segunda-feira, 8 de junho de 2015

Virgílio Várzea: "O velho Sumares"

O VELHO SUMARES
Ao Almirante J. Justino de Proença


I 
O Galgo, tomada a última barcada de negros, fizera-se de vela. Bordejava ao terral da madrugada, na pequena enseada de Ambriz, os faróis apagados para escapar aos cruzeiros ingleses e ganhar o mar alto, onde ninguém o vencia. As primeiras barras do dia começavam a clarear para os lados de terra, e o navio, ainda entre pontas, não conseguia fazer-se ao largo. No tombadilho, passeando de bombordo a boreste, o velho Sumares praguejava, porque o vento ia escasseando. O brigue caturrava lentamente na vaga e ele olhava preocupado o horizonte a oeste, sondando-o com um longo olhar inquieto, através da obscuridade...
  
II 
Das trinta e seis perigosas viagens à Costa, nenhuma lhe custara como aquela. À saída do porto, pegara logo uma lestada que arrebatara um mastaréu, inutilizando-lhe um homem e fazendo-o rolar, durante oito dias, aos trambolhões, à capa. Depois, fora aquele “raio do diabo” do Contest perseguindo-o, na última semana, com uma tenacidade formidável, até a antevéspera, em que conseguira escapar, graças à intensa escuridão da noite, na baía de Biafra. Ainda sentia subir-lhe o sangue à cabeça, numa onda de raiva, à lembrança daqueles sete dias perdidos, de contínuas e trabalhosas manobras, ora escondendo-se nos recantos da costa, ora sumindo-se nos vagalhões do alto mar. E, todas as manhãs, sempre à vista, as velas perseguidoras do maldito cruzeiro! Carregara, durante dois dias e duas noites, num sobressalto, sem arriar ferros, só com um ancorote, pronto a suspender ao primeiro sinal. E, pela primeira vez, sentia-se fatigado dos seus setenta e seis anos de mar.

Porque o velho Sumares nascera no oceano, na altura das Canárias, na câmara de uma galera das Índias, uma alegre manhã atlântica, de mar manso e céu claro. Seu pai, o capitão de bordo, era um famoso náutico, descendente de uma antiga família de marítimos do Algarve. Chamava-se Manuel Sumares, mas ora conhecido, entre os capitães portugueses do seu tempo, pelo Manuel Mastro, em virtude do seu porte teso e agigantado, do excepcional sangue-frio no perigo, da grande força muscular. Nunca tremera diante da tormenta, nem sentira a fadiga das viagens. Piloto muito moço, apenas tirara a carta, começou a comandar. A mulher, que o acompanhava sempre pelos mares, uma robusta filha de pescadores da Póvoa, morena e planturosa, com uns olhos negros esplêndidos, fora criada nas praias, aos ventos salitrosos do oceano e ao cadente rebentar das vagas. Tivera seis filhos homens, dos quais os três mais velhos, ainda muito tenros, começaram a labutar sobre as águas. Casara aos quatorze anos e saíra logo a viajar. Muito forte, muito corajosa e saudável, nas constantes viagens, vivia sempre em cima, no tombadilho, ao lado do marido, acompanhando o movimento das manobras com intrepidez máscula. Isto fazia com que os marinheiros, nas palestras íntimas do rancho, a tratassem sempre pela Velha Náutica.

O Sumares herdara do pai a gigantesca estatura, a calma extraordinária e a possança viril de músculos, coroadas por uma inteligência natural e um incomparável espírito de aventura. Da mãe, recebera a beleza cinzelada do busto e os grandes olhos nanquinados, imprimindo uma radiação e um encanto à larga fisionomia ariana, emoldurada em bela barba basta e numa espessa cabeleira ondeada. Aos quinze anos, todo imberbe, era lindo, forte, escultural, lembrando o filho de um pescador do Pireu, ou um antigo grumete dos Argonautas. Bem novo ainda, com pouco mais de dez anos, entrara a servir, como moço de convés, sob as ordens do pai, revelando desde logo extraordinária, vocação para a vida do mar. Assim fizera numerosíssimas viagens. Foi em Santa Catarina, onde naufragara numa sumaca portuguesa que ia para o Prata, que obtivera o seu primeiro comando, num palhabote da pequena cabotagem. Tinha então vinte anos. As viagens eram para o Rio Grande do Sul, e, em uma delas, o Sumares realizava inesperadamente a sua primeira aventura, salvando, com risco de vida, sob um pampeiro forte, toda a tripulação de uma barca inglesa, naufragada na barra. Valeu-lhe esta “áfrica” uma medalha do governo britânico, acompanhada de um riquíssimo binóculo de master, com uma inscrição e o seu nome nos cilindros dourados, onde se falava da Rainha Vitória e do Almirantado.

