O REMORSO
— Carrasco,
excomungado, ainda hás de malhar com os ossos numa cadeia! — gritava o padre
Claro do alto do patim, que nas costas da casa, descia para o quintal.
O filho afastava-se
com faceto desleixo, a assobiar, pelos ombros um casado desbotado de montanhaque, em direção a Norberto, que
plantava bacelo ao cabo da
propriedade.
Como as chuvas
tivessem lavado o céu, a voz do velho penetrava afiada e inteira na
imperturbável quietude das veigas. Docemente, a perder de vista, os socalcos estendiam-se
cobertos do veludo verde das ferrãs. E por eles abaixo até onde a voz atingia,
as mondadeiras e os cavadores paravam a ouvir a contenda injuriosa. Dizia o
padre:
— Este ladrão é a
ruína de minha casa. Aqui só há que escolher: ou ferrar-lhe um tiro ou dar
parte à justiça. Tem vinte e três anos este piranga, e não lhe dói, não sente a
mais pequena sombra de vergonha de estar a sugar o suor de dois velhos! Ainda
por cima, morde a mão que lhe dá o sustento. Arre! Vá para as Pedras Negras,
pegue num bacamarte e saia à estrada!
— Ladra para aí,
ladra! Farta-te de ladrar, velho cão! — respondeu Isaac, já de longe, perto da
geira cio bacelo.
— Vadio! Gastei com
ele quatro contos, melhor fora deitá-los a um poço. Consumições, noitadas,
trabalhos, quantas não passei por mor dele! Meu Deus, meu Deus, grande castigo
me destes!
— Não se consuma,
meu senhor — interveio D. Dorotéia — ele lá terá o pago! Uma alma perdida só
anda para perder as mais; é deixá-lo! Se aldemenos comesse, bebesse, calaceasse
e não andasse ligado a semelhante choldra?
Olha com que foi se meter, a Amada, a Amada que foi de cão e gato, do Praça do Mões, de quem lhe piscou o olho! Todos estes Amados são raça de má colada. O pai, o Arnadão Velho — dizia meu tio Calhorra — foi dos que assaltaram a casa do Alferes de S. Martinho. Mais tarde, encontraram-lhe umas colchas que haviam pertencido ao Alferes. Teve a morte afrontosa que merecia. Que morte! Ainda estou a ver a Amada Velha a gritar pelo povo arriba: à de el-rei, que mataram meu homem! Alvoroçou-se o povo todo e foi-se ver. Estava o desgraçado estendido de borco, à beira do caminho, junto às Alminhas do Bracejar, com as tripas deitadas fora por um rasgão que tinha mais de palmo. Aquilo só golpe de machada ou com gadanha de feno. Dava engulhos mirá-lo. Pois, mesmo assim, toda a gente de Segões se apresentou a defender o assassino: fora o Amado, homem de maus empréstimos e ruins tornas, que quisera roubar duas moedas ao Pinto Moleiro. O fidalgo da Silvã, pôs-se de peito feito e livrou-o. Oh! os filhos saem ao pai. Tudo lhes serve, couves, galinhas, roupas dos estendedoiros. A Amada mãe não roubou uma saia de folhos à minha Rosa? E como se descobriu?
Olha com que foi se meter, a Amada, a Amada que foi de cão e gato, do Praça do Mões, de quem lhe piscou o olho! Todos estes Amados são raça de má colada. O pai, o Arnadão Velho — dizia meu tio Calhorra — foi dos que assaltaram a casa do Alferes de S. Martinho. Mais tarde, encontraram-lhe umas colchas que haviam pertencido ao Alferes. Teve a morte afrontosa que merecia. Que morte! Ainda estou a ver a Amada Velha a gritar pelo povo arriba: à de el-rei, que mataram meu homem! Alvoroçou-se o povo todo e foi-se ver. Estava o desgraçado estendido de borco, à beira do caminho, junto às Alminhas do Bracejar, com as tripas deitadas fora por um rasgão que tinha mais de palmo. Aquilo só golpe de machada ou com gadanha de feno. Dava engulhos mirá-lo. Pois, mesmo assim, toda a gente de Segões se apresentou a defender o assassino: fora o Amado, homem de maus empréstimos e ruins tornas, que quisera roubar duas moedas ao Pinto Moleiro. O fidalgo da Silvã, pôs-se de peito feito e livrou-o. Oh! os filhos saem ao pai. Tudo lhes serve, couves, galinhas, roupas dos estendedoiros. A Amada mãe não roubou uma saia de folhos à minha Rosa? E como se descobriu?
Vai-se para a Santa
Eufêmia e a zarga levanta a saia no bailarico. A Rosa deu fé do que era seu,
foi um dia de juízo! Se hoje cerrarmos os olhos, meu senhor, comem-nos tudo o
que há na casa; nem as sarapas escapam! Já me disseram que o Norberto andava a
cheirar às fraldas da Adelina, a mais nova. É o irmão que lhe mete os vícios no
pêlo. Mas ela quere coisa de mais vulto; o Norberto não levanta a grimpa,
oprimido do trabalho, coitadinho! Gostava dum fidalgo como arranjou a irmã, vá
encomendá-lo ao inferno! Ai, senhor, anda o Demo nesta casa! D. Dorotéia acabou
a soluçar, enquanto o padre, sentado nas escaleiras, se velava dum ar sombrio e
doloroso.
Lá ao fundo, meio
ocultos pela terra dos valados, revoltos como trincheiras, os dois irmãos
conversavam. O camponês, de mãos grossas sobre a pá cravada no saibro, ia
ouvindo as mofas do irmão mais velho, o fidalgo de mãos alvas e preguiçosas. O
ar claro e sutil trazia-lhes, entre o grunhir dos bácoros e os cacarejos das
galinhas, as lamentações dos pais. O sol dobava às espaldas do pinhal velho.
Por complacência e
desenfadamento, Isaac pôs-se a ajudar o cavador, manobrando a pá com a
galhardia de homem forte e folgado. Entretanto, os carros desciam da serra,
chiando.
