MISS SARAH
A Guilherme de Miranda
I
Foi numa manhã alegre de Março que Miss
Sarah chegou ao campo, em companhia de seu velho pai, o bom sir John Callander.
Vinha em busca de melhoras para a sua saúde, havia meses abalada: um
resfriamento, uma noite de Dezembro, à saída de um baile, após algumas voltas
de valsa; na rua, esquecera-se de voltar a gola de seu grosso casaco de
pelúcia, e não se enrolara bem no xale. Chegara a casa já com febre, uma
pontinha de tosse, a cabeça pesada. Despira-se, agasalhara-se logo, tomando
remédios, cercada de todos os cuidados. Melhorara um pouco, mas a tosse
continuava, uma tosse seca, que a afligia muito ao deitar-se. Chamaram então o
dr. Duarte, médico da casa, um velhinho já trêmulo, todo branco e enrugado,
antigo clínico na província, com uma grande nomeada. O doutor examinou-a,
auscultou-a, e declarara sorrindo: “que não era
nada, uma constipaçãozinha, havia de passar...” Mas Miss Sara
emagrecia, perdia as cores, definhava. Sir Callander, que era louco pela filha,
inquieto, sobressaltado com aquele abatimento em que a ia afundar-se, já não ia
ao Consulado, passando as horas junto dela, a animá-la a acariciá-la
extremosamente. Até que um dia o velho médico dissera: “Que
era melhor ir para o campo, andar ao sol, respirar o bom ar das montanhas.
Melhoraria, voltaria outra. Lá havia a saúde eterna, ali estava, talvez, a
morte!...”
Então, o inglês,
sem perda de tempo, aterrorizado com as últimas palavras do doutor, mal fizera
as malas e um rancho opulento, tomou um bote e, no dia seguinte, pela
madrugada, partia com a filha para Canasvieiras, onde um íntimo lhe oferecera a
sua propriedade. A viagem fora costa a costa, e durara apenas horas, porque a
embarcação, muito veleira, o alto latino inclinado, voava na aragem fresca do
sul. Durante a travessia, Miss Sara nada sofrera. Deliciara-a o espetáculo
maravilhoso do sol, nascendo a Leste, do seio do oceano, entre véus de bruma
argêntea, como um balão de nácar; o aspecto risonho e variado das paisagens
litorais, densas e verdes, fugindo a um bordo; o correr das velas, cortando as
ondas espumantes; a construção recolhida e humilde das alvas povoações mais
amigas do mar. E recordava-se saudosamente de certas aldeias da Escócia, à
beira d'água, por onde andara em criança...
O sol já ia alto,
inundando tudo de ouro, quando o bote chegou à praia. Miss Sarah, agora mais
alegre, sorria, sorvendo a longos haustos o ar oxigenado e puro dos campos.
II
A casa que
habitavam sir John Callander e a filha, havia semanas, era uma das melhores do
lugar. Fora construída numa encosta suave, entre um vasto laranjal, num alto,
de onde se avistava uma volta da estrada real, branca e arenosa, descendo para
o Rio Vermelho. Um pequeno atalho, pedregoso e barrento, cavado na verdura
basta, como um grande arranhão de arado, sai do lado da habitação e vai
ligar-se, lá embaixo, ao largo caminho da freguesia, correndo entre espinheiros
tufados. O prédio é de pedra — um antigo casarão
de velho senhor de escravos — muito amplo, de grossas paredes laterais
recentemente emboçadas e caiadas, tendo na frente seis janelas pequenas e
acachapadas, de um metro de altura, os portais verdes envidraçados, olhando
para um largo terreiro de lajes cimentadas, onde outrora as colheitas secavam
fumegando ao sol. Cobrindo o edifício inteiro um imenso telhado de quatro
águas, com um puxado grande aos fundos; formando a antiga cozinha patriarcal,
em que, à noite, se reunia a negrada doméstica —
crioulas
robustas e entroncadas, de grandes mamas túmidas, alimentando as crias. E mais
distante, para trás, trepando o morro, os alicerces esboroados já, e invadidos
de hera, da vasta senzala, onde se recolhiam, outrora, depois da faina das
redes e das roças, como uma manada de gado, os hércules de ébano da lavoura. Em
frente, a esplêndida amplidão dos campos, num verdor tropical eterno, renovado
todas as primaveras por uma nova força ciclópica e torrencial de seiva,
na perpétua possança e rejuvenescência, da Terra. Ao fundo, a montanha
empinada, com o longo e alto dorso recortado no Azul, e os declives e as
chapadas retalhados pelas culturas de tons verdes graduados...
