segunda-feira, 1 de junho de 2015

Júlio Dantas: Um Drama

UM DRAMA

Os melhores romances são, evidentemente, aqueles que nunca se chegam a escrever.
Ontem, recolhi mais cedo a casa. Abri, ao acaso, um livro de Vaschide e Vurpas sobre a Lógica Mórbida, aborreci-me vinte vezes, vi outras vinte vezes o relógio, atirei-me sobre o meu velho Récamier de mogno e bronze doirado onde é tradição que dormia a sesta Junot — e ia, por fatalidade histórica, a adormecer também, quando bateram as sete horas. Devia estar às sete e meia no Avenida Palace. Este inevitável jantar do Paço de Souza, com o seu bric-a-brac e as suas aventuras de Londres, oprimia-me como uma trovoada próxima. Vesti a casaca, fatigado, sonolento, amarrotei nas mãos um execrável par de luvas novas, embrulhei-me no meu quimono inglês, e ia a acender o cigarro para sair, quando o criado entrou com uma carta.
— Está o portador à espera.
— De quem é?
— Não disse, senhor doutor.
Vi o sobrescrito: letra de mulher. Voltei-o: havia, sobre o lacre doirado, vestígios de um sinete de armas Pattes de rnouche rápidas, nervosas, convulsas. O perfume pareceu-me conhecido. Pus-me a adivinhar a proveniência. Não atinei. Era uma carta de mulher. Abri.
“Meu amigo — Hesitei muito antes de me resolver a escrever-lhe esta carta. Parto hoje para Bruxelas, inesperadamente. Não, meu amigo, não queria saber porquê. Escrevo-lhe com os olhos vermelhos de chorar e tão turvos de lágrimas, que mal vejo as pobres letras que lhe mando. Há de ouvir falar muito de mim. Hão de dizer-lhe da sua pobre amiga todas as ignomínias e todas as torpezas. Acredite-os. Deve ser tudo verdade. Eu nem já tenho o direito de exigir que me respeitem. Esqueci tudo, perdi tudo de abdiquei de tudo. Aqui me tem, com as minhas pobres mãos nas suas, a dizer- lhe adeus e a pedir-lhe o que só a um grande amigo pediria. Deixo-lhe, confiando à sua guarda, um pouco da minha alma e da minha vida. De todas as afeições que me restam, fiéis nos bons e nos maus momentos, escolhi-o a si. Perdoe-me. Disse-me um dia, brincando, que queria ser o padrinho dele. A ninguém melhor o poderia confiar, neste doloroso e delicioso instante em que deixo Lisboa — talvez para sempre. Entrego-o ao seu coração, à sua bondade, à sua ternura. Trate-o bem. Seja amigo dele. Leva ainda, nas mãozitas brancas, os meus últimos beijos e as minhas últimas lágrimas. Quanto me custou a deixá-lo, pobre amor! Aí o tem. É seu. Quis ainda que ele fosse comigo — mas era impossível. Como havia de fazer esta longa viagem até Bruxelas impertinente e doentinho como está! E depois, que será amanhã a minha vida — que serei eu própria, amanhã? Não me esqueci de nada. Vão com ele os seus brinquedos prediletos. O portador, que é o meu velho criado Antônio, leva ordem de lhe entregar tudo. Receba-o e fale-lhe. Que atração que nós outras, mulheres, temos para o abismo — e como eu me sinto, neste instante em que lhe escrevo, horrivelmente feliz e deliciosamente desgraçada! Adeus. Beijo as suas mãos amigas. Dê-lhe, ao pobre querido, o meu último beijo. A cabeça escalda-me, sinto vertigens. É a hora do Sud. Uma vez ainda — adeus. — Sua amiga — Luisa.”
— Está aí o portador da carta? — perguntei eu ao criado.
— Está sim, senhor doutor.
— Mande entrar.
O Antônio, tipo de escudeiro de casa nobre provinciana, vestido de preto, os olhos inflamados de chorar, surgiu à porta. Trazia nos braços uma espécie de berço de verga, acolchoado e coberto com um açafate. Aproximei-me, inquieto — e abri.
Era um gato francês, branco e desdenhoso, soberbo e indiferente, que me olhou com estranheza e se espreguiçou, ronronando, entre uma grande bola de celulóide e uma cabeça vermelha de Polichinelo.


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Fonte:
Contos Portugueses - Volume I. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.

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