Por trás da casa em
que eram nados, a aldeia alapava-se negra e rumorosa, empenachada já do fumo
das cozinhas. Escurecia e, de volta da seara, passavam ranchos nos atalhos
cantando alegres cantigas. Desceu afinal a noite e, enquanto Norberto plantava
o último baceleiro, Isaac entretinha-se com quem ia no caminho, jogando uma
chalaça a esta, regressando com aquela a um dito de serão ou das mondas. Quando
a Maria Amada apareceu, debruçou-se a falar-lhe de maneira que o irmão não
ouvisse:
— Então, a estas
horas?
— Os lobos não me
comem.
— Que andaste a
fazer?
— A limpar o trigo
na belga do Pai Moiro. Tanto queria acabar, não houve modos. Então você bulhou
com o padre?
— Que queres, o
raio de minha mãe foi-lhe dizer que estive a jogar.
— É uma alma do
diabo!
— Só está contente
quando nos vê pegados. Às vezes estamos a palestrar e a rir em muito bons
termos e logo ela aparece a dizer-lhe: “Ande, ande; beijam-se logo, mordem-se”.
Sempre assim.
— Ele nem é homem,
nem é nada. Se fosse cá comigo endireitava-a...
— É fraco, mas um
santo homem. Os fracos são assim, amam a todos e, mais que ninguém, àqueles que
os dominam. Minha mãe está nestas condições — manda mais nele que o bispo, e o
pobre meteria as mãos no lume só para lhe agradar. Coitado, quere-me mais que
às meninas dos olhos; o que não temos ambos é paciência para ruminar em
silêncio os nossos aziúmes.
Pois o que tem a
fazer é afastar-se quando se derem tais passos. Quem cala vence. E você, a
bater despique, não leva sua mãe à parede. Tem uma língua mais comprida que as
bandeiras. .
— São nervos...
— E o asco que me
tem...!?
— Então...
meteu-se-lhe em cabeça que és tu que me desvias para o mau caminho.
— Pois serei. Vá,
navegue para a África; que espera?
— Resposta.
Um grande silêncio
passou entre eles. Estridentemente, Norberto sacudiu a fraga a greda da
ferramenta.
— Se me quisesse
bem, não partia proferiu ela.
— Pois se parto é
por isso. Lá irás ter...
— Dizem.me que se
cai lá como tordos...
— Histórias da
carochinha; para onde conto ir é saudável. Mas deixa-me...
— És tola. Todos os
meses hás de receber a tua mesada; depois, quando as coisas marcharem de
feição, avantas para lá.
— Olhe que eu não vou
jurá-lo, mas palpita-me que ando grávida.
Isaac envolveu-a
num longo olhar de ternura em que ia o agradecimento pelas voluptuosidades
sentidas juntos, não enganadas. E disse, emergindo ao cabo dum pensamento:
Esta noite não vás
ao serão: vou lá a casa.
— Dialhos! Meu tio
fartou-se ontem de pregar, porque à de el-rei era forte escândalo, você não me
recebia e, depois de me fazer um filho, dava-me o pontapé...
— Teu tio é uma
basta chapada...
— É meu tio; não há
de velar?
Pois sim, mas que
não seja sendeiro. Faze o que te digo, fica em casa; obra das dez horas lá
apareço.
— Para a pouca
vergonha, está você sempre pronto! — disse ela sorrindo, e fungando como poldra
ao sentir macho.
— E tu não?
Romperam às
gargalhadas, e eia, dando um passo, despediu-se:
— Até logo.
— Até logo.
— Ah! já me
esquecia — tornou, voltando atrás. — A Maria Carradas quer saber se sim ou não
ficamos com o cordão...
— Agrada-te?
— Se agrada! Anda
meio povo morto por lho caçar.
— Quanto pede ela?
— Cinco moedas...
quanto lhe davam no S. Silvestre, sem tirar nem pôr. Diz que é por ser num
aperto...
— É de ouro fino?
— Ouro antigo,
maciço...
— Bem, vai
buscá-lo; lá pago. Mas ouve: eu falo primeiro com ela.
— Olhe que, se nos
demoramos, a Ludovina atravessa-se...
— Não te
apoquentes; amanhã tens o cordão.
— Adeus; lá espero.
Norberto
dispunha-se a partir, de enxada, pá e alavanca ao ombro. De bom modo disse a
Isaac:
— Não largas essa
rês, e isso há de acabar mal.
Mal... por quê? —
questionou o irmão desabrido.
Tu sabes, são umas
vagabundas, ela, a mãe, a irmã. Ninguém lhes dá aceitação. A Maria Amada, essa,
está mais corrida que as chinelas que traz calçadas.
Lérias. Por serem
pobres não quere dizer que sejam más mulheres.
— Não, mas são de
quem as comete.
Lá se viu se a
Adelina te deu ouvidos.
Beh! Não dá porque
anda o Zé Militão com sentido nela, e o que quere é casamento. Talvez a não
desmoçasse o Arruda?
— Olha que
alanzoeiro! Onde há ele mulher, muito recolhida ou casta que seja, que o lambão
não tenha gozado? Bem sei que o Mões teve relações com a Maria; pouco me
importa. Isso é para vocês... fazerem caso dessas coisas; eu não faço.
— Lá te avenhas;
sustentas à mãezona, ao Amado, que é uni bêbedo, a todos. A familiagem não te
há de ficar barata. Onde vais cavar dinheiro para ustir com as despesas? Tu não
o ganhas; nossos pais’ não to dão. Roubas-lho? Olha, assim que deitem conta ao
centeio que falta na arca grande, temo-la bonita. Quarenta alqueires em dois
meses!...
Subiram
vagarosamente o carreiro; Norberto, carregando da ferramenta, Isaac das
palavras do irmão e do cuidado de ter de desencantar cinco moedas, para
satisfazer, na amante, a cobiça do cordão de ouro.
