segunda-feira, 1 de junho de 2015

Raul Brandão: História do Gêbo

HISTÓRIA DO GÊBO

Por fim, na entrada desse frio e rigoroso inverno, já tinha vencido tudo. De envelhecido e gasto, di-lo-eis um trapo que se deita fora ou um doido de cabelos brancos estacados, a falar sozinho. Toda a gente o conhecia.
Ó Gêbo!
— Ahn?
A mulher azedara com a pobreza e passava horas e horas a chorar, atirada para um canto, ou pregava dias inteiros em monólogos cheios de gritos, de sonho espezinhado, todos lavados em lágrimas. Se tudo acabasse!... Mas nem a Morte escuta os desgraçados, nem o tempo se apressa; vai moendo na sua mó as tristezas, as aflições e o pão negro. O desespero daquela criatura caía em impropérios sobre a cabeça do Gêbo espantado, a suar, e a quem nem a própria desgraça conseguia empedernir o coração.
Todos os dias eram da mesma forma sombrios e tristes. Isto de chorar um dia e outro dia, dá a impressão de que chove e se não- sai do inverno. Outras vezes calavam-se, mas a discussão era talvez maior, era talvez pior... Existência sem cor, que se gasta fio a fio, em que a desgraça se assemelha à desgraça, os gemidos se não ouvem, em que cada um para o seu lado interroga a vida e as horas passam acinzentadas deixando-os todos três curvados, todos três absortos. Porque a vida interior nunca cessa, nem no sono — este monólogo com que a vamos comentando até ao fim, que não tem existência real e que vivo é imenso. Nos homens e nos bichos. Talvez também nas árvores. Nuns desvairado, noutros humilde, baixinho, quase pueril. A vida não é senão este monólogo furioso ou ridículo e mais dorido quando é concentrado e sem gritos... Mas ela não podia mais e irrompia:
— Deste, emprestaste a toda gente. E agora? agora? Riem-se de ti inda por cima, e ninguém te ajuda. Morremos à fome.
— É o mesmo, mulher, é o mesmo. Paciência...
— O pior é de nós, de mim e da pequena.
— Pois é o que me aflige, que por mim quem me dera morrer!
— Não fosses tolo! Olha de teus amigos como trepam.
— Ó mulher, mas que hei de eu fazer? Tu não me dirás o que hei de fazer?
— Roubá-lo! roubá-lo!...
Às vezes esqueciam-se e ainda pairavam em torno duma esperança, a qual, agora nascida, logo a desgraça calcava. A mais humilde poeira de ilusão bastava para que todos três gelados pela desventura, se sentassem na enxerga, prontos a edificar os mais altos castelos e esquecidos de tudo. Só a filha sofria em silêncio, magra e com um sorriso tão triste que lembrava certas horas em que há sol e chuva misturados. E como o Gêbo lhe queria! Pelo seu destino que seria amargo, e por ser o único ser no globo, que lhe não dizia más palavras.
Lá ia indo pela vida fora, coçado e com um ar de aflição que fazia rir. Parecia amachucado: as marcas dos encontrões nunca mais lhe saíam.
A mulher passava os seus dias numa luta desesperada com a desgraça, arrancando-lhe os últimos trapos, disputando-os um a um até vê-los desfeitos. Ao fim do dia ouviam-se os passos vagarosos do velho nas escadas e a sua respiração — anh! anh! — sufocada.
— Aí vem ele... — murmurava.
O Gêbo entrava e ela logo, sôfrega, morta por desabafar o que todo o dia ruminara:
— Até que vieste, homem! E então? Conta. Então há alguma esperança?
— Não há nada, mulher.
E sentava-se arrasado.
— Também, ninguém faz caso de ti. Que és tu? Sabes o que tu és?
— Eu não, o quê?
— Um ente inútil. Não há ninguém que se não ria de ti, das tuas desgraças, das tolices que tens feito... Que é do dinheiro que tanto nos custou a poupar?
— Eu sei lá agora do dinheiro! Não falemos mais nisso... O que lá vai, lá vai.