Este fato e outros, numerosamente ocorridos em toda a costa durante aquele inverno de tremendas borrascas, deram-lhe, desde logo, nas duas províncias do Sul, uma grande notoriedade. Só se falava então no capitão Sumares. Depois, nos navios de longo curso, que iam continuamente às Antilhas e à América Central, para onde se encarreirara, fez, com o seu imenso prestígio de marinheiro genial, prodigiosas salvações no mar. E, entre todas as viagens ali, era célebre a temerosa travessia sob o estourar dos ciclones no Golfo do México, onde sessenta navios soçobraram, só escapando ele num velho patacho.

Mas a formação da sua estranha biografia, quase inverossímil e lendária, a que a imaginação popular dera cores fantásticas, sobrenaturais, teve lugar, com mais publicidade e ruído, quando capitão dos navios da Costa, no tráfico do escravo onde ocorreram inauditos casos. Aí enriquecera, logo no começo, a dois armadores do Desterro, com magníficas viagens dando resultados consideráveis. Como casara, porém, na família Calado, uma antiga firma comercial, também armadora e agora um pouco atrasada pelas contínuas perdas no mar, nos últimos anos — passou a comandar um dos navios da casa.

Escolhera, entre os quatro restantes, o Galgo, que fizera apenas uma viagem à África, e essa mesma com tanta infelicidade que os ingleses o haviam aprisionado, já na volta, depois de oito dias de singradura larga, levando-o com carregamento e guarnição para Santa Helena, onde o abandonaram. O desastre se dera porque o capitão dessa época, aterrorizado desde um temporal que apanhara pelo equinócio, e que obrigara a correr em árvore seca, durante um dia, aos boléus, sobre os vagalhões irados — tivera medo de puxar pelo barco, por causa do mar e do sul terrível que reinava, temendo-lhe o casco esguio, o enorme pano, a guinda desmesurada.

O navio era novo, de um modelo lindo, uma construção rara. E o novo capitão, ao sair a barra, pela primeira vez, no Galgo, puxando todo, às bordadas, contra o norte duro, reconheceu logo, pela excelente marcha, que aquilo “era uma espada”. Ao botar-se a barquinha, verificava-se sempre oito a dez milhas folgadas — à popa, à bolina, a um largo. Foi nessa viagem que o Sumares começou a série inédita e louca de aventuras que tanto o celebraram entre os capitães costeiros, e das quais se saiu sempre vitorioso até aquela bem cercada agora de maus presságios...

III 
Mas claridades róseas começaram a alastrar o céu — e o sol rompeu, num pasmoso esplendor tropical, fazendo destacar, muito vivas, as areias brancas da costa, as florestas à beira d'água e, ao fundo, as montanhas cinzentas da Serra Leoa, sumindo-se além, num esvaecimento nostálgico. A luz de ouro jorrante cobria de inúmeras placas rutilosas a vastíssima amplidão do mar. A oeste, o curvo e imenso horizonte se mostrava agora, deserto e longínquo, numa extensa linha azulada...

De repente, das águas de Benin, dobrando o cabo de Palmas, ao noroeste, velas branquejaram. Era uma embarcação de alto bordo.

O velho Sumares, à amurada, de binóculo em punho, observava atentamente o navio: proava naquele rumo, à grande distância, por isso não podia distinguir bem. Supôs, a princípio, uma galera portuguesa, de torna-viagem às possessões na costa. Mas, ao virar de bordo, reconheceu que era um brigue, trazendo à mezena a bandeira inglesa arvorada:

— Ah! com um milhão de raios, o Contest!...

E mandou logo virar para o sul.

IV 
Todo aquele dia seguiu-o, ameaçadoramente, como na última semana, a terrível proa, que só desapareceu ao cerrar da noite, mas cujos faróis acesos brilhavam, através da treva, espreitando-o sinistramente, como os olhos de um felino fantástico. Pela madrugada o vento escasseou, e outra vez avistaram, à doce luz dourada do Levante, quilhando-lhes a esteira branca, sobre as águas de sable, o temeroso casco. A maldita calmaria, tão conhecida naquelas paragens, começava. E o cruzeiro vinha-lhes na alheta, já muito próximo, a menos de três milhas escassas.