***
Com o trabalho
extenuante, a linha estatuária de Norberto tinha vergado. Uma corcova
testemunhava nele o jogo fero e constante do esforço. Era um moiro, de sol a
sol, para quem as raparigas não sorriam, porque a lida o tornara disforme e
andava sempre um côdeas do sujidade.
Apenas ao domingo
lhe viam tréguas as costas dobradas e os tendões formidáveis de vergalho bem
curtido.
Nesses dias, vestia
o fato de serrobeco, lavava mal a cara, e ia para o adro jogar o fito. Ganhava
quartilhos, perdia quartubos, à custa dum ou de outro pataco esquecido sobre as
mesas e caçado no vôo, ou que os fidalgos lhe davam quando, por causa de Isaac,
lhes ia levar as trutas da ribeira. Na manhã, o vinho, bebido de véspera,
enliçava-o traiçoeiramente na enxerga como corda de muitas voltas, O padre, que
ao florir da alba devia encontrar a égua aparelhada para correr às obrigações,
despertava-o a sopapo.
— Ainda não são
horas, cagaçal? Deixa, que a jogatina há de te dar de comer!
Norberto erguia-se
praguejando, e abalava para o trabalho, enquanto Isaac dormia a sono solto, e
D. Dorotéia aquecia a vianda dos porcos, que logo de manhã cedo, começavam a grunhir.
Como não quisessem pagar soldada, não tinham criado nem criada. Uma ou outra
paqueta passara pela casa. Mas o gênio irritável dos amos espavoria-as e elas
abalavam sem ter aquecido lugar. Chegou, entrementes, o sorteio, e Norberto foi
apurado para artilharia. Foi uma tristeza na casa, porque se ia embora o bom
trabalhador. O moço, como andava impando da labuta, agradeceu a caderneta que o
mandava para a Capital, onde pela certa, a vida devia ser menos áspera.
Na véspera da
partida, modo de honrar nele o irmão, a rapaziada deitou descante pelo povo, da
venda do Travanca para a venda do Rolim.
Isaac, que tinha
conta aberta nos taverneiros, fartou o adjunto da vinhaça.
Depois, já os mais
morfenhos dormiam, meteram para os serões, e o senhorito, tão longe do que
fora, cantou à desgarrada sobre a viola do Carquejo.
No serão da
Ambrósia, entre outras moças louçãs, pousavam as Amadinhas. Ia para dois meses
que haviam rompido com Isaac, a isso obrigados por juramento público e formal,
uma vez que o padre Claro lhes fora surpreender o tio, de gorra com os filhos,
a saquear-lhe a arca das ceveiras. Em má hora voltou ele a aproximar-se: o
Amado, que conservava uns restos de honradez, ergueu o sacho em ameaça e o
estouvado desistiu. Mas como lhe faltasse fêmea, cansava-se a suspirar,
lamentando que a gravidez, que Maria lhe anunciara, não existisse realmente,
visto desse modo a ter segura. Como era uma mocetona forte e sadia, outros lhe
andavam na cola e, ao que se rosnava, com intentos de casar.
Em voz sonora de homem
bem comido e bebido, ao fadinho que chorava entre os dedos sujos do Carquejo,
Isaac cantou:
Por
que a teus olhos daria
Deus
assim uma tal sorte?
Ao
desafio co’a morte,
Matam
eles mais, Maria.
E, dlim-dlim-dlim-dlão, na pausa, que se seguiu perpassou a vênia dos cantadores ao fidalguinho e a bisbilhotice cochichada das mulheres. E todas as caras se voltaram mofinas ou curiosas para a Maria Amada, que metera olhos confusos no chão. Mais alta e ardente, Isaac atirou segunda trova, ante Norberto que, soturno, o espiava:
São
negras — é bom dizer,
As
penas das andorinhas,
Mas
co’a negrura das minhas
Não
se podem parecer!
O Zé Militão retrucou-lhe com cantiga da sua lavra, a puxá-lo ao desafio.
Isaac correu à
roda, e lá foi na cadeia girante saltando de par em par, sem erguer o repto do
cantador.
Um dançarino —
picava na viola a Caninha Verde
ribaldia — deitou mão à Maria Amada.
— Deixa-me —
proferiu e, como se apoquentasse mágoa, apartou-se para um canto a fiar.
Norberto volteava
com Adelina e, contente da sua sorte, esquecia-se de vigiar o irmão. O fado de Anadia deu aso à moída letra:
Oh! D. Carlos de Bragança e, depois, deste,
aparado e sapateado, ainda se armou a Chula. Outra vez, defronte de Maria
Amada, a voz cariciosa de Isaac garganteou:
Fiandeira,
ruim hora
Em
que te fiei meu carinho;
Enquanto
fias no linho,
Meu
amor em fio chora.
E, desta feita, a moça suspirou, um suspiro que lhe fez tremer o seio forte e alevantado. E Isaac, que tal viu, dali em diante desvairou de alegria. Na penumbra, Adelina deixava-se palpar por Norberto e isso fazia-lhe esquecer todas as juras da terra.
Era já tarde quando
o descante desmanchou, e Norberto, que não dera fé de o irmão se sumir, entrou
sozinho em casa. Ia cheio de Adelina, dos beijos que lhe pudera furtar, e tanto
fogo impedia-o de dormir.
Assim, mal os galos
cantaram, saltou da enxerga; e, depois de renovar a manjedoura da égua, começou
a pôr em ordem a troixa. Embrulhou as camisas num lenço da cabeça e noutro de
assoar, em cujas pontas havia, bordada a retrós vermelho, uma quadra de amor,
atou os seus seis tostões em níquel; em seguida meteu tudo numa bolsa de sarja
e, de mansinho, foi bater à porta da casa onde dormiam os pais.
Já estavam ambos a
pé e o padre Claro pigarreava alto, fumando o cigarro. O Moiro veio, percorreu
a casa farejando e, assentando-se sobre o travesseiro, bocejou e uivou.
— Então, pronto? —
perguntou-lhe o padre em voz rude, fitando-o muito, o que nele era indício de
comoção.
— Pronto, falta
aparelhar a égua.
— Bem; vai tirá-la
cá para fora. E quem vai contigo até a vila?
— O Toninho. Vou
chamá-lo e depois aparelha-se.
Na rua, as vozes e
os passos retiniram sob o toldo refrangente do céu gelado. Era no inverno e
águas nos cômoros choravam, O padre pôs-se a aparelhar a besta. Meio oculta na
treva, a mãe estendia o braço com o lampião de azeite erguido ao alto, O padre
Claro dispôs os alforjes em aparatoso, estudado equilíbrio, enquanto o Toninho
e Norberto tiritavam. Depois, deitou a gualdrapa d,e pele de vitelo por cima e
afivelou a cilha.
A um aceno de
Dorotéia, meteram para dentro de casa, a fim de que os rapazes engolissem uma
bucha e dois tragos de aguardente. Havia na sala uma atmosfera consoladora de
agasalho. E Norberto, afagado, rompeu na sua loquela de aldeão. A mãe,
entretanto, trouxera a açafate e, sobre a tampa voltada, serviu pão, queijo e
azeitonas e um gole de aguardente no fundo verde duma garrafa.
Os porcos, sentindo
passos, começaram a roncar, e ela disse:
— Aqueles grulhas
estão sempre prontinhos para comer.
Alumiando sempre e
teimando com Toninho para que se servisse, D. Dorotéia fez as suas
recomendações, de olhos no filho: “Tivesse muito juízo, e nada de maluqueiras
se queria chegar a ser um homem. Deixasse-se de camaradagens, que sempre vinham
a dar em droga, e de fumar, que o fumo era bom para os peralvilhos”.
O padre tossia,
sorvendo o cigarro a grandes goladas.
“Juizinho, que
ninguém as deita em saco roto. E aos superiores, aos comandantes, fosse sempre
obediente, e tão fiel que não existisse nunca um argueirinho por onde lhe
pegar. Todas as manhãs, não se esquecesse de se recomendar à Senhora do
Livramento que o livrasse das más horas e dos maus repentes. Três meses
passavam depressa e cinquenta mil-réis sempre se haviam de conseguir para
resgatá-lo. As matanças ainda estavam longe, mas a chouriça da carne lá lhe ia
ter, se tivesse tento na bola.”
As recomendações
dela correram durante muito tempo, enternecidas e molhadas de lágrimas.
Norberto escutava-as, cabisbaixo, a vista cravada na toalha sobre duas moscas
que voltejavam friorentas ou moribundas.
Logo que os rapazes
acabaram de trincar a última dentada, o padre Claro foi à porta escrutar o
horizonte. E volveu a dizer que eram horas, se queriam botar à vila antes de o
carro da carreira ter abalado.
D. Derotéia perguntou
se não se esqueciam de nada. Norberto circunvagou o olhar numa operação
remissiva de memória, palpou a carteira de couro, verificou que levava o
canivete e o lenço de assoar. Restava ir ao quarto do irmão dar-lhe um abraço.
A mãe, por curiosidade, acompanhou-o. Mas o leito estava na compostura da
véspera, sem sinal de se terem deitado nele.
Norberto
compreendeu e Dorotéla desatou em exclamações:
— Aquela alma
perdida não dormiu em casa. Já por lá anda metido de novo com a Amada. Olha que
amor de irmão, nem um abraço te veio dar, meu filhinho!...
Norberto calara-se;
de semblante dorido, voz trêmula, o padre perguntou:
— Então não dormiu
em casa?
— Não, meu senhor.
Já se meteu outra vez com a porca tinhosa.
— É um desgraçado.
— Quando ontem
andaste pelos serões, ele falou-lhe? Fala franco... — inquiriu Dorotéia.
— Não sei; não vi.
— E tu, Toninho?
— Também não vi,
senhora D. Dorotéia.
— Pois onde havia
de dormir, senão em casa dela! Foi garrafada que lhe deram a beber.
— Trata de te aviar
— disse o padre em voz cada vez mais trêmula e sentida — que o carro não
espera.
E, chamando-o de
parte, deu-lhe dinheiro:
Aqui está para o
caminho. Não tenho mais, mas todos os meses lhe mandarei. Vá com o santo Anjo
da Guarda.
— Três meses passam
depressa — proferiu com voz artificiosamente desenganada, enquanto metia, a
chorar, os 3$000 no bolso.
Fora, a neblina
esfarelava-se em gotas miudinhas e mormacentas. A este, o céu acalentava uma
vaga promessa de luz. Via-se já luzir a espinha dos telhados. O Toninho ajeitou
a égua a um pouso e subiu; Norberto ia montar, o padre gritou-lhe:
— Não pedes a
bênção a tua mãe, malcriado?
Não andava
habituado a despedidas e quedou confuso. Mas engatilhou as mãos para a mãe, que
estava na calçada, ao lado dele. Coberta de lágrimas, ela abençoou-o e,
metendo- lhe mão no colete, acrescentou num sopro:
— Pega. É pro
vinho. Olha que fui vender os ovos da pedrês para te dar.
Norberto pulou
sobre a albarda atrás do Toninho e tangeu...
A égua abalou e os
dois velhos foram até atrás das casas vê-los ir. À Dorotéia, que soluçava,
disse o padre:
***
Nessa tarde Isaac
Claro sentia toda a voluptuosidade de viver. A primavera, o amor e a força
andavam em volta dele como três aias de bom servir. Já os centeios apendoavam,
e chegara o tempo das romarias e arraiais. Grimpadas às cerejeiras, as
raparigas debicavam as cerejas, de perna morena à dependura por entre os ramos,
e, das hortas, os mostajeiros ofereciam seus frutos de tão esquisito sabor.
Isaac, como todos
os ociosos da aldeia, tinha o culto da bela sazão, nada o encantando tanto como
os dias de sol, em que a figura dos homens, pelos caminhos, se nimba de tons
velasquenhos, e a melancolia é varrida da fisionomia das coisas. Andava
satisfeito, além disso, no amor-próprio: o rapaz que lhe cortejava a amante
atirara-o pela porta fora, a cachação e a pontapé; e ela, volvidos dois meses
de ruptura, voltara a ser a amante apaixonada, rendida agora, de todo, à sua força
de macho. Mas, acima de tudo, saboreava a revolução muda que,
involuntàriamente, provocara no ânimo de Adelina. A mulher acordara nela ao
contato da mal disfarçada voluptuosidade que ali se estava vivendo e, mormente,
ao contato das fortes manifestações da sua varonia. A inveja e o ciúme
estremeciam a cada palavra na boca da mocinha; se ele aparecia, corava, e punha-se
a tremer, como uma paveia ao vento, sempre que com a irmã se fechava na Casa de
Cima. Uma vez fora surpreendê-la a chorar e, sob os seus afagos, desandara
cabisbaixa, num amuo em que a puberdade alvoroçada retrocedia a jeito de criança.
Entendedor em
psicologia feminina, Isaac palpitava de todos os palpites daquele sangue e
coração revoltos. E a imaginação eriliçava-lhe o gozo sonhado duma perversão; e
pensava, descia a uma destas reflexões superficiais que acodem automàticamente,
que nem sequer são importunas e se esvaem, como os zumbidos no ar: como me
poderia aguentar entre as duas?! Diabo de sorte!
Interpretava assim,
limpando a caçadeira, quando a Maria Carradas apareceu a passos de fera:
— Muito boa tarde.
Venho buscar o dinheiro que ainda me deve...
— É para o que a
gente os cria! É para o que a gente os cria!
Isaac ergueu-se a
puxá-la para um canto, donde os pais não ouvissem. Em voz desabrida, retorquiu-lhe
a criatura:
Se me tira de parte
para se desculpar, perde o tempo. Quero cá o meu dinheiro, o mais é nisga.
— Quem lho nega,
mulher?!
— Quem lho nega?! e
vai em quatro meses para me dar uma bisbórria! Homens, até parece propósito!
— Sossegue,
vai-se-lhe pagar. Quanto devo?
— Nem você sabe
quanto me deve! Vá, pergunte à sua amiga quanto me deu...
— Deu-lhe 7$000,
não é verdade? Restam 14$000; amanhã ou depois lhe serão entregues.
— Quero-os aqui já;
promessas e cantigas não enchem barriga. Mas que seca! Raios partissem o cordão
e a hora em que tive a idéia de lho vender! Olhe, senhor Isaac: quem boda não
tem, gaiteiros não roga. Não podia pagar, não comprasse.
— Cale-se, mulher!
Já lhe disse que, depois de amanhã o mais tardar, recebe a importância. Os
negócios nem sempre correm...
— Não me importa,
quero para cá o dinheiro! Não o tenho aqui, como lho hei do dar?
— Ai sim? Vou-me
queixar ao senhor padre Claro...
A Maria Carradas
deu uns passos resolutos para a escaleira; Isaac, num repelão, sacou-a para
trás. Intimidada, tornou:
— Pois olhe:
torne-me o cordão. Por que me não torna o cordão?
— Agora é
impossível. Eu pago-lhe, já disse. Era feio tirá-lo à rapariga; que não diriam
para aí?
— Mais feio é
roubar e não pagar a quem se deve!
Isaac rangeu os
dentes, de cólera, do sentimento da sua fraqueza, vendo-se espremido nas mãos
grosseiras daquela mulher:
— Juro-lhe pela
minha boa sorte...
— De juras estou eu
farta.
Juro-lhe pela vida
de meus pais; quere mais?
— Mas oh! senhor,
por que não me há de tornar o cordão, se eu lhe restituo os 7$000 que cá tenho?
Onde não há, el-rei o perde!
— Que havia de
pensar a rapariga?
— Que havia de
pensar? Mande-ma para o inferno. Se ela lhe quere bem, será a primeira a
desatar o cordão do pescoço.
— Nem todos são
como vossemecê, senhora Maria Carradas.
— Não são, não; se
fossem, não vinha tanto mal ao mundo. Houve urna pausa e Isaac compreendeu que
a mulher abrandava. Calculadamente instou:
— Tenha paciência,
amanhã ou depois lá lhe levo o dinheiro. Verá!
— Quantas vezes mo
repetiu! Agora é certo.
A mulher olhava o
chão, refletindo; ao cabo dum longo silêncio, volveu, porém:
— Mas por que não
larga essa mulher? Largue-a. Ora, eu a prender-me com tretas. Não, não quero cá
saber... Vou ter com o senhor padre...
Isaac voItara a
limpar a caçadeira e não pôde impedir que, a correr, a mulher subisse a escada.
Lá em cima, à porta verde, entreaberta, gritou:
Senhor Reitor!
Senhor Reitor!
Dentro da casa
soaram passos e D. Dorotéia respondeu:
— Quem chama? Ah! é
a senhora Maria Carradas. O senhor Reitor não está, foi dar um anjinho à terra.
Se é recado que eu lhe possa dar...
A Maria Carradas
parou indecisa, depois, encarando Isaac interdito ao fundo do pátio, proferiu:
— Então eu volto
quando estiver.
D. Dorotéia, que
espreitara por uma grelha, fechou a porta.
— Espero até depois de amanhã pela manhãzinha —
disse embaixo, a sós com Isaac. — Dentro desse prazo, ou me dá o dinheiro, ou
entro em posse do cordão, ou faço grande escândalo. Depois não se queixe!
Anuviou-se o
espírito de Isaac e, num rápido exame de consciência, reconheceu quanto era
nojenta a sua situação: dos dois destinos, ele representava na família o
destino dos inúteis e dos maus. Norberto o dos oprimidos, de Caim. Mas a perver
são era grande, e pouco sólido o remorso para emendar seu caminho. Nessa noite,
todavia, na friorenta e voluptuosa Casa de Cima, Isaac dormiu mal. Manhã cedo,
ainda o campanário não havia tangido para a missinha, saltou da cama.
— Onde vais tão
cedo? — perguntou Maria.
— Vou a casa,
porque o filho do Capitão há de lá aparecer para irmos pescar. Ao meio-dia
estou de volta.
Lavou-se numa
prateira que estava por terra e, como não visse toalha, perguntou:
— Maria, onde me
limpo?
— Limpa-te à fralda
que a vesti ontem.
Enxugou-se a
regougar, mal humorado, e foi beijá-la em despedida:
Adeus.
A Amada, a miar
ternuras, passou-lhe os braços em volta do pescoço.
— Deixa-me!
Quem te pega?
Isaac arremessou-a
contra a parede, num gesto de saciedade, e abalou. Rompia a madrugada e, na paz
morta dos seres e das coisas, os campanários de seis aldeias falavam uma
linguagem alta e religiosa.
Pelos estábulos, um
ou outro chocalho badalejava. Detrás duma esquina, esperou Isaac que os pais saíssem
de casa para a igreja. Primeiro apareceu o padre, trôpego, dobrado, de batina,
o cálice debaixo do braço numa bolsinha de chita vermelha; pouco depois a mãe,
embrulhada no xale preto de todos os dias, a tamancar.
Assim que
desapareceram no cotovelo da rua, Isaac entrou para o quintal e daí, escalando
a janela, penetrou em casa. Em seguida, ràpidamente, servindo-se do podão com
que o pai aparava as videiras, fez saltar a tampa, toda a parte superior da
mesa em que era costume arrecadarem as economias. Ficavam-lhe, deste jeito,
escancaradas as três gavetas. Procurando, entre papéis, encontrou a caixinha
amarela onde o padre metia as notas e moedas de prata: a caixa estava porém,
vazia. Revolveu os papéis: em vão. Nas outras gavetas havia canecas de
marmelada, mecha para petiscos, circulares, pastorais, bulas antigas, receitas
de botica e toda uma correspondência de anos. Um a um examinou os sobrescritos,
não escondessem dinheiro. Bem esperluxou: nem uma cédula de tostão descobriu.
No meio da papelada, topou com um retrato seu, cartas, dele umas, outras dos
diretores dos colégios por onde passara e várias cuja letra lhe não era
familiar. E começou a ler as que se lhe afiguraram desconhecidas. Uma delas era
de Norberto, datada do regimento, e rezava assim:
“Meus queridos
pais: lanço agora a mão à pena para lhes contar a minha triste vida. Saberão
que tive oito dias de calabouço por ter rejeitado o rancho, em que encontramos
um rato morto. Só me deram pão e água e levei o tempo todo a chorar, não tanto
pelo mal que me faziam como pelas saudades que me vieram da nossa casa. Meus
queridos pais, vejam se me arrancam a este degredo, senão, mato-me.
Os sargentos são verdadeiros
cães para mim, e os soldados fazem-me muita troça porque sou marrânica e não
quero ir com eles para as moças do fado. Um dia destes, enquanto fazia guarda
às cavalariças, arrombaram-me’ o baú e urinaram-me dentro. Tinha lá o resto dos
dez tostões que me mandaram pelo Quim da Joana e mesmo esse me levaram. Fui-me
queixar ao tenente, mas ele pôs-se a rir e a mangar comigo. Ainda que me
desfaça todo para os ver contentes, não há maneira. Sei bem o exercício e, no
tiro, sou dos que melhor batem no alvo. Mas isto pouco vale, porque não sou
bem-falante, nem ponho vulto ao pé dos alfacinhas. Estou a escrever, com os
olhos rasos de água, enquanto não chega o meu quarto. Mandaram-me dizer que o Moiro estava surdo; coitadinho, não o
mandem matar, que tão fiel era e tão amigo da égua! Tinha muita pena se
fizessem mal ao pobre cãozinho, ainda que não ouça, nem seja lampeiro como nos
bons tempos. Saibam que aqui encontrei um condiscípulo de Isaac; contou- me
muitas anedotas dele e que era muito esperto, mas às vezes com pouco miolo.
Sempre lhe arranjaram emprego? Se ele ainda anda metido com a Amada, deixem-no
lá, que o dia do relego há de chegar. Dêem-me novidades da terra e façam muitas
visitas a quem por mim perguntar. Mandem-me dizer se o Militão já casou com a
Antônia Borralha.
Deitem a bênção a
este seu filho Norberto Claro.”
Isaac dobrou a
carta, repôs os papéis no seu lugar, e disfarçou com arte o arrombamento da
escrivaninha. Duas angústias lhe cerravam a garganta; a frustração de seus
esforços para encontrar dinheiro, e a hediondez de seus atos perante as
lástimas de Norberto, juntas à tristeza que cobria aquela casa, como uma
mortalha de defuntos. Mas de que jeito quebrar o destino? Como todos os seres
rebeldes à lei das coisas, tinha a curiosidade de viver. Viver para ver os
homens, as loucuras, as repúblicas, as estações, para se sentir nas infinitas
modalidades da terra. Esse instinto, ajudado do pessimismo sorridente que
considera o tudo como pó, o tudo como musgo do nada, passageiras a virtude, o vício,
as emoções, sustinha-o à beira das resoluções vigorosas.
O pensamento nele
era profundo, mas rápido. Levantava a poeira violenta dum tropel de cavalos
numa estrada de’ verão e desaparecia. A própria dita de se sentir sentindo lhe
fazia volver o rumo das idéias.
Num minuto volveu
até as fezes à porcaria de sua condição. Viu-se o parasita do pobre velho, o
ladrão de Norberto, a lagarta doirada daquela pobre casa. Um minuto, para logo
voltar a si, ao seu pessimismo confortável, preocupado apenas com a perspectiva
dum escândalo e a exautoração pública, em que fatalmente perderia a amiga.
Nesse dia, tendo
percorrido a escala dos expedientes, gizou um plano arriscado e difícil.
