À memória de F. Moreira de Vasconcelos
Desde criança que o
Manuel Basta era triste, amarelo e cismático. O seu todo anguloso e franzino,
de um raquitismo sofredor, causava uma desolação a todos que o conheciam. A sua
longa e profunda anemia dera-lhe ao organismo uma passividade e indolência sem
fim, inutilizando-o quase para o trabalho.
Por isso, vivia
encolhido; não gostava de estrafegar, correr ou jogar pedradas, como faziam os
rapazes da sua idade, ao longo dos caminhos vermelhos e pedregosos, ao
entardecer dos dias, quando os boas-noites sulferinam as cercas e alargam
expansivamente o recorte alegre das pétalas, de onde se ergue uma aromatização
fresca e higienal, enquanto o sol desaparece, saudoso pelo outro lado da
montanha.
Nunca a ruidosa
brincadeira de “boi” — tão
predileta e querida dos companheiros — o atraíra e arrastara, nem mesmo a caça,
a bodoque, dos passarinhos estéticos e coloridos que dobram festivamente pelas
ramadas, na preciosa liberdade dos campos! Ele era “um
moleza”, como o chamavam o Vidal e o Justino, dois
rapazes da vizinhança, verdadeiros quebras que viviam a estropear a pedradas os
cães e as galinhas dos outros, e a roubar de noite cavalos nos pastos para
assistir aos fandangos longínquos, lá para a banda das Aranhas.
A Sebastiana, uma
magricela de pescoço comprido e regateira, que morava na encruzilhada do
caminho da praia e habituara-se a estar, até muito tarde, de lume aceso na
cozinha, sentada ao portal da rua nas noites enluaradas e límpidas, pelo que
era tida por “bruxa” no sítio, — quando via os dois
madraços passar a galope, agitando a silenciosidade soturna e remansosa
daquelas paragens, com um som estriduloso de patas que se perdia pela noite a
fora, praguejava, enfurecia-se, chamava-os de “estupores,
raios”, desejava-lhes desgraças, uma morte afrontosa. Entretanto, elogiava o Manuel
Basta, dizendo-o bem ensinado, obediente à mãe e às pessoas mais velhas, com
modos de rapariga que se cria a pancadas.
A vida do Manuel
Basta era aquecer-se ao sol todas as manhãs, entorpecido, indolente, sentado em
uma pedra, na frente da casa, carpinteirando canoazinhas de cortiça ou fazendo
gaiolas e arapucas para agarrar gaturamos, os bons gaturamos da Caieira, de
papo amarelo e bico recurvo, que dizem rebentar de cantadores; ou, então, à
noite ouvir histórias de feiticeiras almas do outro mundo e lobisomens,
acreditando em sobrenaturalidades, medroso, acocorado junto ao brasido
confortável e clareante, de mãos abertas, voltadas para a quentura, de olhos
arregalados de atenção, pregados na mãe, que fraseava o enredo complicado das
lendas noturnas com entonação fantástica e penetradora, esparramada sobre um
velho pedaço de esteira, fazendo rodar e zunir dextramente o fuso entre os
dedos, na branca fiagem do algodão. Capinava também seu bocado, todos os anos,
aguilhoado pelas palavras maternas que, às vezes, perdiam a habitual tonalidade
e carinho, e, agressivas e ásperas, num sibilar cortante, o impeliam ao
trabalho, desenhando-lhe, aos olhos assombrados, o pavoroso quadro das misérias
futuras, em que negrejava o fantasma espectral da fome e a densidão álgida e
sem lume das longas noites de inverno. Eram essas capinas em pequenos trechos
de terra, nas baixadas úmidas ou no declive seco dos morros, onde ele, nas manhãs
festivais de estio, em que o sol jorrava vivamente do Azul, invadido de repente
de alegria e ardor, num fluido límpido e sutil de natural poesia, brandia a
enxada cantando, sob a poeira de ouro da luz. Pelo tempo das tainhas, em junho,
costumava ir à praia ajudar a puxar as redes, que cercam em grandes lanços
opulentos, quando sobre a planura olímpica e ondulante do mar, além, rola uma
enevoada nostalgia infinita e vão sangrando feericamente, como em apoteoses de
mágica, esses faustosos, deslumbrantes ocasos catarinenses.
A mãe desde a
madrugada começava a lidar, a movimentar o tear até a noite; e aquele bater
contínuo do aparelho, que se ouvia ao longe, à luz amornentadora e vivíssima de
um forte sol de aldeia, era como que o grito de vida, a nota sonora da
Indústria e do trabalho que saía do pobre lar, incessante, monótona e
prolongada, havia urna trintena de anos!
E assim viviam, o
Manuel Basta e a mãe, tranquilos na sua penúria, escrupulosos na sua honradez,
sem pedir nada a ninguém.
Um dia, porém, o
Manuel entrou a perder o seu raquitismo doentio. Parecia engordar. Mas a sua
amarelidão constante acentuava-se em tons lívidos de hidropisia: a sua face,
outrora engelhada e cavada, ganhava um aspecto redondo e liso, e a sua
inatividade e tristeza aumentavam pouco e pouco numa imensa fraqueza
entorpecedora. O seu corpo, agora, negava-se totalmente ao trabalho, em
espasmos de spleen. Sentia, a todo o momento, um cansaço aflitivo:
acometiam-no, de repente, delíquios, dores, agonias. Dominavam-no, à noite,
exaustadoras insônias e, pelo dia, uma sonolência invencível. Estava perdido.
A mãe, então, que o
observava dia a dia, triste e apreensiva, antevendo-lhe, talvez, um fim
próximo, o que às vezes a fazia debulhar-se longamente em pranto — botou-se para a cidade em busca de remédios para tratá-lo,
fazendo-o também tomar mezinhas, uns cozimentos caseiros que lhe ensinavam. E,
todas as noites, ao deitar-se, nas suas rezas pedia a Deus, ansiosamente, que
lhe salvasse o filho.
No entanto o
inverno chegava, inclemente. A natureza, em volta, perdera logo todo o seu
esplendor e alegria, cobrindo-se de infinita tristeza, velha, estiolada e
vencida. Um vento arrepiante e polar, um vento assassino, ululava
desoladoramente. E chuvas contínuas despenhavam-se, tumultuosamente, do céu
torvo e de cinza. O sustento escasseava de um modo extraordinário e terrível;
todas as manhãs, lençóis de neve ostentavam, fora, a branquidão fulgurante e
crua de sua frialdade. Na cozinha já não existia o bom fogo consolador de
outros tempos, no desalento daquela casa tristíssima. Era uma desgraça, uma
infinita desgraça. E o rapaz, que piorava de dia em dia, obesando-se quase a
estourar, expirou uma noite, ao monótono tamborilar da chuva sobre as telhas
esburacadas e corridas. Então, a velha mãe amantíssima, ao ver-se isolada e sem
defesa, ao ataque brutal e desorientante da dor — atirou-se para a
estrada, em busca de socorro, escabelada, rota, sem crenças, a blasfemar contra
Deus, doida, completamente doida!...
Santa Catarina, 1885.
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Fonte:
Virgílio Várzea: Mares e campos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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