Aí se declarara
logo em declínio a moléstia de Miss Sarah: o rosado fresco e límpido de outrora
voltava a tingir-lhe levemente a ebúrnea palidez doentia; a tosse abrandava,
pouco a pouco desaparecendo-lhe o desfalecimento e o spleen que a
prostravam. Sentia-se enfim renascer, à plena luz, no seio fecundo e
restaurador da boa Natureza. Encantava-a aquela vida simples e descuidosa do
sítio, ingênua e doce, venturosa e serena, sem paixões e sem lutas, deslizando
sempre, livre e obscura, através das matas e sob o céu puro, como a água
cristalina das cachoeiras. Pela manhã, era um acordar alegre no vasto casarão
campestre: clarins de pássaros a vibrar vitoriosamente no arvoredo em redor,
envolta, com o rumor das charruas; à noite, a doçura de um grande
adormecimento, sob as estrelas, abrindo em malhas luminosas no Azul, ou o
resplandecimento branco do luar, prateando os lagos e os rios com a sua luz de
alvaiade.
Miss Sara, desde os
primeiros dias de instalação no sítio, ia todas as manhãs tomar leite, fazendo
também um passeio, a pé, ao longo da estrada. Era nas primeiras horas do dia. A
luz do sol nascente amarelava os morros, caindo pelas planícies, os vales, os
terrenos trabalhados das lavouras. A claridade vivíssima fazia ressaltar o
frontão caiado das casas dentre os maciços de verdura. Uma larga orquestração
irrompia estridentemente da ramaria espessa flutuando à aragem. Carros chiavam
ao longe, desaparecendo nas voltas agrestes dos caminhos. O ar cheirava
balsamicamente, saturado das emanações do gado, do carvão das coivaras e da
fragrância exuberante das rosas, desabrochando pelos cercados. E todo o céu
dourado estava cortado de uma alacridade imensa, na vibração deliciosa das
cantigas rústicas...
A rapariga
caminhava alegremente, pelo braço do pai, ao esplendor feérico do alvorecer
estival. E ambos riam, às gargalhadas, trocando frases carinhosas, muito
felizes, no eletrismo das manhãs inefáveis.
Geralmente, à
tarde, Miss Sarah e sir Callander faziam uma volta a cavalo, percorrendo os
engenhos, os campos e as praias. À noite, na sala do velho casarão todo
iluminado, após uma leve leitura de Walter Scott e o chá magnífico, que o
antigo criado inglês, o bom Evans, servia, pai e filha recolhiam-se aos seus
quartos, trocando o afetuoso beijo costumado e murmurando Good night!
E assim, dia a dia,
Miss Sara melhorava.
III
Março findara, e a
moça numa vivacidade borbulhante, sentindo voltar-lhe a adorável
comunicabilidade, quase meridional, de escocesa, iniciara relações com as
filhas do Luiz Machado, cuja casa ficava perto, na planície, à beira da
estrada. As meninas eram muito meigas — a Cristina e a
Eulália — por isso fizeram desde logo intimidade. Miss Sarah,
muito insinuante, com os seus lindos olhos verdes leais, que deixavam ver até
ao fundo a candidez virginal da sua alma, conquistara imediatamente as
raparigas, enlaçando-as numa afeição fraternal. E com elas passava quase sempre
as manhãs e as tardes. Quando as duas irmãs arrumavam as costuras e os
bordados, iam todas para o parapeito do terreiro, palrar.
Aos domingos,
apareciam sempre as meninas do Manoel Luís e as do professor Tomas, que iam
visitá-las, — e então era toda uma algazarra esplêndida
de vozes adoráveis. Algumas vezes também rebentavam por ali os sobrinhos do
Machado, em passeio pela freguesia; juntavam-se-lhes outros rapazes e, entre
eles, o Balbino, um latagão ruivo, robusto, entroncado, um remador das redes,
sardento e de pele dourada. O rapaz era ainda imberbe, mas tinha para as
mulheres uma fascinação irresistível e viril de olhares. E Miss Sara, uma
ocasião, na praia, vendo um lanço das redes, onde ele estava, de pé, junto a
uma canoa de voga, que ia investir contra o mar, a fixá-la, numa grande e muda
admiração de fascinado — ficara impressionada pelos seus olhos límpidos, de uma
luz amorosa e doce, ardendo, sob cílios escuros, no largo rosto queimado. Os
anéis do seu cabelo louro e basto tremiam ao vento, debaixo do largo chapéu de
palha; e da sua pessoa, ereta e alta, de uma elegância rústica, desprendia-se
uma irradiação poderosa e máscula, nascendo-lhe da beleza dos membros em
correção escultural.
Desde então, a
inglesinha conservara por ele uma certa simpatia, e a primeira vez que lhe
falou ficara um pouco perturbada. E, dia a dia, sem saber como, sentia que
aquela impressão ameaçava dominá-la, devido aos encontros contínuos que tinha,
agora, com o rapaz. Mas era britânica, e o seu temperamento calmo de europeia
do norte, jamais manifestava os abalos tumultuosos, as tempestades violentas de
afetos, que tanto sublevam e desvairam o ardente sangue meridional. Amava, mas
com um desses amores raciocinados e cultos de anglo-saxônia, os quais, às
vezes, à maneira dessas geisers terríveis ocultas no gelo
reconditamente, e sem sinais de explosão ou chamas externas, devastam
entretanto as almas.
O Balbino, porém,
desde que a viu pela primeira vez, trazia o coração torturado, preso à sua
imagem auroral e loura de Deusa; e quando a encontrava, arrastado pelos amigos
até a casa do Machado, era como se um sol estranho se lhe abrisse de repente no
coração, envolvendo-lhe o destino e a vida numa irradiação sem igual. Mas,
jamais ousou aproximar-se dela, dirigir-lhe a palavra, quando na doce algazarra
alegre do terreiro — olhando-a sempre de longe, embevecido, tímido, num
imenso embaraço.
Nessas reuniões ao
ar livre, que findavam logo à primeira cinza da noite — porque Miss Sarah não podia expor-se ainda ao sereno — era ela a mais
chalrante e buliçosa das moças, inventando jogos deliciosos, que se executavam
num sonoro alarido, às risadas. Ao lado, junto à porta da pequena habitação,
com o Machado e a mulher, em amável confabulação, sir Callander acompanhava,
com seu olhar azul e nostálgico, todos movimentos da filha, risonho,
enternecido, num alvoroço íntimo de pai, por vê-la já salva às garras tremendas
da tuberculose. Desde que perdera a esposa e o filho, a última vez que estivera
em Inglaterra, (faziam oito anos), toda a sua afeição e carinhos se
concentraram exclusivamente naquela filha adorada, único bem da sua vida
desventurosa. Por isso sentia-se profundamente feliz, vendo-a trinar
alegremente no meio das amigas, sem mais apreensões e cuidados.
E o dias
sucediam-se assim, venturosamente, para Miss Sarah.
Abril esmaltava os
prados com todo seu esplendor, enflorescendo os arbustos e as árvores. As
boas-noites docemente aromavam o ar, à tardinha, salpicando de pingos de
púrpura as cercas, ao longo das estradas. E os dias findavam todos, coroados a
oeste pela pompa fantástica e tropical dos crepúsculos dourados.
IV
Junho chegava, com
os primeiros frios; mas os dias continuavam hilariantes, cheios de azul e ouro
no alto.
Miss Sarah ficara
completamente boa; engordara, e agora parecia bem outra, com o seu lindo rosto
redondo e as suas largas espáduas. A sua pele, de uma alvura rosada, que o sol
do campo levemente dourara, confundia-se com a das camponesas robustas. Estava
forte, esbelta e rija como uma estátua. Então sir Callander resolveu regressar
à cidade. E toda aquela semana — a última que passavam no
lugar — pai e filha a consagraram às pitorescas excursões pelo interior e o
litoral.
A véspera da
partida, porém, Miss Sara levara-a toda em companhia das meninas do Machado e a
despedir-se pela vizinhança, onde se relacionara nos últimos dois meses. Com o
seu gênio festivo, de uma simplicidade afetuosa, despertara logo as maiores
simpatias entre aquela gente amorável; e, nessa noite, ficara até mais tarde
com a Cristina e a Eulália, a palrar, em grandes expansões animadas, do que
haviam feito e gozado, desde que travaram amizade. As brincadeiras e os jogos
no terreiro foram lembrados, então, minuciosamente e com saudade. E às dez
horas, quando tiveram de trocar os últimos beijos e abraços, houve uma imensa
confusão de adeuses e lágrimas. Sir John Callander, com a sua imensa bondade,
experimentara também uma emoção, ao dar o último shake-hands à boa
família do Machado.
Toda a noite Miss
Sarah levara a sonhar com a viagem.
V
No outro dia, cedo,
sir Callander e a filha embarcavam.
O sol vinha raiando
sobre o mar muito calmo. Velas cruzavam ao longe, com brancuras triangulares. A
praia de Canasvieiras tinha uma grande fulguração prateada. As primeiras redes
cercavam já para oslados da ilhota; e no rancho do Cosme havia uma aglomeração
de homens, deitando as canoas para baixo.
Miss Sarah, da popa
da lancha que largava, olhava agora saudosamente os campos e as montanhas
afastadas, lembrando-se vivamente das duas amigas e da boa gente que lá
ficavam. Percorria com olhos os cômoros e a faixa de areia do porto onde a luz
faiscava, quando avistou de repente o Balbino, de pé, contra um varal onde
redes secavam. O rapaz olhava fixamente a embarcação, numa atitude nostálgica.
Miss Sarah, que o não via há dias, enternecida, lançou-lhe afetuosamente um
olhar, acenando-lhe com o seu lenço de cambraia. Ele aprumou-se, como uma
estátua, e longamente abanou também com o seu largo chapéu de palha.
Mas a lancha fez-se de vela, deixando uma esteira
sinuosa de espuma estendendo-se nas águas...
E ele, olhando-a
sempre, sentia como um vago desejo de chorar; continha-se, entretanto,
apertando as pálpebras, porque lá do rancho, agora, todos os rapazes o olhavam.
Mas afinal as lágrimas rolaram-lhe pelas faces, quando viu sumir-se a vela
branca da lancha sobre o mar azulado...
Rio, 1893.
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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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