— Pois é o que tu queres... Mas hei de falar, hás de me ouvir. Deste cabo de tudo, davas dinheiro a toda a gente... Tinhas-me a mim, tinhas a pequena. Reparasses, era a tua obrigação.
— Ó mulher, ora tu que todos os dias vens com a mesma seca. Não me basta a minha aflição!... De que serve isso agora?
— De que serve? Serve de muito!
À noite, à luz do petróleo, o Gêbo fazia escritas com um cobertor pelos ombros e as mãos geladas de frio. A filha, sumida na sombra, compunha-lhe a roupa, e a mulher Talhava, passeando na sala. Batia a luz do candeeiro na cara oleosa do Gêbo, no nariz enorme, nos seus olhos tristes e, do outro lado da mesa, só se viam iluminadas as mãos de Sofia, toda a noite trabalhando sem ruído e sem descanso.
— Já tive unia letra tão linda e agora... Os desgostos cansam a gente.
— É de ti! é de ti! Outros têm penas, desgostos, caem e tornam a levantar-se... — dizia-lhe a mulher.
— Têm sorte, é o que é. Para tudo é preciso sorte. — E curvado sobre os livros contando, murmurava mais baixo:
—... E vão sete...
— Sorte! sorte! A culpa é tua que não tens energia nenhuma. Procura! Deixas-te ficar espapaçado para ai... Tu o que queres é comer e dormir.
Ó mulher!... — E erguia o carão aflito, onde batia a claridade da chapa. Viam-se-lhe os olhos aguados. — O mulher, a gente também perde as forças... Sempre a desgraça! sempre a desgraça!...
— Tudo nos corre torto!
Mas...
— Tudo! deixa-me!..
E desatava a chorar. Então o Gêbo, aflito, a mão curta e gorda ronronando no papel, mentia para lhe dar ânimo.
— Qualquer dia entro aí num negócio, tu verás... Não te aflijas. — E vão cinco... — Também há de chegar o nosso S. Miguel. A desgraça há de se cansar de nos perseguir.
E o pão que trazia para casa era quase uma esmola. Mas tanto mentia que chegava a iludir-se. Às vezes não sabia o que havia de dizer. A desgraça gasta; a desgraça gasta até o sonho grotesco dos humildes. E elas caladas olhavam e esperavam; pareciam suplicar-lhe — Mente! ao menos mente! — E o velho inútil procurava um sonho ainda que fosse usado.
A velha reanimava-se. E outra vez passeava na sala, embrulhada no xale rapado.
— Não, que é preciso sairmos deste atoleiro.
— Agora vai, agora vai, tu verás. Ando aí com um negócio... Sabes tu que mais?... Deixa-me trabalhar. Sossega.
— Nem na cova!
Ia a mãe deitar-se e Sofia, até aí silenciosa, dizia erguendo-se:
— Pai, não se aflija.
— Eu não, filha, eu não. Aquilo é gênio, coitada, tem razão, tem sofrido muito. Vai tu também prá cama. Dá cá um beijo... Assim. Eu cá fico com a escrita.
— Boa noite.
Sozinho, o Gêbo cismava muito tempo, olhando a luz. Depois, horas e horas, ouvia-se a pena correr no papel, parar, tornar... — E vão cinco, e vão sete... noves fora nada... — até que a vista se lhe toldava, e a desoras, embrulhado no cobertor, tombava sobre a mesa, soluçando:
— Não posso! não posso mais! E tinha uma letra tão linda!
Na própria desgraça caem por vezes resquícios do sol. Houve tempo em que respiraram. Tinham.lhe dado escritas, mas faltava a luz dos olhos, e a vida de expedientes tornara mais aziaga. Achavam-no ridículo, ninguém o tomava a sério a esse homem gordo e chorão, que vivia com esta pedra a moê-lo e a gastá-lo — a sorte da filha.
Quase sempre ao deitar falavam da filha.
— É o que nos vale, a nossa filhinha,
— Sempre nos dá mais ânimo.
— É tão boa, tão nossa amiga!...
A velha trabalhava, ruminava projetos desconexos para enriquecerem; a roupa andava defendida e cuidada até às últimas. Luziam as coisas e quase não comiam para poupar, sobretudo ela que tudo guardava para o Gêbo e para a filha.
— Ó homem, mas então? toda a gente se arranja e tu estás sempre na cepa torta!
— Deixa estar, mulher! As coisas não vão como tu pensas.
— Ora não vão, não vão!...
