segunda-feira, 8 de junho de 2015

Virgílio Várzea: "À beira-mar"

BEIRA-MAR
A Lima Rodrigues


I 
Lili! Lili!

E o doce nome cantava no silêncio luminoso da tarde, com um timbre de ouro alegre, como o chilrar das andorinhas no telhado. E, de repente, uma senhora esbelta, loura, planturosa, uma mistress de olhos vívidos e moços posto que quarentona, apareceu, descendo os degraus de cimento do jardim, numa casa solarenga da Pedra Grande.

Então, na varanda, entre trepadeiras, cobrindo de um crivo verde de folhas a parede, onde se rasgavam grandes janelas rendilhadas, uma cabeça olímpica surgiu, como uma iluminante aparição astral:

— Espere lá, mamã!

Nesse instante, um rapaz claro, alto, forte, são, com bastos bigodes negros e grossos ombros gigantes, transpunha o vasto portão de ferro, risonho e muito escarolado. A inglesa, que já o esperava junto à moita de rosas jaldes, na longa álea que enfiava até o mar, alva e perfumosa, muito alegre, nas vestes de musselina branca, o rosto e os braços rosados, apertou-lhe a mão com afeto. E desceram ambos, a palrar, sobre o saibro branco e lavado, rangendo sob as solas, até umas pedras à beira d'água.

O mar aí achatava-se para todos os lados, calmo e azulado, com uma vasta rutilância de níquel. A um canto, entre rochas altas, lembrando menhirs, acendiam-se malhas de ouro e nácar, que levemente ondulavam. Longe, ao sul, uma península, com maciços de verdura, árvores frondosas, palmeiras varrendo o céu na aragem. Para as bandas da terra firme, defronte, um ocaso dourado de outubro, alastrando o céu, por sobre o recorte cinzento das montanhas. E, à sombra da costa, aqui e além, cruzando as águas, como gaivotas, voos rasos de velas brancas...

Passos leves e um fru-fru roçagante abriram-se na álea, e Miss Lili chegou, clara e rosada, vestida de azul-marinho, com uma cadelinha ao colo. Os cabelos caíam-lhe do alto da larga e linda cabeça escocesa, em massa ardente de juba espessa ondulante, cor de ouro como um braçado de feno ao sol. Seus olhos célticos tinham a cor, a doçura, a transparência e o brilho d'água das fontes, em matas virgens, nos morros. E seus lábios magníficos, onde a brancura dos dentes rutilava, atraíam os beijos, úmidos, polposos, escarlates.

O rapaz voltou-se logo, num frêmito, o ar gentleman, saudando-a vivamente, com um grande shake-hands. E rompeu em festas à cadelinha, numa doce algazarra.

 A moça, muito corada, ria-se alegremente, em esfusiadas cristalinas.

 O verão começava, e tudo em redor era inefável. No ar límpido e transparente, errava um aroma vivo e penetrante.

Sentados sobre as pedras, ao ruído das ondas espraiando-se em carícias murmurosas, batidas pela brisa do mar gemendo queixosamente por entre os ramos das árvores, que acenam docemente para as embarcações navegando ao longe — os três mantinham uma palração animada, olhando as casas da Praia de Fora, muito brancas, no recôncavo da costa, sob a claridade esmaiada da tarde; as colinas do Estreito, ondulando em planos sucessivos de esmeralda; a paisagem dos Coqueiros, fresca, saudosa e verde-negra, destacando sobre ouro, como linhas fugidias de um oásis. Perto, numa volta da estrada, para onde descem pastagens luxuriantes, lembrando os prados bizarros da Escócia na primavera, grupos coloridos de moças e rapazes perpassavam alegremente, na frescura litoral da paisagem...

Longo tempo ali ficaram, olhando a feérica iluminação do ocaso.

Mas uma meia-tinta azul-ferrete alastrava o céu, barrando os longes os primeiros panejamentos da noite. Uma etérea melancolia pesava, aviventando extintas lembranças, venturas gozadas em tumultuosos instantes, na efervescência do sangue, nos enternecimentos que estuam quando o coração polarizado ama.

Ergueram-se, então, tomados de uma vaga dolência, fixando ainda uma vez as águas tingindo-se de uma negrura brilhante. E, Mistress Mag adiante, foram subindo vagarosamente para casa, onde uma lâmpada belga abria já a sua grande flor luminosa, no salão.

Mas, demorando o passo na álea, sob as frondes murmurosas, o rapaz, numa profunda vibração afetuosa, enlaçando amorosamente a cintura da moça, ia-a beijando, beijando. Ela, vencida e cheia de ternura, reclinava-se toda sobre o seu ombro forte; e de seus lábios úmidos desprendiam-se, trêmulas, entrecortadas e ardentes, estas palavras deliciosas:

— Meu amor!.. Meu amor!...

Nos degraus da entrada pararam um momento, arrebatados pelo esplendor do céu, que se coroava todo de uma prateada florescência de estrelas...

Rio, 1893.


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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014. 

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