segunda-feira, 1 de junho de 2015

Antônio Sardinha: Conto da Páscoa


CONTO DA PÁSCOA


Quando a lua assomou por detrás dos paredões da fortaleza já a matança tinha começado. Subiam gritos roucos das vielas, enroladas na sombra trágica da noite, para logo se apagarem ao longe, num ruído confuso de batalha. Surpreendidos pela sanha do ataque, os vizinhos da cidade saltavam estonteados da cama, não sabendo, ao aferrolharem-se melhor, se eram os mouros que haviam tornado. E, no entanto, descidos do alcáçar, os homens de armas repartiam-se em bandos, e a cada esquina, no cotovelo de qualquer arcada ou rio adro dos pequenos cemitérios da reconquista, esgolfavam-se uns contra os outros, numa refrega impiedosa e sem cansaço.
Assim, por entre pragas e ais espaçados de moribundos, o dia da Páscoa vem encontrar a Bejaranos e a Portugaleses, dizimando-se furiosamente dentro dos muros de Badajoz.
***
Corria o ano de 1289 e não se fechava ainda um século sobre a hora em que a Cruz se vira hasteada, nos adarves da cidade, pelas tropas vitoriosas de Afonso de Leão. Abril viera, mais uma vez, com as cegonhas voando a sua rima compassada e os campos toucando-se de rosmaninho e giesta. Na véspera, entre a procissão solene dos cônegos e dos raçoeiros, o Bispo benzera, na Catedral, o Fogo e a Água. Tudo parecia, com a ressurreição do Senhor, anunciar a paz à velha atalaia do Guadiana. Mas os ódios antigos não dormiam, como brasas de baixo da cinza.
Não dormiam desde o primeiro instante em que a colonização de Badajoz, em seguida à sua tomada, se entregara a famílias oriundas de Portugal e a gente descida de Bejar — a caminho já das montanhas leonesas. Dividiram-se as terras, na presença do Rei, pelos povoadores da cidade.
Cedo a cobiça despertou, ateada pela diferença de raças. E não tardaram Bejaranos e Portugaleses procurarem-se nas ruas de Burgos, como duas hostes encarniçadas, por um sentimento bárbaro de extermínio.
Mandava em Castela, já unida a Leão, aquele D. Sancho, a quem os cronistas chamaram o Bravo.
Possuíam os Portugaleses valimento na Corte, — o valimento de D. Afonso Godinez, favorito do Monarca. Descendia D. Afonso Godinez de certo D. Godinho Godinhes — o de Coimbra, do qual se conta nas genealogias que de Riba-Mondego correra com a sua mesnada à conquista de Salamanca. Não se esquecia o favorito de Sancho IV dos vínculos do sangue, na proteção dispensada aos Portugaleses de Badajoz. Quem sabe se eles não descenderiam, também dos outros, dos que tinham subido de Riba-Mondego na mesnada de D. Godinho Godinhes, com os seus cintos aperrados e os enérgicos braços plebeus, denunciando a adolescência dum povo prestes a ser batizado pela história?
Seguros de tão grande encosto, empenharam-se os Portugaleses em expulsar de Badajoz os Bejaranos, — seus contendores. Não era menos forte o empenho dos Bejaranos em se desfazerem dos Portugaleses.
Com este fermento constante de desavença, o próprio rei
D. Sancho tentou, em pessoa, congraçar os dois bandos enfurecidos. Andavam então em Castela as coisas mui revoltas, por causa dos partidários dos infantes de La Cérda. Temia-se o Monarca de que em Badajoz, ou Bejaranos, ou Portugaleses, se voltassem para seus sobrinhos. Mas a ação apaziguadora do Rei durou tanto, como durou a sua estada em Extremadura. Tornando depressa ao antigo, conseguiram os Portugaleses atirar para fora da cidade com os Bejaranos. E, não contentes, despojaram-nos ainda por cima dos seus haveres e fazendas.
Queixaram-se os espoliados a D. Sancho, e por decisão da justiça real, se intimou aos Portugaleses completa reparação. Entrados de novo na cidade, exigem os de Bejar que se cumpra a sentença da Cúria-Régia. Recusam os Portugaleses atendê-los, arrumados ao apoio que lhes dispensava na corte o favorito do Monarca. Logo a luta se acendeu, mais cruel do que nunca. Rompera em ligeiros motins, mal o sino grande da Sé badalara o recolher. Protegidos pelo esconso das vilas, puderam os de Bejar apropriar-se da parte da alcáçova, e na balbúrdia do massacre, os Portugaleses, saindo, cegos, para o combate, não distinguiam a irmãos e a inimigos, na ira dos seus golpes enraivados.
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“Liberdad! Liberdad!” gritavam os Bejaranos no seu assalto às moradas dos de Portugal. E, de mistura com o tinir dos ferros mordidos de laivos, vermelhos, já aclamam rei a
D. Afonso de La Cerda. A manhã raiara, com o Guadiana muito quieto, espreguiçando na indiferença a sua linha arrastada e suja.
O estridor da carnificina renascera mais violento, e ninguém pensava, ou alanceado pela dor, ou ensandecido pelo ódio, em honrar a Cristo Senhor Nosso, ressuscitado naquele dia. Os sinos da Igreja-Maior ficaram calados, na alta torre ameiada. Nenhuma garrida se ouvia aqui ou além, convidando os fiéis para o convívio dos Sagrados Mistérios. Os largos atulhavam-se de cadáveres, e os cães lambiam, gulosos desse banquete inesperado, as poças de sangue negro. A porta da Catedral ainda uma mão trêmula a abrira. Mas os cadeirados do coro permaneceram desertos de beneficiados e de cônegos. Dir-se-ia que nem a Missa se iria escutar nas naves venerandas, quando no lajedo ressoaram passos brandos e leves. O Bispo entrava, sem cerimonial, acompanhado por um pajenzito, transido de pavor.
Era uma figura macilenta de ancião, com longos sulcos de penitência na apergaminhada face de asceta. Dirigiu um olhar dolorido às capelas ermas e obscuras, para de pronto endireitar o busto, como que de ouvido à escuta. Lá fora, à orla da manhã, a matança redobrava mais implacável, — com mais sanha. Turvou-se a expressão do Prelado, já de joelhos diante do Altar, onde bruxuleava uma lâmpada quase a extinguir-se. As rosáceas inflamavam-se a pouco e pouco, flamejando com o sol nascente, aleluias de cor. E na alma do Bispo, que atormentada procela! Perlavam-lhe a pele amarfinada lágrimas grossas e vagarosas. Nos lábios secos, adivinhava-se-lhe o fio débil da oração refrigerando-lhos, compassiva. Adeja-lhe em torno um como que resplendor místico, O que passaria na prece do ancião, clamando piedade ao Senhor?
Mas, eis que o Prelado se levanta, tocado dum alento repentino. Levanta-se, com um aprumo majestoso de Pastor, e a um sacristão aterrado que se escoava na sombra, ordena-lhe que trepe à torre e despregue a revoada dos sinos, em repiques de festa solene. Paramenta-se ele próprio, entretanto, com ouros e as galas da liturgia. A sua boca recita, confiada, as palavras do Apóstolo: — “Oh mors, ubi victoria tua?” Uma luminosa serenidade lhe acaricia as feições, todo embebido em meditação profundíssima. No alto da torre, por sobre a cidade a braços com a Morte, os sinos repicavam já a glória de Cristo Ressuscitado. Passeando-se na crasta capitular, repetia o Bispo, impregnado duma secreta unção, a apóstrofe jubilosa do Apóstolo: — “Oh mors, ubi victoria tua?” E na torre, os sinos repicavam, — repicavam, levianos e açodados, na manhã transparente de abril.
***
Mas os cônegos não aparecem, não aparecem os raçoeiros. Teria o Bispo de subir sozinho os degraus do Altar, para que não faltasse ao Senhor a dádiva angustíssima da Missa? Volta o coração a apertar-se-lhe, percebendo para lá do muros espessos da Catedral, o bater dos ferros homicidas, de envolta com os brados e as imprecações da batalha.
Enclavinha as mãos afiladas num gesto súplice de misericórdia, e é assim que ele avança para o presbitério, sem acólitos nem fiéis, com a igreja vazia e o coro abandonado, como se um vento tumular houvesse soltado ali a sua rajada devastadora.
Introibo ad altare Dei!” — murmura o Bispo, meio curvado sobre si mesmo. E logo eleva o pensamento ao Senhor, para que não se reze sem ouvintes a missa gloriosa da Ressurreição. Volve-se, depois, lento e angustiado, — “Dominus vobiscam!” pronunciando a saudação ritual. Mas queda-se suspenso, de mãos erguidas, como se o tivesse roçado a asa duma maravilha nunca vista. Prostrada a seus pés, recolhida e atenta, uma imensa turba enchia a Catedral. Entrara silenciosa e em silêncio guardava a mais recolhida atitude, num desejo transparente de bem honrar ao Senhor.
Renova o Prelado a saudação litúrgica, ao começar o ofertório. E então a sua vista cansada, por entre a assistência comprimida, sem um rumor, ao longo das três naves, iluminadas pelo sol em caprichosas fitas de ouro, abrange, agora, com surpresa, mantos floreteados de Alcântara, peitos de couraças esplendentes, magistrados de loba e garnacha, damas arrastando brocados de preço, algumas cogulas mitradas, seguidas duma massa anônima de mesteirais e gente miúda, trajando honradamente a sua véstia domingueira. Apura ainda mais a vista o comovido ancião, e já reconhece muitos a quem ungira nos transes da agonia ou que ele acompanhara ao descanso final, entoando, pausado, o ofício de defuntos. Na ausência dos vivos, os mortos haviam saído do sono frio da sepultura para testemunharem, no milagre da própria ressurreição, o milagre admirável da ressurreição de Cristo Jesus!
Inclina-se o Bispo para o Cálix mais para a Hóstia num colóquio mudíssimo com Deus feito Carne, O seu olhar anuviado mal atinge, esforçando-se, as rubricas góticas do missal. Bate-lhe o coração numa fadiga inexprimível. Mas ao momento solene da Consagração, com o sangue do cordeiro imolado,
o Bispo oferece-se, em holocausto sincero para que a alegria visite os Vivos e a paz seja dada aos Mortos de boa vontade. Vai-se arrastando, trôpego e exânime, na observância dos passos canônicos. “Ite, misse est!” — balbucia, por fim, com a voz desmaiada, a desfalecer-se-lhe na garganta.

O estranho povo de fantasmas sumira-se como por encanto. E ao suplicar, de cabeça pendente: “Placeat tibi, sancta Trinitas...”, os membros inteiriçam-lhe de súbito, o espírito desampara-o sem sofrimento, e o Bispo adormece suavemente na Eternidade, como uma criança no regaço da mãe. Quem vira os Mortos confessarem a vitória da Vida sobre a Morte, não podia continuar mais entre vivos que estavam mais mortos na vida do que os Mortos no seu sepulcro de sombras!


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Fonte:
Contos Portugueses - Volume I. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.

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