Desde meia tarde
que o Manuel Felismino batia o campo atrás do Russilho, um belo animal
que trocara havia semanas nas Aranhas, pelo seu Alazão. Em camisa,
chapéu de palha à nuca, calças arregaçadas, uma corda de embira no braço, e
numa das mãos um punhado de milho verde que agitava para os animais pastando ao
longe, percorrera tudo embalde para os lados de baixo — o
rio do Brás, a Tiririca, as Piçarras. Tomava para cima, em direitura às
Coivaras, quando avistou três cavalos galopando à distância, para a banda dos
Morretes, parecendo-lhe um deles o Russilho. Botou-se então a toda
disparada, gritando:
— Tome! Tome!... Tome! Tome!...
Da roça do Juca
Isidro, porém, avistou já os animais cortando a passo para as picadas e,
atravessando o caminho do Salvador, foi atacá-los junto ao Capão do Meio.
Corria como um desesperado, quando de repente meteu um estrepe no pé, que o fez
estacar num berro de dor. Os cavalos, agora numa desfilada, ganhavam o Campo da
Coroa, desaparecendo por entre as grandes macegas de riachão.
O Manuel, todo
coxo, sem poder firmar-se sobre o calcanhar ferido, arrastou-se penosamente
para um velho tronco de árvore que encontrou. Em seguida, cruzando uma das
pernas, com a ponta da faca que trazia à cinta começou a extrair,
desjeitosamente, magoando-se, a lasca aguda de pau. Mas, numa pressa e nervoso,
vendo que não pegaria mais o cavalo, quando tinha de ir sem falta à cidade pela
madrugada, praguejava furioso — e seus dedos
grossos e calosos tremiam, retardando a operação.
— Agora, ficava ainda a farinha por vender! refletia. E tão necessitado
que estava! Só pelo diabo! Mal andara em se desfazer do Alazão, ao menos
não saltava cercas como aquela peste do Russilho, que não parava no
pasto. Todas as noites era aquilo, desde que o trocara...
E continuava a
esfuracar o calcanhar, dolorosamente, com um manejo pesado e áspero de operador
rude, quando lhe arrebatou a atenção uma vaga algazarra erguendo-se dentro do
mato. Deteve-se, escutando. De instante a instante, risadas límpidas, frescas,
cristalinas, esfuziavam, esparsas, no seio oculto das ramagens: subitamente
cessavam, e só se ouvia o ramalhar das folhas às rajadas do vento: logo após
voltavam, entrecortadas de gritinhos vivos, alegres como um trinar de pássaros:
outra vez emudeciam, e se ouvia então um contínuo e sonoro quebrar de galhos
secos...
De cabeça erguida,
investigando as sebes espessas, cercando o pequeno descampado, a ver se
descortinava alguém, o Manuel murmurou:
— Ah! são as raparigas que andam à lenha, talvez tivessem visto passar os
cavalos...
Inclinando de novo
o pescoço, apressava-se, às voltas com o pé, já sangrando sob o
escarafunchamento brutal da lâmina de aço, brandida rudemente. E súbito,
arrancando o estrepe ensopado em sangue, que arrojou para longe, exclamou num
alívio, respirando alto:
— Arre! Vai—te, estupor!
Ergueu-se,
procurando alguma coisa para envolver a ferida, de onde saía um filete de
zarcão, e dando com umas folhas de mamona à beira do mato, entre uns cipós
finos como barbante, enrolou cuidadosamente o pé experimentando-o sobre o chão.
E, tomando a corda e as folhas de milhos que atirara à grama, internou-se pelas
ramarias. Mas as raparigas já estavam longe, porque ele não as encontrou, nem
as ouviu mais...
Varejada toda a
mata, caiu na planície imensa, do outro lado, onde o campo tem uma amplidão de
oceano. O sol, no poente, barrava o céu de lacre. E para cima, o Azul,
arqueando-se magnificamente sobre os campos, tinha uma nitidez imaculada. Ao
norte e ao sul, as montanhas, recortando-se no horizonte de uma cor esmaecida e
saudosa de esmeralda, retinham ainda, sobre as altas encostas, ângulos louros
de luz, lembrando uma terra de milho maduro. Embaixo, o gado aglomerava-se,
aqui e ali, sob as grandes árvores isoladas ou junto às orlas dos capões,
erguendo-se como ilhas, em jatos colossais de folhas no meio da planura verde.
Num recanto além, para onde o campo abre, o mar, muito manso, com um clarão
baço de espelho. Entre o mar e a planície, os cômoros, em linhas paralelas,
como gigantescas coxilhas de giz em pó. Ao longe, na estrada da Cachoeira, um
carro chiando monotonamente, carregado de lenha. E cortando o ar, para as
bandas da Rua Velha, o som doce e melancólico de uma cantiga.