Se o pai não tinha
o dinheiro na gaveta é porque o trazia nos bolsos. Como chegar-lhe, se não
largava a carteira e dormia com ela debaixo da almofada, escarmentado de
gatunices? Lá cismou e, depois de muito cismar, escolheu o seu jogo.
Antes que dessem
graças a Deus, depois de cear, esgueirou-se da cozinha para o quarto do pai e,
cautelosamente, meteu-se debaixo da cama. Aí esperou uma boa meia hora
estendido sobre o sobrado, acalentando a esperança de resolver o grave
problema. O padre veio por fim, resmungando, praguejando contra égua, que não
comia o feno e estava fidalga, e contra a mariolagem do filho, e começou a
despir-se. Do seu esconderijo, Isaac apenas lhe via as pernas mirradas e secas
como cabos de faca. Ao cabo dum quarto de hora, o padre estava na cama,
fumando. A mãe veio dar-lhe as boas-noites e perguntar:
Tem roupa bastante?
— Tenho. Dorme com
Nossa Senhora.
Uma longa hora
havia decorrido e só se ouvia a égua mascando no estábulo. A respiração do
velho sibilava. Isaac arrastou-se, então, como um réptil debaixo do leito,
reprimindo o fôlego ao mais leve estalido das velhas tábuas. E, ajoelhado,
sutil, insinuou o braço por debaixo do travesseiro. A sua mão fina e
preguiçosa, destas mãos afusadas de parteira, sondou, passeou, divagou enquanto
o coração lhe batia um galope louco de cavalo. A carteira foi arpoada.
Folheou-lhe as bolsas, enxergando como se tivesse olhos de nictalope. A velha
carteira guardava quatro notas de mil-réis, não mais. Descoroçoado, assaltado
novamente por uma matilha confusa de sentimentos, quedou-se indeciso; resoluto,
enfim, tirou as quatro notas e meteu-as no peito. Docemente, com mais decisão
mas não com menos prudência, colocou a carteira saqueada no seu lugar. O pai
pigarreou e a alta e antiga cama de cerejeira rangeu dolorosamente. Isaac
suspendeu-se um instante e, de rastos, como um ladrão consumado, atravessou o
aposento escuro, a sala, o seu quarto, abriu a janela e saltou.
***
Isaac correu a
fechar a boca da Carradas com os 4$000; ela, como era boa alma e sentia a
consumição do seu semelhante, concedeu mais um prazo de 24 horas.
Estava um dia remançoso,
sem ventania. Não havendo perigo de incêndio, D. Dorotéia lembrou-se de fazer a
barrela — que estava a roupa a encardir nos cestos, há muitas semanas. Para
isso chamou a Narcisa, uma afilhada que morava a dois passos, e a fogueira foi
acesa no alpendre, onde havia mais largueza que na cozinha e a lenha estava à
mão de semear. Seriam dez horas da manhã, o fogo chamejava de rijo, e nuvens
densas de fumo se esfarelavam através da telha-vã sobre a aldeia. Já fervia a
dupla fila de potes e panelões quando D. Dorotéia chamou para a mesa. O almoço
foi silencioso e breve, e Isaac não provou garfada.
Ao levantar, Isaac
perguntou ao pai se podia ir a Forles a cavalo. Como ele não tornasse resposta,
cavalgou e desapareceu na velha calçada romana, por entre os pinhais imóveis.
Os manos Isidros receberam-no afetuosamente, deram-lhe muitos conselhos, mas de
dinheiro nem pinta. Cheio de desespero, entrou em casa quando o pai lavrara o
óbito do anjinho, dado à terra na véspera. Como era muito idoso, a mão tremia-
lhe em sacolões nervosos, e cada palavra lhe levava tempo imenso a escrever.
Além disso, a letra era miúda e humilde como anotações de monge nas margens dum
homiliário.
— Quere que lhe
lavre o assento? — perguntou Isaac, condoído.
— Não senhor.
Isaac foi sentar-se
meditabundo num degrau do patim. A mãe, mal o viu, teve dó dele, que não
almoçara, e apressou-se a servir o jantar.
Quando o padre
entrou, os vapores da sopa evolavam-se olorosamente das tigelas atestadas. Não
obstante o bom caldo de feijão branco e o farto salpicão de lombo, Isaac
absteve-se, como de manhã, de tocar em prato. O padre, à sobremesa, perguntou:
— Então, não come?
— Obrigado; não
tenho apetite.
— Quere que lhe
faça alguma coisa? Que tem, senhor?
— questionou a mãe,
a seu turno.
Isaac despediu um
mau sorriso por entre dentes.
— Lá se arranje —
tornou ela. — Já não está em idade de se lhe fazer a papa.
O padre continuava
o registro quando Isaac se acercou resoluto:
— Tenho uma coisa
grave a comunicar-lhe...
O velho nem
pestanejou.
— Muito grave...
Continuava ele a
sua caligrafia difícil e laboriosa e Isaac rangeu os dentes:
— Escuta-me, ou não
me escuta?
A pena trêmula
cantava: enterrado no cemitério desta freguesia...
Isaac deu um salto
sobre ele e, paralisando-lhe a mão, disse de ar torvo:
— Há de me
ouvir!...
O velho olhou-o de
face e, com a voz a estalar de cólera, lançou-lhe:
— Oh! malvado. Já
nem o pão me queres deixar ganhar?
Isaac largou-o de
arremesso e, saindo à sala, escreveu:
“Sou um desgraçado,
mas a minha desgraça vai ter fim. Devorei-lhe quatro contos de réis e hoje vou
matar-me por causa de 1O$000. Sim vou matar-me; hoje à noite, se não tiver
restituído 1O$000 que me emprestaram, dou um tiro na cabeça. É quase cômico que
uma vida dependa duma contingência tão fraca. Senhor Abade... meu pai,
salve-me, arranje-me este dinheiro; eu queria ainda viver, ser bom, ser útil.
Senhor Abade, lave-me da vergonha e serei outro.”
Escrito o bilhete,
foi com uma certa fatuidade romântica pô-lo diante dos olhos do padre, e saiu a
ver a lixívia para dar tempo a que uma resposta raciocinada lhe fosse dada. A
água fervia em cachões nos potes bojudos de dois almudes. Nas panelas
esgrouviadas, o vapor cantava. A labareda enrubescia o alpendre todo. E Narcisa
ia e vinha, rubicunda e alegre, escorrendo suor.
O velho, feito o
assento, desceu as escaleiras e, de sacho na mão, foi-se a mondar na terra de
batatal, de que as primeiras folhas, em ferretes de esmeralda, despontavam.
Isaac correu ao escritório e, por baixo de sua súplica, encontrou a máxima jocosa:
Qui lavat asinitm perdit aquam et saponem.
Desvairado, então, começou a soluçar sobre a sua desdita. Caía a noite, uma
noite suave e negra sem rumor de vento, nem lucilações de estrelas. Lá fora a
fogueira crepitava esbrasiada, infernal, alimentada de novo para a segunda
água. O padre entrou fazendo chocalhar os tamancos. Isaac correu-lhe ao
encontro e, em voz submissa, interrogou:
— Que resposta me
dá?
O pai abanou a
cabeça, franziu os lábios num esgar mirado:
— Ainda tem a
desfaçatez de me pedir dinheiro?
— Escuso pois de
contar...
— Dinheiro que eu
tivesse, não era você que mo larpava. Antes gastá-lo em rosalgar...
— É a última vez
que lho peço.
Já disse, não o
tenho; mas, ainda que o tivesse não lho dava.
— É possível que o
não tenha, mas autorize-me a ir pedi-lo a alguém...
— Pedi-lo, peça-o a
quem lhe apetecer. Que tenho eu com isso?
— Mas em seu nome;
bem sabe que não tenho crédito...
— Pois arranje-se —
proferiu dando uns passos para a janela. — Não está farto de me roubar? de me
tirar as sarapas?
— Bem, tenho então
de acabar com a vida?
— Acabar com a
vida!... Ah! ah! ah! um homem que nunca teve dignidade! Acordou-lhe tarde a
honra.
— Não me insulte;
ninguém tem nada que me jogar à face.
E os latrocínios
contínuos que tem cometido nesta casa? e as ofensas à sua mãe, e as pancadas
que lhe tem dado?
E a exploração
sórdida de seu mano? Não lhe podem jogar isso à face?
— Podem, embora
metade do que está dizendo não seja verdade. Mas na sociedade, no público,
ninguém me poderá imputar a mais leve mácula.
— Vadio! Melhor
fora tê-lo estorcegado ao nascer. Mariola!
— Senhor Abade,
dê-me os 1O$000!... Quere deixar dar cabo de mim por uma bagatela?...
— Escusa de teimar;
não tenho dinheiro, mas tendo-o, não lho dava.
— Pela alma de seu
pai, não me abandone...
— Mas que rala! Não
o tenho...
— Deixe-me ir
pedi-lo emprestado...
— Quem lhe pega?...
Isaac reconheceu a
decisão inabalável do pai. Ele, tão fraco e tão bom, não se rendia à evidência
da sua angústia.
Lentamente a cólera
subia-lhe ao peito, fazia-lhe trepidar as artérias como o motor duma máquina
afadigada. A idéia de que se via em embaraços por uma coisa ínfima, como uma
agulha e insuperável como o infinito, o desespero sufocava-o.
— O senhor não é
pai nem é nada; o senhor é um monstro de crueldade!
— Isso, isso, sou
um monstro.
— É um monstro, é!
Vê-me aqui a seus pés, amarfanhado como um farrapo, e não tem comiseração.
— Já lhe disse que
não tenho dinheiro...
— Mande pedi-lo...
— gritou Isaac de arranco.
Humildemente,
dir-se-ia que, tomado de medo, o padre retorquiu:
— Pedi-lo... se
você me arranjasse 50$000 para remir Norberto?...
— Roube-o do cofre
das almas... Não é certamente a primeira vez.
— Malvado! Deus te
dê mais que o que eu furto às almas. Não comias um almoço!
— Ata ou desata? —
tornou o filho com exaspero.
Já lhe disse, não
tenho dinheiro; há muito que não tenho dinheiro...
— Quere então o meu
suicídio?
— Nem quero nem
deixo de querer. O senhor já tem idade para ter juízo.
— E não há de ter
pena? — proferiu em voz escarninha. — Não?
— Não venha ele
outro mal à minha casa.
A mesma voz
chocarreira, alucinada, tornou:
Então há muito que
não vê dinheiro?
— Assim a bênção de
Deus me cubra.
— Ah! ah! ainda por
cima é perjuro... Isso é o que se chama um sacerdote exemplar!
— Então, esses
4$000 que traz na algibeira?
O velho levou a mão
ao bolso e, sacando a carteira, num abrir e fechar de olhos reconheceu o roubo.
De salto e com garra formidável atirou-se ao pescoço do filho:
— Ah! ladrão! Ah!
ladrão!
Isaac não pôde
furtar-se e rolaram no soalho abraçados. A luta foi cega, feroz e rápida.
Quando Isaac se safou de baixo do velho, caía ele para o lado, inerte. Os olhos
saíam-lhe das órbitas e da língua pendia-lhe um fio de espuma. Os dentes negros
arruaçavam.
O moço lançou em
torno um olhar desvairado e, possesso, sacudiu o velho com frenesi e roquidos
de espasmo:
Pai! Meu pai!
Um instante de dor
imensa e, numa carreira louca, saiu de casa, desceu o patim. Cingia a terra uma
abóbada de breu. O alpendre, logo abaixo, irradiava como um inferno. E o
desgraçado correndo para lá, dum pulo, projetou-se na fogueira, mergulhou a
meio dos carvões incandescentes. Contra ele, potes de dois almudes caíram de
borco, quebraram-se as panelas em mil astilhas. E com a carne assada, cabelos e
fato a arder como archote, correu na noite, uivando um uivo que atemorizou
cinco aldeias.
---
Fonte:
Contos Portugueses - Volume I. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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