O velho Sumares receava agora o alcance da artilharia que montava o navio, mas guardava o sangue-frio habitual, observando o menor movimento do inimigo. O piloto, no arco de gávea, procurava devassar o convés inglês com o seu longo olhar. E a guarnição do Galgo, de cima do castelo, mirava, o sobrolho carregado, a aproximação do brigue.

 Era colossal o vaso britânico, pelo seu comprimento, um enorme pontal, a alterosa mastreação, sendo que só as gáveas e os joanetes podiam dar para todo o pano do Galgo!

 E alguns dos marinheiros, rudes velhos encanecidos no tráfico, que tinham sido aprisionados de uma feita por um dos cruzeiros, lembravam-se ainda, com terror, olhando o monstruoso navio, dos maus tratos e da cruel desumanidade da maruja inglesa. Os que ofereciam resistência nas abordagens ou davam combate eram içados, depois, no lais das vergas, ou passados de mergulho por debaixo do casco ou calabrotados...

— Um inferno! concluía o velho gajeiro Domingos, o mais idoso da companha; só faltava matar-nos, trincar-nos os bofes... Excomungados! E ali estavam a segui-lo! Só se aquele barco, o Galgo, já estivesse com craca, senão os havia de ensinar, aos patifes, deixassem estar! E demais com quem! Com o velho Sumares... Ora, os diabos!...

Os outros, que o ouviam, exclamavam entusiasticamente:

— Quais quê! ao Galgo nem uma bala o pegava! Aquilo era um corisco pra andar! Dessem-lhe vento, que era o que ele queria! E que fossem bugiar os cursários!

 E fixavam o Contest, franzindo o beiço, com profundo desdém, como marinheiros que conhecem o seu barco.

O João Catarina, que subia do rancho para render o homem do leme, e que ouvira o fim da conversa, gritou-lhes também, voltando-se, com uma das mãos à cinta, endireitando a faca:

O que, rapazes? o “carroça”? Não dava pra nada... Pois se aquilo era pior que uma boia!...

Mas, à ré, o velho Sumares não tirava o binóculo do barco. Parecia-lhe, inexplicavelmente, que o outro se aproximava mais, apesar da calmaria. E intimamente pensava:

 — Talvez efeito das correntes, das águas...

Começava a estranhar, porém, o silêncio das baterias já em alcance quando, de repente, o piloto gritou para baixo:

— Fazem sinal para atravessar!... Fazem sinal para atravessar!...

Em seguida, um estampido grosso e rouco de canhão rolou sobre as águas, que o sol a pino o malhava.

— Ah! os miseráveis ameaçam-nos! rosnou o velho Sumares, vendo uma nuvem de algodão que se adelgaçava lentamente, cobrindo o brigue à meia-nau.

Os marinheiros, pelas amuradas, à proa, berravam, numa indignação:

— Olha os estupores! Vão balear-nos! vão balear-nos!

E efetivamente, dali a instante, os tiros repetiam-se, à bala.

O cruzeiro, todo em pano, entrando ainda para vante, estava já à distância de braças. Agora, das enxárcias, dominava-se-lhe toda a vasta tolda: à popa, o comandante e alguns oficiais moviam-se furiosamente, em manobras desesperadas, enquanto outros, às baterias, mandavam o fogo.

Todo o horizonte em torno deserto no seu grande disco nostálgico. E o mar, de altos vagalhões, desviava as pontarias, arrancando pragas aos artilheiros furiosos.

O Galgo, quase parado na ausência dos ventos, parecia entregar-se, numa fatiga de animal cansado, à explosiva fúria inimiga. O velho Sumares, ao catavento, sob as balas cruzando o convés à ré, sem poder corresponder ao ataque, numa íntima e intensa revolta de encolerizado, posto que exteriormente calmo, olhava, em meio do ranger zarro das vergas e dos mastros onde o pano murchava, as evoluções do navio, sacudindo leoninamente a grande barba espessa e a bela cabeça alva.

O Contest, porém, não adiantava mais uma braça, meio atravessado, só atirando com os canhões de bombordo.