O rapaz quedou-se,
um momento, a contemplar o campo, numa imensa nostalgia, sob o crepúsculo golfando
sangue. Distante, nas planícies do Bom Jesus, uma manada de cavalos seguia
lentamente para o Campo da Coroa. Então meteu-se de novo a caminho, costeando o
mato da Caeira, que percorria toda a frente do campo, do lado da freguesia.
Mas, muito preocupado com as raparigas, pois lhe viera de repente à lembrança a
Chiquinha Dutra, por quem era louco, e que decerto andava também entre elas,
parecia sentir, de vez em quando, como um meigo rumor de risadas. Parava por
instantes, mas só ouvia o ciciar queixoso da aragem nas folhas. Depois punha-se
de novo a toda, com o seu tome! tome! vibrante. Ao chegar à estrada
real, cortando a mata para o interior desde a beira mar estacou de chofre,
porquanto a manada tomara outra direção, e ele ouvia, agora, distintamente,
para os lados de cima, estalarem as risadas.
Eram as raparigas
retirando, com os seus molhos de lenha — as filhas do Manuel
Bernardino, a Chiquinha Dutra e as da Luíza Théa. Tinham ouvido a voz dele
atravessando o campo, e como estavam sozinhas, temendo a presença de um homem
sob as sebes fechadas, saíram logo para a estrada. Mas a Chiquinha ficara ainda
lá dentro, num pastinho, a amarrar o seu molho, e elas, inquietas, muito
assustadas, com vontade de correr, entraram a chamar:
— Ó Chiquinha! Ó Chiquinha! Apressa-te, rapariga! Olha que aí vem o Manuel
Felismino! Corre, mulher, senão ele nos apanha...
E sentiam,
avançando sempre para elas, ao longo da estrada, aquele grito contínuo, dolente
e saudoso, como um chamamento em vão:
— Tome! tome!... Tome! tome!...
Mas a outra
tardava, e as raparigas entreolhavam-se incessantemente, aflitas, os olhos
muito abertos, acesos de temor, esquadrinhando a encruzilhada lá embaixo, de
onde lhes parecia ia irromper, de súbito, o vulto grosso e possante do rapaz.
A Chiquinha, dentro
do mato, conhecera também a voz do Manuel vibrando ao longe, e ficara de
repente nervosa, atônita. Espavorida, numa atarantação, não conseguia atar o
molho, porque as achas, reunidas à pressa, atabalhoadamente, fugiam,
espalhando-se, sob os seus dedos trêmulos. Quando ouviu os chamados das amigas,
teve um desatino: sem poder mais amarrar a rebelde lenha, abarcou o feixe
inteiro com os braços e, num último esforço, precipitado, deitando-o às costas,
largou a correr. Mas, desorientada, cheia de perturbação, em vez de tomar para
a estrada, enfiou pelo carreiro da Estiva, e nunca mais encontrou as outras
que, sem a ouvirem, e desconfiadas da tardança, já haviam rompido a caminhar a
toda...
O Manuel Felismino,
não ouvindo mais as risadas, detivera a marcha junto a uma grande figueira, que
sombreava a estrada com a sua linda e gigantesca umbela verde de folhas. Aí
entrou a considerar para que lado teriam tomado as raparigas, quando se lembrou
de repente de ir até a Estiva. Talvez andassem por lá!
Antes de retomar o
caminho, porém, para não dar mais passadas em vão, resolveu subir a árvore, de
cujo cimo se descortinava tudo para aquelas bandas; e mal galgara os primeiros
galhos, planando já acima dos arbustos em torno, o pasto da Roça de Baixo se
lhe estendera à vista, muito verde ainda à luz fria e cinzenta da tarde. Então,
esticando-se todo para a frente, agarrado à extremidade de um ramo, lançou um
olhar para além envolvendo a paisagem inteira na sua grande visão. De repente,
viu surgir na fita branca de um estreito carreiro uma saia de chita vermelha,
cujo corpete desaparecia sob um molho de lenha. E fixando o vulto por instantes
exclamou ruidosamente:
— A Chiquinha! A Chiquinha!
Imediatamente
jogou-se tronco abaixo e rompeu a correr naquela direção.
A rapariga, agora,
morta de cansaço, as pernas trêmulas, as costas a doerem-lhe, parara
esbaforida: sentara-se, ofegante, sobre a lenha que arrojara ao chão, olhando a
crescente sombra invadindo os maciços de folhagem e a superfície reluzente de
um banhado ao pé, onde parecia ficarem congelados, numa placa polida de
estanho, os últimos clarões do poente... Mas a agitação em que estava e os
sustos contínuos, com a ameaça aterradora da noite a cair, levaram-na logo a
erguer-se. Tentava juntar de novo a lenha, que se esparramara sobre o capim,
quando sentiu um rumor mais forte nas folhas. E, com um brilho louco nos olhos,
espavorida, desvairada, deitou a fugir, abandonando tudo, rasgando-se e
arranhando-se toda pelas sebes do caminho. Corria numa alucinação, como
perseguida, os cabelos no ar, aos gritos...
Ao varar a Estiva,
o Manuel já não a via mais, encontrando unicamente o molho de lenha, abandonado
no chão. Tremia também, agora, ouvindo a repercussão nostálgica daqueles
gritos, ecoando pelas matas, abalando, perturbando a doçura melancólica das ave-marias.
Receava que fossem ouvidos lá em cima, na freguesia. E timidamente, num temor
ingênuo de alma casta e primitiva, arrependido de ter seguido a rapariga —
teve subitamente um movimento de fuga com medo de que alguém acudisse. Mas
vendo o molho de lenha, ali de rojo sobre as ervas, susteve-se, refletindo. E,
enternecido, pensava na falta que aquela lenha não faria na casa da tia
Sebastiana, a mãe da Chiquinha, que quase não se podia mover, paralítica das
pernas, havia anos, numa viuvez desolada. A filha é que lhe fazia tudo, com a
sua robustez de novilha — plantava a roça, acarretava a água e a
lenha, desde menina, numa tarefa penosíssima, sempre alegre, entretanto, com o
seu lindo rosto rosado e os cativantes olhos magníficos.
— Mas a culpa era dela! exclamava, numa emoção íntima, os olhos rasos
d'água. Sempre a fugir dele, a arisca! Nunca se vira uma coisa assim! Havia
quase um ano que era aquilo! Ele sempre a afagava, a segui-la, numa ternura de
cão; ela sempre a repeli-lo, com um desprezo esmagador! Já no outro dia, na
fonte, quando se lhe aproximara, pedindo-lhe que o ouvisse, porque já não podia
mais — ela voltara-lhe as costas desdenhosamente,
fugindo! Uma noite, no engenho do Marcelino, brincando o Tempo-será, despedira-se
só porque ele aparecera! Ah! era horrível! Mas ele ia mostrar-lhe agora o mal
que lhe queria...
Então, amarrando a
lenha e pegando-a às costas, começou a caminhar. Muito feliz, com aquela carga
amada onde ela deixara como o perfume das suas carnes virgens que ele sorvia
arrebatado, rompeu a cantar.
Anoitecia. Os furos
de alfinete das estrelas começavam a reluzir, cor de prata, no céu negro e
macio. Na encosta escura, aqui e além, lumes ardiam, nostalgicamente, entre a
verdura. E pelas moitas altas da estrada, o cri-cri fino e metálico dos grilos.
Chegando ao
terreiro, o Manuel, sem ser pressentido, atravessou para os fundos, indo
depositar a lenha de encontro à parede da cozinha, onde flamejava o braseiro.
Por uma fresta, lobrigou a Chiquinha fazendo a ceia, agachada no chão, junto às
chamas vermelhas, enquanto a mãe, muito magra e nodosa como uma velha palmeira,
cruzada sobre um roto pedaço de esteira, fiava o gravatá rodando destramente
o fuso nos dedos. Ali ficou longas horas, a olhar ternamente aquele recanto de
lar, doce e humilde, ao qual queria bem pertencer...
No outro dia, pela
manhã, a Chiquinha Dutra teve uma grande surpresa, ao deparar com o molho de
lenha no terreiro. Calculou logo que tinha sido o Manuel, e, pela vez primeira,
ficou pensativa, num enternecimento, num enlevo, invocando o nome dele.
Perdia-se num tropel de recordações. Via-o, pela imaginação, aproximar-se dela,
terno, sincero e bom, implorando-lhe ansiosamente o seu amor, numa voz meiga o
trêmula, acariciadora, como no dia em que lhe apareceu junto às pedras da
fonte. Mas já não fugia, fascinada e tonta, presa à luz viva dos seus olhos
penetrando-lhe o coração. E concluía, meigamente, numa grande piedade, os olhos
cheios de pranto:
— Que devia corresponder-lhe... Sim! corresponder-lhe, entregando-lhe as
sua alma! E ser só dele, devotadamente, e para sempre!...
E, intensamente
abalada por essas reflexões, na sinceridade e na emoção profundíssima do seu
primeiro afeto, entrou em casa soluçando...
Daí por diante,
todas as tardes, quando ele passava da rede, ela ia esperá-lo à
porteira, sob a fronde das velhas laranjeiras murmurosas, à hora em que o sol
cai no acaso, ao reluzir das primeiras estrelas...
Rio, 1893.
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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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