À Memória do Dr. Remédios Monteiro
I
Era já noite alta
quando o Zé Lírio transpôs a porteira, bêbedo a cair. Recolhia das Areias, do
engenho do Gaia, ainda àquela hora aceso e ruidoso, onde uma multidão bailava e
ria, numa alegria campestre, celebrando as bodas da Josefina, uma das filhas
mais novas do velho lavrador. A rapariga casara ao entardecer, sob um poente de
púrpura e o dobrar dos canários nas ramagens dos caminhos. O noivo era um
primo, ausente desde anos, longe no Rio Grande do Sul, de onde chegara havia
semanas a visitar a família. Moreno e robusto, o rapaz encantava, pelo porte
hercúleo, o sorriso límpido, o brilho negro dos olhos, a cor quente e viril do
rosto tinto pelo sol do mar. Crescera e se fizera homem como remador, no rude
serviço da barra, onde ganhara algum dinheiro, passando depois a contramestre
de iate. Mal chegara ao sítio, apaixonara-se pelos cabelos dourados da prima,
os seus olhos azuis de longos cílios bastos, os dentes alvíssimos, o corpo alto
e primaveril, de amplas ancas virginais. A prima correspondera-lhe logo às
carícias másculas, abandonando para sempre o Zé Lírio, coitado, que a adorava
loucamente, desde muitos anos. E, ajustado o casamento, tudo se consumara
naquele sábado.
E ali, agora, numa
angústia, na grande dor do coração apunhalado, o Zé Lírio não pôde dar mais um
passo: tropeçante, as pernas trêmulas, agarrando-se às varas da estreita cerca
que ia dar ao terreiro separando o vasto pasto ao lado, foi-se arrastando até
os degraus de pedra da entrada, onde caiu, preso dos soluços e das lágrimas
apesar da carga de álcool, a cabeça pendida, numa atitude alquebrada...
II
Todo aquele dia
levara a beber, numa longa inquietação, a cruzar a estrada, por defronte do
engenho, onde havia uma animação desusada. Às vezes, sem ninguém o ver, dando
volta pela Várzea, metia se no extenso mandiocal da empena, que ia até o campo,
e ficava horas e horas a espreitar, agachado sob as ramas verdes tremendo ao
vento. Daí, por debaixo das frondes do laranjal e do cafezal em redor, entre os
troncos eretos, descortinava as paredes barreadas dos fundos e o terreno
arenoso onde a criação se agitava vivamente, cacarejando sob a luz de ocre
ardente. Na varanda linguarejava-se, numa algazarra adorável. De vez em
quando, raparigas da vizinhança, que tinham ido ajudar os preparativos da
festa, e a Josefina, atravessavam, num rumor alegre e chalrando, para os lados
da fonte. No cercado da horta, saias brancas engomadas fulguravam ao sol.
Então, enternecido
e acometido de dolorosa saudade, entrou a lembrar-se dos tempos felizes em que
começou a frequentar o engenho. Fora por umas farinhadas, havia dez anos, tinha
ele dezoito. Um dos filhos do Gaia adoecera das bexigas e ele fora ajudar a
fornear. Era num inverno de grande geada. Em todos os cantos tiritava-se. E as
raparigas, que raspavam a mandioca, logo ao escurecer iam empoitar-se para ao
pé do forno, junto às brasas dos toros, cujas labaredas vermelhas e risonhas
aqueciam e clareavam a casa, mais que as chamazinhas mortiças das antigas
candeias de azeite, ardendo penduradas aos altos paus do aparelho. E a
Josefina, que andava ainda pelos doze anos, mas muito desenvolvida, com os
seiozinhos nascentes espetando o largo corpete de chita, os lindos olhos de um
azul úmido e novo, a cabeça coroada de esplêndidas meadas de ouro caindo-lhe
pelas espáduas ebúrneas até a curva deliciosa e escultural dos quadris — entrou a preocupar o seu coração, ainda virgem e são como as
estrelas, dominando-o, imprimindo-lhe sensações e sonhos que lhe faziam pulsar
mais forte o sangue nas veias. Nascera-lhe então uma grande alegria, uma grande
esperança, com estremecimentos nervosos, as impetuosidades meigas dos que
acordam para o amor. A rapariga, na intimidade do trabalho e naquele conchego
magnífico e constante dos engenhos, pelas invernias bravas, portas fechadas ao
leste cortante desde a tardinha olhava-o sempre afetuosamente, sorrindo,
admirando-lhe o tórax rijo e socado de roceiro, cujos braços possantes, durante
as longas fornadas, moviam a pá sem descanso. Ele olhava-a também, timidamente,
furtivamente, numa imensa candura de cão. E todas as noites os seus olhares
voavam de um para o outro, com inefável ternura, à luz da fornalha
crepitante...
