruscamente, sem um gesto, sem
uma palavra, ergueu em redor uns olhos espantados, mastigou baixo frases e
voltou-se tristemente para o pequeno altar ao fundo, coberto de uma toalha alva
e bordada, onde se alumiava um registro de S. João, colorido e encaixilhado em
madeira. Duas velas de cera, de seis em libra, aos lados, erguiam as suas
chamas lívidas e fumarentas. Palmas de Santa Rita e molhos de rosas
ostentavam-se, colocados devotamente em copos meios de água; e, no alto da
moldura, enfeitando-a, cravos vermelhos desprendiam a fragrância dos seios
sangrentos...
De fora,
continuamente, entrava gente para a sala, quase apinhada junto à porta, onde se
acumulavam homens. A um canto, em um mocho, ao pé de uma janela em que cabeças
desgrenhadas debruçavam-se, olhando com grandes olhos vagos, a boca aberta, num
emparvecimento, o tocador de gaita, um mulato anguloso, chupado, com uma pera
satânica de Mefistófeles, um lenço de chita ao pescoço, rouquejava uma
quadrilha.
Mas as danças não
tinham ainda começado: tiravam-se sortes, palrava-se.
No meio de um grupo
de moças, o Manuel Lemos, agora, empunhava o Livro do Destino, uma remota
e esfrangalhada brochura, sem capa e sem cantos, enegrecida e ensebada do chulo
manusear de muita gente, durante anos, nos três dias de Santo Antônio, S. João
e S. Pedro, e toda cosida a pontos na lombada. O Manuel oferecia os dados — uns
grandes dados antigos e desquinados onde mal se podiam ler os pontos — e
as moças os sacudiam entre as mãos fechadas, arriando-os depois sobre as
próprias páginas do livro, rindo muito, muito interessadas. Contavam: cinco,
quatro, doze, dezesseis... “Ande lá! Leia lá!” E o
rapaz folheava
logo, procurando a página onde vinha a quadra que correspondia ao número
indicado: e lia, recorria ao índice, dizia os assuntos: Se o seu amante é
fiel ou não, se alguém lhe ama em segredo, se morrerá cedo ou tarde, se terá
felicidades, se o seu bem está presente, se se casará... Outras raparigas,
de temperamento aventureiro e inquieto, mais cheias de imaginação e fantasia,
queriam saber se os seus noivos viriam de fora, e de que banda seria. Corriam
até à praia e lançavam à água uma casca de laranja cavocada, com um biquinho de
vela aceso dentro. Punham-se depois a olhar o rumo que levavam as luzinhas
sobre as ondas. Se uma ia para o norte, o esposo que a sorte lhes reservava
viria sem dúvida do norte, e assim as que tomavam outra direção. Mas se a luz
soçobrava, ou dava à costa, ou apagava, então o noivo não vinha de fora; era
dali mesmo, do lugar, ou a dona da candinha não viria a casar e morreria
solteira... Algumas apelavam para a sorte da clara de ovo num copo meio d’água, para uns
pedacinhos de papel com um nome de homem, enrolados como bilhetes de rifa e que
se expõem ao sereno para abrirem... Velhas, mesmo, pediam sortes, mas queriam
das “bonitas”, das “boas”; e as suas predileções dirigiam-se
especialmente para as coisas de riqueza: Se se deve contar com a loteria,
que ventura terá nos negócios, se virá a ser rica...
Mas alguns rapazes
entraram a dizer que já chegava de sortes, que era melhor começassem as danças.
E gritaram para o tocador pedindo o sinal de quadrilha.
III
Havia agora um
grande ruído na sala. Rapazes cruzavam-se em todos os sentidos, dirigindo-se às
moças enfileiradas em bancos corridos ao longo das paredes. Ajustavam-se pares.
De todos os lados
moças erguiam-se, enfiadas aos grossos braços dos roceiros, alegres, com os
lábios risonhos onde os dentes branquejavam, olhos límpidos, cheios de carícias
luminosas. Paradas, aguardando a quadrilha, davam toques ao cabelo, às rendas,
às fitas; voltavam-se, revendo a toalete por detrás, ajeitando, com pancadinhas
rápidas de mão, as saias amarrotadas.
