BEIRA-MAR
A Lima Rodrigues
I
— Lili! Lili!
E o doce nome
cantava no silêncio luminoso da tarde, com um timbre de ouro alegre, como o
chilrar das andorinhas no telhado. E, de repente, uma senhora esbelta, loura,
planturosa, uma mistress de olhos vívidos e moços posto que quarentona,
apareceu, descendo os degraus de cimento do jardim, numa casa solarenga da
Pedra Grande.
Então, na varanda,
entre trepadeiras, cobrindo de um crivo verde de folhas a parede, onde se
rasgavam grandes janelas rendilhadas, uma cabeça olímpica surgiu, como uma
iluminante aparição astral:
—
Espere lá, mamã!
Nesse instante, um
rapaz claro, alto, forte, são, com bastos bigodes negros e grossos ombros
gigantes, transpunha o vasto portão de ferro, risonho e muito escarolado. A
inglesa, que já o esperava junto à moita de rosas jaldes, na longa álea que
enfiava até o mar, alva e perfumosa, muito alegre, nas vestes de musselina
branca, o rosto e os braços rosados, apertou-lhe a mão com afeto. E desceram
ambos, a palrar, sobre o saibro branco e lavado, rangendo sob as solas, até
umas pedras à beira d'água.
O mar aí
achatava-se para todos os lados, calmo e azulado, com uma vasta rutilância de
níquel. A um canto, entre rochas altas, lembrando menhirs, acendiam-se
malhas de ouro e nácar, que levemente ondulavam. Longe, ao sul, uma península,
com maciços de verdura, árvores frondosas, palmeiras varrendo o céu na aragem.
Para as bandas da terra firme, defronte, um ocaso dourado de outubro,
alastrando o céu, por sobre o recorte cinzento das montanhas. E, à sombra da
costa, aqui e além, cruzando as águas, como gaivotas, voos rasos de velas
brancas...
Passos leves e um
fru-fru roçagante abriram-se na álea, e Miss Lili chegou, clara e rosada,
vestida de azul-marinho, com uma cadelinha ao colo. Os cabelos caíam-lhe do
alto da larga e linda cabeça escocesa, em massa ardente de juba espessa
ondulante, cor de ouro como um braçado de feno ao sol. Seus olhos célticos
tinham a cor, a doçura, a transparência e o brilho d'água das fontes, em matas
virgens, nos morros. E seus lábios magníficos, onde a brancura dos dentes
rutilava, atraíam os beijos, úmidos, polposos, escarlates.
O rapaz voltou-se
logo, num frêmito, o ar gentleman, saudando-a vivamente, com um grande shake-hands.
E rompeu em festas à cadelinha, numa doce algazarra.
A moça, muito
corada, ria-se alegremente, em esfusiadas cristalinas.
O verão
começava, e tudo em redor era inefável. No ar límpido e transparente, errava um
aroma vivo e penetrante.
Sentados sobre as
pedras, ao ruído das ondas espraiando-se em carícias murmurosas, batidas pela
brisa do mar gemendo queixosamente por entre os ramos das árvores, que acenam
docemente para as embarcações navegando ao longe — os
três mantinham uma palração animada, olhando as casas da Praia de Fora, muito
brancas, no recôncavo da costa, sob a claridade esmaiada da tarde; as colinas
do Estreito, ondulando em planos sucessivos de esmeralda; a paisagem dos
Coqueiros, fresca, saudosa e verde-negra, destacando sobre ouro, como linhas
fugidias de um oásis. Perto, numa volta da estrada, para onde descem pastagens
luxuriantes, lembrando os prados bizarros da Escócia na primavera, grupos
coloridos de moças e rapazes perpassavam alegremente, na frescura litoral da
paisagem...
Longo tempo ali
ficaram, olhando a feérica iluminação do ocaso.
Mas uma meia-tinta
azul-ferrete alastrava o céu, barrando os longes os primeiros panejamentos da
noite. Uma etérea melancolia pesava, aviventando extintas lembranças, venturas
gozadas em tumultuosos instantes, na efervescência do sangue, nos
enternecimentos que estuam quando o coração polarizado ama.
Ergueram-se, então,
tomados de uma vaga dolência, fixando ainda uma vez as águas tingindo-se de uma
negrura brilhante. E, Mistress Mag adiante, foram subindo vagarosamente
para casa, onde uma lâmpada belga abria já a sua grande flor luminosa, no
salão.
Mas, demorando o
passo na álea, sob as frondes murmurosas, o rapaz, numa profunda vibração
afetuosa, enlaçando amorosamente a cintura da moça, ia-a beijando, beijando.
Ela, vencida e cheia de ternura, reclinava-se toda sobre o seu ombro forte; e
de seus lábios úmidos desprendiam-se, trêmulas, entrecortadas e ardentes, estas
palavras deliciosas:
—
Meu amor!.. Meu amor!...
Nos degraus da
entrada pararam um momento, arrebatados pelo esplendor do céu, que se coroava
todo de uma prateada florescência de estrelas...
Rio, 1893.
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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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