O VELHO SUMARES
Ao Almirante J. Justino de Proença
I
O Galgo,
tomada a última barcada de negros, fizera-se de vela. Bordejava ao terral da
madrugada, na pequena enseada de Ambriz, os faróis apagados para escapar aos
cruzeiros ingleses e ganhar o mar alto, onde ninguém o vencia. As primeiras
barras do dia começavam a clarear para os lados de terra, e o navio, ainda
entre pontas, não conseguia fazer-se ao largo. No tombadilho, passeando de
bombordo a boreste, o velho Sumares praguejava, porque o vento ia escasseando.
O brigue caturrava lentamente na vaga e ele olhava preocupado o horizonte a
oeste, sondando-o com um longo olhar inquieto, através da obscuridade...
II
Das trinta e seis
perigosas viagens à Costa, nenhuma lhe custara como aquela. À saída do porto,
pegara logo uma lestada que arrebatara um mastaréu, inutilizando-lhe um homem e
fazendo-o rolar, durante oito dias, aos trambolhões, à capa. Depois, fora
aquele “raio do diabo” do Contest perseguindo-o,
na última semana, com uma tenacidade formidável, até a antevéspera, em que conseguira
escapar, graças à intensa escuridão da noite, na baía de Biafra. Ainda sentia
subir-lhe o sangue à cabeça, numa onda de raiva, à lembrança daqueles sete dias
perdidos, de contínuas e trabalhosas manobras, ora escondendo-se nos recantos
da costa, ora sumindo-se nos vagalhões do alto mar. E, todas as manhãs, sempre
à vista, as velas perseguidoras do maldito cruzeiro! Carregara, durante dois
dias e duas noites, num sobressalto, sem arriar ferros, só com um ancorote,
pronto a suspender ao primeiro sinal. E, pela primeira vez, sentia-se fatigado
dos seus setenta e seis anos de mar.
Porque o velho
Sumares nascera no oceano, na altura das Canárias, na câmara de uma galera das
Índias, uma alegre manhã atlântica, de mar manso e céu claro. Seu pai, o capitão
de bordo, era um famoso náutico, descendente de uma antiga família de marítimos
do Algarve. Chamava-se Manuel Sumares, mas ora conhecido, entre os capitães
portugueses do seu tempo, pelo Manuel Mastro, em virtude do seu porte
teso e agigantado, do excepcional sangue-frio no perigo, da grande força
muscular. Nunca tremera diante da tormenta, nem sentira a fadiga das viagens.
Piloto muito moço, apenas tirara a carta, começou a comandar. A mulher, que o
acompanhava sempre pelos mares, uma robusta filha de pescadores da Póvoa,
morena e planturosa, com uns olhos negros esplêndidos, fora criada nas praias,
aos ventos salitrosos do oceano e ao cadente rebentar das vagas. Tivera seis
filhos homens, dos quais os três mais velhos, ainda muito tenros, começaram a labutar
sobre as águas. Casara aos quatorze anos e saíra logo a viajar. Muito forte,
muito corajosa e saudável, nas constantes viagens, vivia sempre em cima, no
tombadilho, ao lado do marido, acompanhando o movimento das manobras com
intrepidez máscula. Isto fazia com que os marinheiros, nas palestras íntimas do
rancho, a tratassem sempre pela Velha Náutica.
O Sumares herdara
do pai a gigantesca estatura, a calma extraordinária e a possança viril de
músculos, coroadas por uma inteligência natural e um incomparável espírito de
aventura. Da mãe, recebera a beleza cinzelada do busto e os grandes olhos
nanquinados, imprimindo uma radiação e um encanto à larga fisionomia ariana,
emoldurada em bela barba basta e numa espessa cabeleira ondeada. Aos quinze
anos, todo imberbe, era lindo, forte, escultural, lembrando o filho de um
pescador do Pireu, ou um antigo grumete dos Argonautas. Bem novo ainda, com
pouco mais de dez anos, entrara a servir, como moço de convés, sob as ordens do
pai, revelando desde logo extraordinária, vocação para a vida do mar. Assim
fizera numerosíssimas viagens. Foi em Santa Catarina, onde naufragara numa
sumaca portuguesa que ia para o Prata, que obtivera o seu primeiro comando, num
palhabote da pequena cabotagem. Tinha então vinte anos. As viagens eram para o
Rio Grande do Sul, e, em uma delas, o Sumares realizava inesperadamente a sua
primeira aventura, salvando, com risco de vida, sob um pampeiro forte, toda a
tripulação de uma barca inglesa, naufragada na barra. Valeu-lhe esta “áfrica” uma
medalha do governo britânico, acompanhada de um riquíssimo binóculo de master,
com uma inscrição e o seu nome nos cilindros dourados, onde se falava da Rainha
Vitória e do Almirantado.