E, pouco a pouco,
na vasta sala de telha vã, aquecida pela multidão dos convidados, ia-se
formando um enorme quadrado de gente perfilada. Reinava uma animação zumbidora
de colmeia. E o Manuel Lemos, que fora o último a tirar par, a uma das
cabeceiras, com a Mariazinha pelo braço, a larga face tisnada pelo sol do
oceano num raso tombadilho de navio, ria alto, expondo os seus ricos dentes
sãos, claros como a espuma das vagas, e batia palmas para que o tocador
rompesse a tocar.
De fora, entrava a
gritaria infrene das crianças, saltando as chamas da fogueira, cujo clarão
vermelho, iluminando tudo, abria ainda mais às rajadas do vento.
Aos primeiros
sopros trêmulos da gaita, a quadrilha rompeu, abalando o soalho, onde os corpos
adiantavam-se e retrogradavam, com mesuras e enlaçamentos rápidos. De espaço em
espaço as palavras do marcante desprendiam-se, elevavam-se, desapareciam sob as
telhas, num entusiasmo, confusas, em pedaços, comidas pelo chiar contínuo e
arrastado dos pés. Mas, de repente, entre as mãos magras do tocador o
instrumento emudeceu, encolhendo-se, e o quadrado que os seus sons desmancharam
há pouco, numa confusão de corpos em movimento, restabeleceu-se. Daí a
instantes, sacudida por novos sons, a muralha humana quebrava-se, tomava novas
disposições, reconstruindo-se incessantemente. E a quinta parte, o Manuel
Lemos, que não tirara quase os olhos da Guiomar, durante toda a quadrilha,
acabou-a enlaçado a ela, sentindo-lhe o coração aos impulsos do galope final.
A Mariazinha, que
bem notara tudo, sendo dos primeiros pares que se sentaram, amuou a um canto,
tomada de ciúmes, e não podendo mais sofrear a mágoa, recolheu-se à outra sala,
com o beicinho a tremer, os olhos toldados por uma névoa de lágrimas. As amigas
correram logo, buscando consolá-la. A mãe, que vira tudo do quarto, com os
olhos vigilantes e zeladores pregados sempre no Manuel, através das marcas da
contradança, acudiu imediatamente, muito branca, numa aflição. Desde a
madrugada, ao levantar-se, que sentira como uma coisa oprimir-lhe o coração.
Pareceu-lhe que ia haver contrariedades, um grande desgosto, como a entrada do tinhoso
em casa, naquele dia, tão feliz sempre para todos. Mas isso fora momentâneo
porque as meninas, como nunca, levantaram-se trinando na manhã cheia de sol.
Depois, lá fora, o céu festinava, magnífico, muito azul e sem mancha; e a
criação, abrindo as asas, no terreiro, acudia ao grão, num alvoroço e
cacarejando sob a luz que esquentava. E, já desoprimida e serena, lavando a louça
para o café, à janela da cozinha, pensava na Mariazinha, que ia casar por
aquela semana, e sorria, saturada da felicidade das coisas, abençoando o
destino como no dia em que lhe puseram a grinalda e o branco véu nupcial...
Mas as amigas,
vendo que as lágrimas da rapariga pareciam não querer cessar, rebentando, mais
frequentes, sob os mimos que a cercavam, entraram a dizer:
— Que não fosse tola, ele não estava namorando a prima, era falso. Lá
podia ser! Olhe que a Mariazinha... Também assim... Que mulher!... Andasse para
a sala, que era melhor, e se deixasse daquilo... Podiam reparar, e era uma
vergonha... E logo naquele dia, Nossa Senhora!
O Manuel Lemos
observava tudo de longe, mas fingia-se alheio inteiramente àquilo, mandando
tocar uma valsa e, nesse momento, único par na sala, colhia a atenção de todos,
volteando ritmicamente, aos compassos ondulantes da música, com a Joaninha
Pinheiro. E era tal a galanteria de ambos, desenrolando, unidos e a prumo pelo
soalho, os passos cadentes da valsa, que ninguém mais se arriscou...
