SEPARAÇÃO
Foi uma noite de tristeza e angústia para a
Serafina aquela em que o Tomé partiu. Pela primeira vez ele deixava o lar,
abandonava tudo, para ir ganhar a vida em terras estranhas. Impelira-o a isso a
penúria em que o tinham lançado, nos últimos anos, atrasos sucessivos e,
naquele amaldiçoado inverno, as copiosas e contínuas chuvas que haviam inundado
as plantações apodrecendo as raízes. A mandioca — tão
viçosa nesse ano e que
prometia dar enormes resultados, suficientes para reparar as grandes perdas
passadas — completamente destruída! Eram roças vastíssimas
que ele contemplara,
muitas vezes, da janela com os olhos umedecidos de ternura, o coração cheio de
esperança, ao sol de ouro jorrante das álacres manhãs de verão! Eram, enfim,
quadras esplêndidas de ramas verdes rendilhadas alastrando planuras extensas,
trepando declives, avassalando no alto as chapadas dos morros... Mas tudo
estava perdido! o sítio hipotecado, a casa, o engenho; a junta de bois vendida,
o cafezal queimado pelas longas geadas! Decididamente “ia para
trás” aos empuxões cruéis do Destino! E tudo isso
fora levantado
alegremente, outrora, pelos seus industriosos braços de vinte anos, possantes
como vergas, numa época feliz, em férteis anos de bem aplicada mocidade! Já lá
se ia esse tempo, tão distante! E agora, velho e fatigado, jamais conseguiria
reaver as suas posses, nas estreitezas daquele meio paupérrimo. Por isso saía,
ia ganhar a vida longe, no torvelinho e na agitação fremente das grandes
cidades...
Só com os filhos — um ainda do peito, a chorar, os dois mais velhinhos agarrados às saias,
estrangulados quase por contínuos ataques de coqueluche que lhes arroxeavam os
olhinhos macerados — a mulher, coitada, acompanhara o Tomé até a
porteira. Aí, sob a poeira fina do crepúsculo que descia lentamente, os seus
corações de esposos, tão serenos e satisfeitos há tempos, alagados de sol e
cantigas como os campos que os viram nascer, pela primeira vez, ao separar-se,
tempestuaram em ondas de profunda amargura, varridos pela desgraça. Longo tempo
permaneceram abraçados, num derradeiro beijo, tão intenso e ardente como o
primeiro que trocaram, talvez à sombra doce das ramagens, ouvindo o ciciar
amoroso do vento. E vivamente as suas lágrimas correram, de envolta com os
soluços, como se a profunda afeição de ambos ali se despedaçasse, de uma vez e
para sempre! Depois separaram-se.
Então, por
instantes, na estrada silenciosa e deserta, correndo entre bastas verduras,
estas palavras desoladoramente ecoaram, trêmulas, febris, em pedaços:
— Ad...eus!... Vol...
ta... bre... ve!... Ad... eus!...
A paisagem, agora,
enlutara-se. A noite triste estendia-se, adensava-se em torno, com o seu
domínio inelutável.
A Serafina ficou,
por momentos, imóvel, sem voz, esmagada de encontro ao moirão da porteira, no
meio do choro aflitivo dos filhos; e quando o marido desapareceu ao longe, na
escuridão da espessura, como arrebatado para todo o sempre, sentiu que ia
enlouquecer numa onda de dor sufocante, e prorrompeu em gritos, abalando,
perturbando a noite calma. Depois, já mais resignada, foi-se arrastando
penosamente até a habitação, no meio da treva cerrada de todo, levando consigo
os filhinhos que choravam e tossiam sempre, dependurados às saias. O pequenino
adormecera tranquilo, embalado nos ensoluçamentos do seu peito ofegante, a
cabecinha molhada pelas lágrimas dos seus olhos de Mãe Dolorosa. O velho cão de
guarda da casa, o Amigo, compartilhava da aflição de todos, caminhando
adiante, lento e taciturno. E assim percorreram o cavado e sinuoso atalho que
levava ao terreiro, no meio da planturosa Natureza, sempre indiferente e
inabalável.
A porta da casa ficara aberta: dentro, na
compacta escuridão da sala, pesava um silêncio lúgubre. De novo, então, a
Serafina foi acometida por ondas de pranto forte e, alucinada, deu mais uns
passos, indo cair nos degraus de pedra da entrada... Quando voltou a si,
achou-se surpreendida de se ver ali, tão só, já madrugada alta, com as crianças
a dormirem ao pé e sobre o colo. Ergueu-se, com o pequenino apertado ao seio, e
entrou com os outros em casa, chorando...
A noite clareara. A
lua surgia por detrás das montanhas, com a sua luz dolorida e doce, cor de flor
de laranjeira. Alvuras de praias estendiam-se ao longe, na paz de um vasto
adormecimento sepulcral. Nem uma brisa soprava. Apenas no ar, indistintamente,
o ressoar vago do mar, longínquo, batendo além, nos costões desertos.
Rio, 1892.
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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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