Este fato e outros,
numerosamente ocorridos em toda a costa durante aquele inverno de tremendas
borrascas, deram-lhe, desde logo, nas duas províncias do Sul, uma grande
notoriedade. Só se falava então no capitão Sumares. Depois, nos navios de longo
curso, que iam continuamente às Antilhas e à América Central, para onde se encarreirara,
fez, com o seu imenso prestígio de marinheiro genial, prodigiosas salvações no
mar. E, entre todas as viagens ali, era célebre a temerosa travessia sob o
estourar dos ciclones no Golfo do México, onde sessenta navios soçobraram, só
escapando ele num velho patacho.
Mas a formação da sua estranha biografia,
quase inverossímil e lendária, a que a imaginação popular dera cores
fantásticas, sobrenaturais, teve lugar, com mais publicidade e ruído, quando
capitão dos navios da Costa, no tráfico do escravo onde ocorreram inauditos
casos. Aí enriquecera, logo no começo, a dois armadores do Desterro, com
magníficas viagens dando resultados consideráveis. Como casara, porém, na
família Calado, uma antiga firma comercial, também armadora e agora um pouco atrasada
pelas contínuas perdas no mar, nos últimos anos —
passou a comandar um dos
navios da casa.
Escolhera, entre os
quatro restantes, o Galgo, que fizera apenas uma viagem à África, e essa
mesma com tanta infelicidade que os ingleses o haviam aprisionado, já na volta,
depois de oito dias de singradura larga, levando-o com carregamento e guarnição
para Santa Helena, onde o abandonaram. O desastre se dera porque o capitão
dessa época, aterrorizado desde um temporal que apanhara pelo equinócio, e que
obrigara a correr em árvore seca, durante um dia, aos boléus, sobre os
vagalhões irados — tivera medo de puxar pelo barco, por causa do
mar e do sul terrível que
reinava, temendo-lhe o casco esguio, o enorme pano, a guinda desmesurada.
O navio era novo,
de um modelo lindo, uma construção rara. E o novo capitão, ao sair a barra,
pela primeira vez, no Galgo, puxando todo, às bordadas, contra o norte
duro, reconheceu logo, pela excelente marcha, que aquilo “era uma espada”. Ao botar-se a barquinha, verificava-se sempre
oito a dez milhas folgadas — à popa, à bolina, a um
largo. Foi
nessa viagem que o Sumares começou a série inédita e louca de aventuras que
tanto o celebraram entre os capitães costeiros, e das quais se saiu sempre
vitorioso até aquela bem cercada agora de maus presságios...
III
Mas claridades
róseas começaram a alastrar o céu — e o sol
rompeu, num pasmoso esplendor tropical, fazendo destacar, muito vivas, as areias
brancas da costa, as florestas à beira d'água e, ao fundo, as montanhas
cinzentas da Serra Leoa, sumindo-se além, num esvaecimento nostálgico. A luz de
ouro jorrante cobria de inúmeras placas rutilosas a vastíssima amplidão do mar.
A oeste, o curvo e imenso horizonte se mostrava agora, deserto e longínquo,
numa extensa linha azulada...
De repente, das
águas de Benin, dobrando o cabo de Palmas, ao noroeste, velas branquejaram. Era
uma embarcação de alto bordo.
O velho Sumares, à
amurada, de binóculo em punho, observava atentamente o navio: proava naquele
rumo, à grande distância, por isso não podia distinguir bem. Supôs, a
princípio, uma galera portuguesa, de torna-viagem às possessões na costa. Mas,
ao virar de bordo, reconheceu que era um brigue, trazendo à mezena a bandeira
inglesa arvorada:
— Ah! com um milhão de raios, o Contest!...
E mandou logo virar
para o sul.
IV
Todo aquele dia seguiu-o, ameaçadoramente,
como na última semana, a terrível proa, que só desapareceu ao cerrar da noite,
mas cujos faróis acesos brilhavam, através da treva, espreitando-o
sinistramente, como os olhos de um felino fantástico. Pela madrugada o vento
escasseou, e outra vez avistaram, à doce luz dourada do Levante, quilhando-lhes
a esteira branca, sobre as águas de sable, o temeroso casco. A maldita
calmaria, tão conhecida naquelas paragens, começava. E o cruzeiro vinha-lhes na
alheta, já muito próximo, a menos de três milhas escassas.
O velho Sumares
receava agora o alcance da artilharia que montava o navio, mas guardava o
sangue-frio habitual, observando o menor movimento do inimigo. O piloto, no
arco de gávea, procurava devassar o convés inglês com o seu longo olhar. E a
guarnição do Galgo, de cima do castelo, mirava, o sobrolho carregado, a
aproximação do brigue.
Era colossal
o vaso britânico, pelo seu comprimento, um enorme pontal, a alterosa
mastreação, sendo que só as gáveas e os joanetes podiam dar para todo o pano do
Galgo!
E alguns dos
marinheiros, rudes velhos encanecidos no tráfico, que tinham sido aprisionados
de uma feita por um dos cruzeiros, lembravam-se ainda, com terror, olhando o
monstruoso navio, dos maus tratos e da cruel desumanidade da maruja inglesa. Os
que ofereciam resistência nas abordagens ou davam combate eram içados, depois,
no lais das vergas, ou passados de mergulho por debaixo do casco ou
calabrotados...
— Um inferno! concluía o velho gajeiro Domingos, o mais idoso da companha;
só faltava matar-nos, trincar-nos os bofes... Excomungados! E ali estavam a
segui-lo! Só se aquele barco, o Galgo, já estivesse com craca, senão os
havia de ensinar, aos patifes, deixassem estar! E demais com quem! Com o velho
Sumares... Ora, os diabos!...
Os outros, que o
ouviam, exclamavam entusiasticamente:
— Quais
quê! ao Galgo nem uma bala o pegava! Aquilo era um corisco pra andar!
Dessem-lhe vento, que era o que ele queria! E que fossem bugiar os cursários!
E fixavam o Contest,
franzindo o beiço, com profundo desdém, como marinheiros que conhecem o seu
barco.
O João Catarina,
que subia do rancho para render o homem do leme, e que ouvira o fim da
conversa, gritou-lhes também, voltando-se, com uma das mãos à cinta,
endireitando a faca:
— O que, rapazes? o “carroça”? Não
dava
pra nada... Pois se aquilo era pior que uma boia!...
Mas, à ré, o velho
Sumares não tirava o binóculo do barco. Parecia-lhe, inexplicavelmente, que o outro
se aproximava mais, apesar da calmaria. E intimamente pensava:
— Talvez efeito das correntes, das águas...
Começava a
estranhar, porém, o silêncio das baterias já em alcance quando, de repente, o
piloto gritou para baixo:
— Fazem sinal para atravessar!... Fazem sinal para
atravessar!...
Em seguida, um
estampido grosso e rouco de canhão rolou sobre as águas, que o sol a pino o
malhava.
— Ah! os miseráveis ameaçam-nos! rosnou o velho Sumares,
vendo uma nuvem de algodão que se adelgaçava lentamente, cobrindo o brigue à
meia-nau.
Os marinheiros,
pelas amuradas, à proa, berravam, numa indignação:
— Olha os estupores! Vão balear-nos! vão balear-nos!
E efetivamente,
dali a instante, os tiros repetiam-se, à bala.
O cruzeiro, todo em
pano, entrando ainda para vante, estava já à distância de braças. Agora, das
enxárcias, dominava-se-lhe toda a vasta tolda: à popa, o comandante e alguns
oficiais moviam-se furiosamente, em manobras desesperadas, enquanto outros, às
baterias, mandavam o fogo.
Todo o horizonte em
torno deserto no seu grande disco nostálgico. E o mar, de altos vagalhões,
desviava as pontarias, arrancando pragas aos artilheiros furiosos.
O Galgo,
quase parado na ausência dos ventos, parecia entregar-se, numa fatiga de animal
cansado, à explosiva fúria inimiga. O velho Sumares, ao catavento, sob as balas
cruzando o convés à ré, sem poder corresponder ao ataque, numa íntima e intensa
revolta de encolerizado, posto que exteriormente calmo, olhava, em meio do
ranger zarro das vergas e dos mastros onde o pano murchava, as evoluções do
navio, sacudindo leoninamente a grande barba espessa e a bela cabeça alva.
O Contest,
porém, não adiantava mais uma braça, meio atravessado, só atirando com os
canhões de bombordo.
Durante duas horas
o Galgo não fora atingido; mas, de repente, uma bala atravessou-lhe as
amuradas. Foi um choque horrível, seguido de outro que despedaçou a lancha
grande, nos picadeiros, sobre as escotilhas fechadas. No porão, nesse instante,
correu como a zoada abafada de um gado preso, tumultuando. E guinchos loucos
silvaram, entre-vante do mastro do traquete, pelo escotilhão acima. O
contramestre, com três marinheiros, arrancou logo o quartel gradeado, e
desceram todos, de calabrote em punho...
O velho Sumares
estremecia, num desespero brutal, observando todos os movimentos do inimigo
contra a balaustrada. E logo grossas vozes de comando irromperam-lhe dos
lábios. Os marinheiros acudiram imediatamente, galgando os enfrechates, no meio
do fogo gritando de espaço a espaço.
Pela primeira vez,
nesse momento, o sangue calmo do velho marítimo sublevava-se naquela tolda
rasa, mas sem o trair apesar do grande abalo.
As balas inglesas
choviam, entretanto, sobre o tombadilho a jogar, carregando tudo numa
devastação formidável — o espelho da popa, a gaiuta, as pipas da
aguada...
E toda a companha
tinha agora movimentos atônitos, sob o fogo que aumentava.
O piloto porém, à
proa, animava-a com a sua rude calma e alegre vozeria, mandando safar os ovéns
e brandais que se despedaçavam. Era um rapaz dos Açores, de trinta anos,
robusto e vivo, de uma intrepidez colossal. O velho Sumares conhecia-o desde
menino e adorava-o pela sua coragem. Fora isso que o fizera, ainda muito jovem,
genro e piloto do velho lobo do mar.
Mas a brisa do norte
começava a cair fresca, e o Galgo aumentava já a singradura quando
acertou-lhe um balázio num mastro. Então, em todo o navio houve como um
estremeção geral, num formidando ruído de derrocada — e panos, vergas, mastaréus e mastro entraram a flutuar em roda, desfeitos, aos
pedaços, como arrebatados, num temporal. E, subitamente, vinte pulmões
vigorosos estrugiram, numa explosão de pragas:
— Má raios os partam!... Covardes!... Má raios os partam!...
Fora o mastro
grande que rebentara caindo de través sobre o trincaniz, destruindo a borda
falsa.
— Felizmente, ninguém apanhado! gritou o contramestre, que vinha para a
popa, branco como a cal.
E o velho Sumares,
junto ao leme, berrava, apoplético, a bracejar:
— Salta à ré! salta à ré! Com um milhão de diabos! Safa...
safa!...
A gente caiu, numa
rajada, sobre os destroços da cordoalha, coalhando todo o convés, por cima da
câmara, e rompeu a cortar à machadinha e à faca os cabos, enquanto o navio
atravessava batendo as velas de proa.
Sobre os vagalhões
em torno, boiavam agora, sinistramente, pedaços de mastro como despojos de um
naufrágio.
O Contest,
que fora deixado longe, cessara já de atirar.
A guarnição do Galgo,
numa faina trabalhosa, safara, em poucos momentos, o convés, e o brigue, estalado
o traquete, virara logo, deixando tudo para trás sobre o mar...
Quando o crepúsculo
se desenhou a oeste, alastrando o horizonte, numa vaga iluminação dourada, já o
terrível casco britânico desaparecera, como soçobrado...
V
Daí a dias, numa
esplêndida manhã de sol vivo e mar calmo, o navio, só com um mastro, entrava
vitoriosamente o Arvoredo. Fundeara na Ponta das Canas, onde fora lançado o
carregamento e no outro dia, à tarde, o velho Sumares seguiu para o Desterro
onde, desde o amanhecer, não se falava senão no Galgo.
Por toda parte, nas ruas e nas casas, o
nome do célebre mareante cintilava como o de um personagem fantástico, em meio
às exclamações e comentários. E durante meses, foi essa extraordinária viagem o
assunto mais querido das palestras entre aquelas populações da beira-mar, que
têm toda uma simpática predileção pelas lendas marítimas.
O velho Sumares
nunca mais embarcou, expirando aos noventa anos de idade, entre os carinhos
deliciosos das filhas e dos netos, na sua pitoresca habitação da Arataca. E a
história da sua vida rude e aventurosa ainda é hoje relembrada, com inefável
ternura, na placidez venturosa dos serões, nos lares.
Rio, 1892.
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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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