Quando a gaita
emudeceu no meio do aplauso matuto da sala, todos os rapazes, ainda os mais
indiferentes, remoíam em silêncio um despeito surdo, como uma afronta. E o
Chico Rufino, que se tinha por dançador de fama do lugar, chocado com o sucesso
do outro, de pé, na varanda, em meio de um grupo de amigos, afirmava com
paixão:
— Que o Manuel não era grande coisa para a dança, não era...
Nem tinha posição capaz: muito arcado, as pernas abertas que até podia passar
um carro por baixo... Aquilo então é que era a fama? Olha o pachola! Raios o
partissem se ele, Rufino, não dançasse dez vezes melhor!... Depois, com a
Pinheiro quem não dançava... Que lhe não dissessem! Para ele, o Manuel não
valia nada... Grande paspalhão!...
A Mariazinha, agora
mais resignada, voltara à sala. O noivo, que acabava de sentar o par,
agradecendo, vitorioso, muito risonho, veio, logo colocar-se ao pé dela. E
longamente se fizeram confidências, voltados um para o outro, como dois pombos
movendo as cabeças amorosas. Perderam assim quadrilhas, polcas... E a moça,
mais consolada decerto, sorria já com os seus grandes olhos melancólicos.
IV
Daí por diante, as
danças despenharam-se ainda, mais entusiásticas e ruidosas. Os cangirões de concertada
e garrafas de vinho e aguardente eram esvaziados pelos homens, avidamente,
no final das quadrilhas.
Na varanda,
completamente indiferentes ao que ocorria em redor, os velhos, sentados, as
pernas cruzadas sobre uma larga esteira estendida no chão, jogavam o nove, agasalhados
nos seus grossos capotes de inverno. Moedas de cobre faziam montinhos, aqui e
ali, ao lado de cada parceiro. Outras acumulavam-se ao centro, num bolo, em
cima de um meio alqueire emborcado, onde uma vela de sebo ardia, com uma chama
esguia e trêmula, num castiçal de folha de Flandres. A um ângulo, onde a luz
desfalecia, sobre a mesa de jantar, as garrafas, os copos e as xícaras
desprendiam vagas cintilações de pedraria e tinidos finos de cristal.
Pela madrugada, o
terral de noroeste, com a vergasta glacial, pusera em total debandada as caras
espionas, obrigando a fechar as janelas e portas. Fora, no terreiro, ficara só
a fogueira, expirante, sem chamas já sob o frio, consumindo as brasas cor de
sangue. Dentro, a animação recrescia com o fim próximo da festa. Os corpos dos
rapazes e das moças desengonçavam-se agora, abraçados, em volteações muito
rápidas num frenesi. E eram, algumas vezes, nos mais desajeitados, esbarradas e
encontrões violentos. Havia gritinhos, queixas sonoras, risadas; mas tudo se perdia
logo no arrastar contínuo dos passos...
E às mãos destras e
febris do tocador a gaita arquejava, sem descontinuar.
O Manuel Lemos, por fim, com uma grande
ponta de álcool, o olhar reluzente e ávido, abandonara de todo a noiva e
declarara abertamente paixão à Guiomar, prendendo-se a ela escandalosamente nas
danças finais. A Mariazinha, o resto da noite sentada, ia seguindo tudo
atentamente, atirada a um canto, suspirosa e pálida, sentindo que se lhe
quebravam todas as cordas do coração sob aquele abandono brutal. De repente,
porém, levantou-se, com os beiços lívidos, toda trêmula, a sufocar: lançou os
braços ao ar, num grito, e caiu sobre o chão, desmaiada.
Houve então um
imenso alarido, uma emoção apavorada. As danças imediatamente cessaram; e da
varanda os velhos acudiram, espantados.
As duas irmãs — a mulher do Monteiro e a Clara — então,
engalfinharam-se de repente, numa rixa medonha, lançando-se injúrias cara a
cara. O Monteiro, perdida a calma, trêmulo e gaguejante, procurava intervir,
interpondo-se entre as duas mulheres:
— Ó senhora! Ó senhora! Que desgraça!...
Famílias, os
convidados, retiravam-se já, sem se despedirem, numa atordoação.
A gaita emudecera
definitivamente...
Na praia, o
embarque efetuou-se numa lufa-lufa, atarantadamente, às apalpadelas. E daí a
instantes as primeiras claridades da manhã subiam no céu, alegres e triunfais.
Rio, 1892.
---
Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário