HISTÓRIA CÂNDIDA
Vou contar-lhes hoje uma história cândida,
a história da Rachadinha. Cândida pela heroína, não tanto pelo assunto.
Rachadinha chamava-se assim por ser filha
de João Vasco Rachado, correeiro, que por sua vez possuía esse extravagante
apelido por causa de um traço de família que de pais a filhos distinguia a sua
gente do resto da humanidade. A natureza, humorística que se diverte a rachar
beiços, ranarizes, rachar queixos, como é tão comum, rachava-lhes a orelha ao
nascer com um pequenino talho.
Vou contar-lhes a história de Rachadinha,
uma pobre menina que perdeu, quer dizer, que perderam.
Era cândida, disse eu, antes ingênua.
Nada conheço mais arriscado, e logo
arriscado para dois, nada mais arriscado do que uma menina ingênua. Rachadinha
(não lhe sei outro nome) era ingênua. De sorte que se aplicava a fazer
ingenuidades, enquanto o pai, correeiro, fazia correias.
Namorava, por exemplo, ingenuamente, quer
dizer, deixava-se namorar. Passava horas e horas, numa tripeça de pinho à porta
da loja, vadiando infinitamente, de saias curtas e tamanquinhos, sem meias,
prendendo os calcanhares dos tamancos ao travessão da tripeça.
Lia então jornais. Ela sabia ler: um luxo
de escola pública que o zelo paterno cuidara em proporcionar-lhe muito cedo.
Lia muito jornais, sem escolha: do dia ou da véspera, da véspera ou do ano
passado, conforme vinham, embrulhando encomendas de remendo à indústria da
oficina. Lia romances de rodapé, da melhor maneira de serem lidos,
baralhadamente, ora de um jornal, ora de outro, encartando as aventuras da
Gazeta nas do País, interessando-se muito por uma
situação dramática que começava pela Gazeta
da Tarde em Boisgobey e ia
desprender-se pela Cidade do
Rio, em Montepin.
Com uma tal facilidade de critério, não custa
compreender como a donzelinha levava a existência, lendo também as horas e os
dias sem atenção nem coerência, como se fosse a vida um longo rodapé de jornal,
abstruso e confundido. Um meio sono de preguiça e ininteligência, que lhe era
suave, por isso que o pai, que não tinha recursos para dar-lhe gozos,
caprichava esforços para poupar-lhe a mínima contrariedade.
Passava assim o melhor do tempo, ali, na
tripeça, como um mostrador de porta, escandalizando, perturbando o trânsito com
a presença de sua beleza, enchendo a rua, o arrabalde, com a irradiação perene
da sua reputação de formosíssima.
E era bonita a valer, o diabo da pequena!
Vasco Rachado, seu pai, era brasileiro e mestiço. A mãe era uma italiana, já
morta, que alguns tinham conhecido na loja e que afirmavam ter sido bela. A
Itália dera-lhe os olhos negros, onde morava a febre da campanha de Roma, onde
vivia a lenta insônia do vulcão de Nápoles, onde nadava a onda tarda dos canais
venezianos e a gôndola sonolenta; o Brasil fizera o resto: a pele de pêssego
que lhe forrava as formas, mil frutos tenros despidos para vesti-la, e o sabor
acre, de aguar a boca, que lhe transudava a beleza, como a impressão reflexa da
pitanga, do tamarindo, do cajá dourado... Façam lá por sua conta um juízo como
possam, daquela soberba moreninha a ponto de quinze anos, que um banho róseo de
sangue e saúde fazia arder, sobre a tripeça, como um braseiro de corações.
O pai venerava-a, pobre operário sórdido,
com acanhamento, como confundido de ser pai daquele milagre.
Ela, entretanto, ingênua, nada sabia disso.
Sempre a mesma. Bela! Era a voz dos outros; pouco se lhe dava. Também, havia na
loja um aprendiz levado, que, quando o mestre estava fora, vinha devagarinho,
por trás dela na tripeça e repuxava-lhe o paletó para beijá-la na espinha, no
meio das costas. E ela nem percebia a cócega. Que tinha ela com isso? O beijo
era dos outros.