Mas decorreram os
meses, a mandioca acabou. O trabalho daquele ano findara. A sua paixão, porém,
tornara-se mais intensa, e ele, muito estimado pelo Gaia e a família, não saía
do engenho, frequentando-o à noite, nas palestras carinhosas dos serões. No ano
seguinte, pelas novas farinhadas, já a afeição de ambos tinha uma reciprocidade
mais íntima; falavam-se a sós, sem os acanhamentos, as hesitações dos primeiros
tempos; e, a certa hora, de dia, davam-se rendez-vous ingênuos à sombra
das ramagens, no pomar, ou junto às pedras da fonte, mutuando confidências
infinitas, desviando-se os olhares, num embaraço rústico que os tornava
escarlates, apesar da frescura que se erguia do espelho verde d'água onde,
muitas vezes, o salto inesperado de uma rã os fazia debandar, num temor.
E fora dentro
daquela horta, que ele estava agora a contemplar enternecido, que ela lhe dera
o primeiro beijo, uma manhã de festa, quando colhia rosas para Nossa Senhora.
Ainda lá estava, cobrindo toda uma parte da pequena cerca, erguida
vitoriosamente para o céu nos braços frondentes e altos do cinamomo, com as
suas inumeráveis corolas amarelas radiando como astros, a velha roseira da
Índia que tanto os cobrira com o seu esplendor e fragrância. Como a sua vida
correra plácida e feliz, então!...
E, num
desfalecimento e numa angústia, rompia a chorar por momentos; depois erguia-se,
numa fúria, os olhos raiados de sangue, os punhos cerrados, ameaçando a casa
por entre as verduras. E afastava-se, resmungando, num nervosismo, quebrando
brutalmente com os pés a rama tenra que lhe impedia o caminho...
III
À meia tarde,
quando começavam a afluir ao engenho os convidados, Zé Lírio encaminhou-se para
a venda do Justino, na Rua Velha, por onde tinha de passar o noivado. Nesse
momento entravam a se aglomerar à porta os primeiros rapazes para a costumada
algazarra da noite. O Zé entrou praguejando, todo sujo, os cabelos emaranhados,
chapéu carregado sobre a fronte, as feições amarradas, e, dando “boas tardes” a todos, foi sentar-se a um canto, pedindo cachaça.
Tinha a larga face cavada, engelhada, a barba revolta, e os olhos reluziam,
negros e inchados nas órbitas, com uma luz desvairada. De repente, recaiu num
silêncio e, com o braço apoiado ao balcão, parecia dormitar. Ninguém ousava
falar alto, temendo-lhe as amplas espáduas possantes. Apenas alguns, mais
afastados, comentavam baixo o “caso” do pobre rapaz,
com palavras de compaixão e afeto.
Mas, subitamente,
as crianças que andavam a traquinar no terreiro, romperam a gritar, num alarido
infantil:
—
Olha o casamento! Olha o casamento!
Todos correram para
a porta, quando o Zé Lírio ergueu-se, de um salto, de faca em punho, procurando
investir para a estrada, aos berros:
—
Ah! que os mato!... Canalha!...
Foi uma debandada,
uma balbúrdia de mil demônios. Mas o Justino, que tinha uns músculos de touro,
um homenzarrão, outrora tropeiro e domador, pulou-lhe em cima, com uma presteza
de gato, e agarrou-o de um ímpeto, enlaçando-o pelo tórax e empurrando-o, aos
trambolhões, para o fundo da venda.
Agora, de toda a
parte acudiam pessoas.
No préstito
festivo, enfrentando a casa já de volta da igreja, houve como um frêmito, uma
perturbação que o fez estacar, empalidecendo a todos, em presença do motim. O
noivo conservava-se, porém, impassível, hercúleo e ereto no seu fraque preto
cheio de dobras, mas a seu lado, a noiva parecia trêmula e de cera, sob o tule
tênue do véu.