Era ela afinal que o empurrava, àquele ser gordo e inútil. Fortalecia-o.
— Por vossa causa é que eu luto — dizia ele sempre. — Não posso mais!
E não podia. Porque até o sonho mesquinho dos desgraçados se estanca, porque até aos desgraçados chega o momento em que não lhes é dado sonhar... Os pobres contentam-se com pouco — tudo lhes serve, qualquer fio lhes basta, e fazem esforços desesperados para o manterem vivo. Mas a desgraça seca, e o Gêbo, que não tinha imaginação, não podia sonhar; o que ele queria era dormir, dormir aniquilado, um sono profundo de morte. Os outros não lhe consentiam, debatiam- se ainda, e a velha teimava em resistir à desgraça, em iludir-se até à última, até cair por terra, exausta, exigindo.lhe todos os dias uma mentira para alimentar o seu sonho, teimando em defender até aos últimos restos de uma vida imaginária. — Então?... — interrogava, cada vez mais ansiosa. Mas o Gêbo já não sabia. O Gêbo já não podia mentir. E a necessidade de inventar todos os dias tornava-se-lhe tão dolorosa, mais dolorosa ainda, do que a de pedir esmola. Aquele homem gordo, ao chegar a casa, procurava o dinheiro no bolso e algum resto de sonho para atirar à mulher alta, seca, nervosa, de olhos fixos nele: — Então? então... Nada, nada... — Mas mente! ao menos dizia o silêncio, diziam os olhos ansiosos, dizia a atitude da mulher imobilizada diante daquele ser atarantado, cada vez mais grotesco, diante da desgraça cada vez mais próxima. Então, nada! então só ele não percebia que ninguém pode viver neste mundo sem sonhar, e quanto mais pobres, mais necessário se torna juntarem-se e arquitetarem uma mentira, como friorentos à procura de lume!...
No seu caminho só encontra desgraçados e todos os desgraçados procuram iludir-se. O seu convívio é com seres quase tão grotescos como ele e que só se fartam de ilusão.
Ela Dá À tarde o Gêbo vai para uma loja conhecida onde se juntam os comerciantes falidos e os professores sem discípulos, desesperados por terem perdido tudo, menos a faculdade de sonhar. Um, a um canto, calado, com as mãos sobre o castão da bengala e o queixo apoiado nas mãos, escuta. Escuta ou sonha?... Outro fala sempre, maneja cifras como um prestidigitador, e está ao fato de todos os negócios que se fazem na praça. E há outro a quem o dinheiro não interessa. Já tem enriquecido e empobrecido umas poucas de vezes, sempre com a mesma indiferença e o mesmo casaco verde; o que o interessa são as empresas, os planos, as aventuras irrealizáveis. E aquele encostado ao balcão, magro e sereno, só intervém com palavras decisivas e todos se afastam dele: tem a especialidade de meter no fundo os negócios em que entra, por melhores que eles sejam. Todos trazem letras na algibeira, papéis que ninguém desconta, combinações esplêndidas para enriquecer. E falam muito, enganam-se uns aos outros, não por mentirem, mas para tornarem mais visível a sua aspiração, o sonho escondido e inútil. Só o Gêbo não pode mais e olha-os num mudo espanto.
— Oh, como eu sou feliz!... — exclamava um deles. — Agora tenho aí um lugar...
Nem sequer o escutavam e, se um saía, diziam os outros:
— Cuido que está cada vez pior.
— Um homem que teve um crédito na praça!
— Tem a fome à porta.
— Coitado! Eu agora é que trago entre as mãos um negócio...
Vivem iludidos e tombam no sepulcro gastos e com a cisma em maravilhosos lucros. E não têm porventura razão? Não vão a amanhã quinhoar dessa larga e misteriosa empresa — a Morte?


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Fonte:
Contos Portugueses - Volume I. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.

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