Havia tempo em que o pintor Juvenal,
vizinho da frente, não lhe tirava de cima os olhos. Ela não percebera ainda.
Mesmo por isso, não se dava ao trabalho de rebater a barra da saiazinha impúbere que ainda
usava, quando a posição na tripeça descobria-lhe mais algumas linhas de canela.
Sucedeu que um dia, o pintor Juvenal,
passou pela tripeça e entrou na loja de João Vasco. Vinha trazer encomendas.
Preparava-se para uma excursão artística no
campo, donde pretendia tirar paisagens d'après
nature. Queria que João Vasco
lhe fizesse umas pastas ou bolsas especiais para o transporte de objetos de sua
arte e, além disso, que lhe fixasse uma correia à caixa das tintas, de modo que
fosse possível levá-la a tiracolo.
- Pregue-me aqui assim, assim... Olhe
assim, deste jeito...
João Vasco observou que era melhor o
contrário, parecia mais natural com as dobradiças da caixa para baixo.
- Ora, tem razão! Estava eu pedindo uma
asneira...
E estava besta, efetivamente, o nosso
Juvenal, sentindo Rachadinha a dois passos dele, respirando-a como um aroma
bêbado, no cheiro das graxas da oficina, no fedor das grandes pelancas de couro
curtido, que caíam tesas pelas paredes ao redor. Rachadinha, entretanto, nem
sequer o vira entrar, preocupada com um rodapé muito interessante do Diário de Notícias, que tinha outro embaixo, do Novidades, que ia servir, daí a pouco, de
continuação.
Depois desta entrada, houve outras visitas
do pintor Juvenal.
Depois das duas bolsas da primeira
encomenda, seguiram-se outras bolsas, uma série inacabável de bolsas...
E ele vinha saber do trabalho e tomava uma
banca para admirar a perícia do correeiro...
As paisagens d'après nature, já se sabe, adiadinhas para o
largo futuro. Na ocasião, muito mais o preocupava, d'après nature, um desenho de figura.
- Tento contigo! diziam as murmurações da
rua inteira. Não dê cuidado, replicava ele, nós cá, pintores, é só plástica...
Quando o correeiro percebeu o sentido exato
da encomenda de Juvenal, abriu-se-lhe um grande claro de alegria n'alma.
Desde muito lhe ocorrera a idéia de um
noivo para a filha. E ele o desejava intimamente como um guarda para aquele
tesouro que lhe não cabia nas mãos, alguém que o libertasse daquela esplêndida
pessoazinha, cuja presença ali o envergonhava de ser humilde, daquele adorável
trambolho que lhe vexava a liberdade de ser pobre.
Aceitou então o pintor, exultando. Passou a
recebê-lo no interior da loja, na saleta de jantar, onde havia, perto de umas
vidraças de área, uma mesa preta, de abas pendentes como orelhas de cão, que se
erguiam para o serviço. Bebiam. Palestravam em boa companhia, Rachadinha
presente sempre, em cândido silêncio ou cortando a palestra com disparates
ingênuos.
Passou depressa a facilitar a qualquer hora
solidões de noivados aos supostos noivos. Junto da mesa, ficaram os dois
calados da primeira vez. A menina, abstrata, enrolando no dedo uma ponta de
cordel, Juvenal, incendiado, na contemplação ardente da menina. Fora, na
oficina, ouvia-se o correeiro batendo a sola.
Depois familiarizaram-se. Rachadinha
mostrava a Juvenal bonecas antigas, malfeitas e sujas, trazia-lhe álbuns
infantis para mostrar as pinturas, metia-lhe nas mãos agulhas de crochet e novelos para ver o que saía.
Tudo a sério, com um sorriso quando muito, na sua maneira inocente de criança
grave; sem reparar que o pintor beijava-lhe as mãos, os pulsos, pegava-lhe a
cintura sem reparar que ela mesma tocava-lhe ao outro joelho com joelho, quando
ensinava o chochet e pousava-lhe os seios nos ombros
para mostrar estampas.
Juvenal bebia em êxtase toda aquela
simplicidade deliciosa.
Uma noite que ela estava mais calada e mais
distraída que de costume, Juvenal ouviu-lhe bruscamente:
- Não acha esquisito?... nós aqui
sozinhos!...
Fora, na oficina, ouvia-se João Vasco,
batendo a sola do serão.
Essa pergunta a Juvenal alvoroçou-lhe um
fogo novo em toda a natureza.
- Não acho, não, disse em tom de grande
calma... Demais, sabe... eu sou pintor...
- Ah, então os pintores?...
Juvenal foi deixando gradualmente a calma.
- Sim, sim... tudo!... Sou pintor,
queridinha. Não sabes?... A pintura é inocente. Nós, pintores, temos para as
mulheres uma admiração pura. Inteiramente pura, meu bem! Os outros buscam amor:
nós queremos modelos. Uma menina... que fortuna para nós! Despimo-la, meu anjo!
acomodamos num cavalete, num estrado, numa posição qualquer, e ficamos adiante,
adorando a forma. Depois, temos a tela, tomamos um carvão, os pincéis... Vamos
passando para a tela o feitio do corpo. Com a tinta fazemos caros cabelos, os
bonitos olhos. Dai a pouco, em vez de uma bela menina há duas: a que fica no
quadro para sempre, como uma cousa de se adorar, e a outra, que se veste e
parte, com um beijo do artista na fronte... Estás aqui comigo... É como se não
estivesses. Ah! um beijo do artista! Não sabes, anjo! anjo! o que é um beijo de
artista? É sempre casto:. nós beijamos estátuas! Tens medo de mim, agora? da
minha adoração platônica?!... Tens? tens medo?...
Rachadinha não entendia muito aquilo. Viu
bem, contudo, que a cadeira de Juvenal caminhava para ela aos saltos, enquanto
o pintor falava.
- Que é isto, exclamou surpresa, sentindo
um braço brusco pegar-lhe a cintura com muita força.
- Nada de mal!... eu sou pintor, minha
queridinha, murmurou Juvenal, prendendo-a e enchendo-lhe o ouvido de fios de
bigode e repetidos beijos.
- Mas espere!... espere um pouco, pediu
ela, relutando.
Mas o braço fechava-se cada vez mais rijo
ao redor da cintura, e os bigodes ásperos arranhavam-lhe a face toda, colando
cáusticos de beijos.
- Eu sou pintor!... eu sou pintor!...
Era tão sincera a veemência daquela
desculpa, que Rachadinha começou a achar razão no rapaz. Desde que ele era
assim pintor, ela foi cedendo...
Juvenal estava fora de si. Um lampião de
gasolina no meio da mesa, de luz baixa, oferecia urna meia obscuridade
cúmplice. Percebendo que a resistência decrescia da parte da moça, Juvenal,
assaltou-a como uma fera. Dilacerou-lhe a roupa, para morder-lhe o seio.
- Eu sou pintor... eu sou pintor...
balbuciava sem mais ligar sentido às palavras.
Do corpo da moça desprendia-se aquele
cheiro de couros que o entontecera um dia; das roupas impregnadas do ambiente
da oficina, crescia uma emanação grosseira, bestial de vernizes e curtume que o
encarniçava.
O movimento da luta, o pudor do assalto, o
calor da noite na saleta, a chama da gasolina purpureavam divinamente a carne
morena da vítima. Juvenal estava perdido.
- Eu sou pintor, gaguejava em ofego.
Queremos modelo... modelo... modelo...
A moça não lutava mais. Juvenal caiu com
ela para o escuro embaixo da mesa, como para um abismo.
Soube ser pintor o platônico!
Na oficina, o correeiro continuava a
martelar o serão.
Conclusão, a esperada. Ventre, fuga do
pintor, desespero paterno, um pouco de polícia no meio, e a vida como dantes.
Rachadinha sempre a mesma... na sua
tripeça. Quando alguma conhecida petulante pergunta rindo o que foi aquilo, ela
apresenta uma trombinha de Santa Ingenuidade:
- Como ele era pintor...
Somente para o correeiro, ela perdeu um
pouco aquela auréola de superioridade que o acabrunhava.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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