No ajuntamento que
se adensara em volta, vozes clamavam:
— Não é nada, gente! É o Zé Lírio com a cana!
O préstito
recomeçou a sua marcha, enquanto lá nos fundos da venda o rapaz, num desatino e
colérico, tentava furiosamente desprender-se dos braços poderosos do outro.
À noite, já de todo
acomodado, o Zé Lírio soltara-se para as Areias. A lua cheia mostrava o disco
além, por cima dos montes da cachoeira, lavorada e branca como uma salva de
prata, voltada para os campos, vertendo um polvilho de claridade. O rio, lá embaixo,
no seio chato da planície, estendia uma larga faixa rutilante de níquel, comida
aqui e ali pelo mangal denso das margens. Nos maciços de folhagens, cujos cimos
escorriam umidade láctea, a brisa álgida do norte gemia melancolicamente. Do
alto espaço azulado, as estrelas lançavam cintilações de diamantes em poeiras
inumeráveis. E jamais a profundidade dos céus pareceu conter mais densa nuvem
de pó luminoso.
O Zé seguia, de
cabeça inclinada, pela fita clara e arenosa do caminho correndo entre sebes, ruminando
a sua dor no cruel despedaçamento de todo o seu ser. E essa noite admirável,
sob a qual caminhava com o desespero no coração, parecia-lhe pungitivamente uma
tremenda ironia da Natureza, sempre indiferente e inabalável às coisas humanas!
Ao descer o Caminho
Novo, depois da chama de cólera em que ardera, uma nostalgia sem nome varou-lhe
a alma, ao avistar ao longe a profusa iluminação do engenho, destacando
saudosamente por entre a verdura. Na encruzilhada, quase ao pé da porteira
estacou, ao deparar-se-lhe multidão enorme, homens e mulheres que se apinhavam
no terreiro, banhado pelas luzes derramando-se das janelas, de onde lhe chegava
aos ouvidos o rumor compassado da dança de envolta com os sons roufenhos de uma
gaita. Temendo ser visto, ganhou a picada do Bom Jesus em direção à venda do
Teixeira, de onde voltou depois, às guinadas, bêbedo, completamente bêbedo. E,
cortando pelo imenso vassoural que ia sair defronte do engenho, varou o
caminho, onde errou toda anoite, num esmagamento de derrota, a praguejar
desesperadamente contra os que não o ouviam, embriagados também nos arruídos da
festa. Afinal, numa última e já cansada revolta, tomando o caminho de casa,
pela vez derradeira lançou ao vento este brado angustioso e pressago, que
longamente ecoou no ar:
—
Desgraçados!...
E desapareceu, aos
solavancos e aos tombos, sob a luz silenciosa do luar tocando agora o zênite.
IV
Havia quase um ano
que a Josefina abandonara o Zé Lírio, porque ele, desde a morte da mãe, dera em
entregar-se à bebida e, em certas ocasiões, desordenava-se, dando que falar no
sítio.
A rapariga não o
via desde o último coroado no engenho, onde ele, uma noite, muito
embriagado, levantara uma rixa, da qual resultou saírem os irmãos feridos e o
pai expulsá-lo para sempre, proibindo-lhe as visitas.
Então, profundamente apaixonado com o
desprezo em que o lançara a noiva e toda a boa família do Gaia, à qual a bem
dizer pertencia, ficara de todo perdido, dando-se abertamente ao álcool. Mas a
sua paixão jamais cessara, e ele, embora arredio, andava ao fato de tudo,
sabendo dos passos da Josefina. Por isso, desde que lhe disseram do casamento
dela com o primo, nunca mais deixara as Areias, rondando o engenho, noite e
dia; e naquele sábado, mais do que nunca, os seus pés infatigáveis
freneticamente revolveram ali a poeira do caminho.
V
Agora, à porta de
casa, bêbedo e exausto, com o coração despedaçado e vazio, num desmoronamento
íntimo de todos os afetos, o Zé Lírio sentia como uma grande enervação
inteiriçá-lo, sobre os degraus de pedra. Desfalecido, num acobardamento mortal,
ali jazia ainda ao ar gelado da noite. Tudo, em volta, permanecia numa mudez de
sacrário. As árvores nem sequer farfalhavam de leve nos campos adormecidos,
velados pela dealbação do luar. E nenhum outro som no espaço além do ladrar
soturno e rouco dos cães, ao longe.
Rio, outubro, de 1892.
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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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