Durante duas horas o Galgo não fora atingido; mas, de repente, uma bala atravessou-lhe as amuradas. Foi um choque horrível, seguido de outro que despedaçou a lancha grande, nos picadeiros, sobre as escotilhas fechadas. No porão, nesse instante, correu como a zoada abafada de um gado preso, tumultuando. E guinchos loucos silvaram, entre-vante do mastro do traquete, pelo escotilhão acima. O contramestre, com três marinheiros, arrancou logo o quartel gradeado, e desceram todos, de calabrote em punho...

O velho Sumares estremecia, num desespero brutal, observando todos os movimentos do inimigo contra a balaustrada. E logo grossas vozes de comando irromperam-lhe dos lábios. Os marinheiros acudiram imediatamente, galgando os enfrechates, no meio do fogo gritando de espaço a espaço.

Pela primeira vez, nesse momento, o sangue calmo do velho marítimo sublevava-se naquela tolda rasa, mas sem o trair apesar do grande abalo.

As balas inglesas choviam, entretanto, sobre o tombadilho a jogar, carregando tudo numa devastação formidável — o espelho da popa, a gaiuta, as pipas da aguada...

E toda a companha tinha agora movimentos atônitos, sob o fogo que aumentava.

O piloto porém, à proa, animava-a com a sua rude calma e alegre vozeria, mandando safar os ovéns e brandais que se despedaçavam. Era um rapaz dos Açores, de trinta anos, robusto e vivo, de uma intrepidez colossal. O velho Sumares conhecia-o desde menino e adorava-o pela sua coragem. Fora isso que o fizera, ainda muito jovem, genro e piloto do velho lobo do mar.

Mas a brisa do norte começava a cair fresca, e o Galgo aumentava já a singradura quando acertou-lhe um balázio num mastro. Então, em todo o navio houve como um estremeção geral, num formidando ruído de derrocada — e panos, vergas, mastaréus e mastro entraram a flutuar em roda, desfeitos, aos pedaços, como arrebatados, num temporal. E, subitamente, vinte pulmões vigorosos estrugiram, numa explosão de pragas:

— Má raios os partam!... Covardes!... Má raios os partam!...

Fora o mastro grande que rebentara caindo de través sobre o trincaniz, destruindo a borda falsa.

— Felizmente, ninguém apanhado! gritou o contramestre, que vinha para a popa, branco como a cal.

E o velho Sumares, junto ao leme, berrava, apoplético, a bracejar:

— Salta à ré! salta à ré! Com um milhão de diabos! Safa... safa!...

A gente caiu, numa rajada, sobre os destroços da cordoalha, coalhando todo o convés, por cima da câmara, e rompeu a cortar à machadinha e à faca os cabos, enquanto o navio atravessava batendo as velas de proa.

Sobre os vagalhões em torno, boiavam agora, sinistramente, pedaços de mastro como despojos de um naufrágio.

O Contest, que fora deixado longe, cessara já de atirar.

A guarnição do Galgo, numa faina trabalhosa, safara, em poucos momentos, o convés, e o brigue, estalado o traquete, virara logo, deixando tudo para trás sobre o mar...

Quando o crepúsculo se desenhou a oeste, alastrando o horizonte, numa vaga iluminação dourada, já o terrível casco britânico desaparecera, como soçobrado...

V 
Daí a dias, numa esplêndida manhã de sol vivo e mar calmo, o navio, só com um mastro, entrava vitoriosamente o Arvoredo. Fundeara na Ponta das Canas, onde fora lançado o carregamento e no outro dia, à tarde, o velho Sumares seguiu para o Desterro onde, desde o amanhecer, não se falava senão no Galgo.

Por toda parte, nas ruas e nas casas, o nome do célebre mareante cintilava como o de um personagem fantástico, em meio às exclamações e comentários. E durante meses, foi essa extraordinária viagem o assunto mais querido das palestras entre aquelas populações da beira-mar, que têm toda uma simpática predileção pelas lendas marítimas.

O velho Sumares nunca mais embarcou, expirando aos noventa anos de idade, entre os carinhos deliciosos das filhas e dos netos, na sua pitoresca habitação da Arataca. E a história da sua vida rude e aventurosa ainda é hoje relembrada, com inefável ternura, na placidez venturosa dos serões, nos lares.

Rio, 1892.



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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014. 

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