FORA DE HORAS
O último amor de Emílio foi uma viúva,
antes um capricho feito viúva, ou melhor ainda um demônio feito capricho.
Mme. Lamour, Mme. Lamort, ninguém lhe sabia
exatamente o nome. Inscreviam-na dos dois modos, na comédia do mundo alegre, e
ela não se dava ao trabalho de expedir uma errata, deixando que vacilasse o
apelido de amor ou morte, como o mistério da vida, que tão bem resumia: o
incêndio do ditirambo onde as almas ardem e acabam.
Não cuidem, porém, que estragava a meditar
simbolismos o ensejo de descanso poupado na agitação da vida impetuosa.
Pertenciam-lhe ao egoísmo inerte, como um tesouro de indolência, as horas da
sesta, as horas nuas da sesta, no ambiente resguardado do dormitório, quando
estirava-se ao divã de veludo preto, fresca da reação do banho, vaidosamente
deslumbrada da brancura da própria carne, gostando na epiderme a viagem leve,
saltitada, de uma mosca atraída pelas migalhas da última ceia.
A imaginação sonolenta ia e vinha
passivamente, na comparação da alvura absoluta das formas, onde se concentrava
a luz toda das vidraças entreabertas - com o negrume intenso do forro do divã,
das peles do tapete crescidas e retintas, da seda preta do pára-vento
atravessado obliquamente pelo vôo pálido de cegonhas de prata, da estranha
decoração negra das paredes, da madeira dos móveis, dos encostos de cupidinhos
negros esculpidos em luta, enrolando-se, mordendo-se como filhotes de tigre.
Nada perturbava o repouso. Nem um
pensamento, nem um ruído. As vidraças detinham fora o ramalhar múrmuro do
jardim. Além do biombo, o relógio não batia, parado num longo minuto de
felicidade material. Até que chegava o sono, lentamente, respirado na noite
fictícia da decoração. Junto dela, sobre uma cadeira, dormia a taça de ouro,
objeto querido, que mandara fazer, moldada sobre o seio de uma rival defunta.
Estava ausente para todos; mesmo para o
amante. Qualquer dos dois, que ela tinha dois, sempre e fielmente: por um
exercício duplo de fidelidade, que lhe parecia dobrada virtude.
Às quatro horas, Emílio acordava-a aos
beijos. Tinha dois amantes, disse, como tinha dois nomes. Amantes que não se
viam, que não se conheciam, que não se encontravam. Manejava habilmente os dois
corações, como bolas alternadas de um jogo malabar.
Prezava-os impessoalmente por predicados
opostos e incompatíveis, que buscaria em outros amores, se os atuais faltassem,
isolá-los reciprocamente era porém o meio de conservar a ilusão do prazer
completo de duas existências.
Queria um amante que fosse dela, e outro de
quem ela fosse.
Um devia ser delicado, adolescência
franzina, temperamento febril e fraco, que se lhe entregasse como a uma
tortura. Ela estenderia os braços como tentáculos de polvo e sugar-lhe-ia a
vida com os lábios, devorá-lo-ia deleitando-se de o ver extinguir-se dia a dia,
ele buscando-a sempre, ardente, trêmulo, sorrindo e sucumbindo. Queria também o
amor forte de um largo peito, o desejo de grande fôlego, a carícia
constringente da saúde, da força, que enlaça, que macera e afoga um amor
brutal, que a punisse da perversa delícia do outro.
Emílio era o forte.
- Ciúmes de um cadáver! dizia ela,
enigmaticamente, rindo, quando Emílio insinuava a queixa de uma suspeita.
Esta frase repetida, da excêntrica mulher,
distraía-o do ciúme, aduzindo um traço mais de extravagância à sedução macabra
daquela aliança.
Sonhou, então, que a viúva o traía com
efeito; que ressurgia para traí-lo com ela, o falecido esposo, a letra morta do
contrato conjugal. Ele a via nos braços do finado, dando-se-lhe toda com o
prazer novo de uma lascívia de horror cingida contra a carne malhada de roxo,
olhada amorosamente pela meiguice branca dos olhos extintos, sentindo o cheiro
úmido da terra nos cabelos, vendo a língua negra através dos dentes fixos,
ouvindo passar nos lábios um hálito empestado de sepultura, estremecendo de
gozo a criatura incrível que ele amava - abraçada pelo pesadelo!
Entretanto, o outro vinha, nas ocasiões
combinadas, pobre criança extenuada e exangue, sôfrego, ofegante, obedecendo à
fatalidade, trazendo o sacrifício dos seus dias, trazendo dos desesperos do
trabalho, da miséria, talvez dos recursos culpados, mimos de preço, pérolas,
rubis, rubis principalmente, prediletos dela porque são como cristais de
sangue...
Uma noite, que estavam juntos, Mme. Lamour
e Emílio, muito tarde, no salão negro, ouviram bater à porta lateral do jardim.
Os amantes cruzaram um olhar.
- Ciúmes? perguntou a viúva sorrindo.
Bateram de novo. Emílio quis abrir.
- Não abras! Deixa que batam!
Bateram ainda.
- Não abras!
Um abalo violento, como de uma ombrada,
sacudiu os ferrolhos e o ar da sala. Depois não bateram mais.
Fazia um frio agudo. Adivinhava-se, lá
fora, a chuvinha glacial, peneirada da noite. Os dois amantes esqueceram-se no
conchego das efusões, mais estreito e mais vivo naquele inverno, em meio do
pavor ornamental do aposento.
No dia seguinte, atravessado à porta, sobre
o mármore do limiar, achou-se o corpo inerte de um rapaz, muito moço, imberbe
ainda, belo, apesar da morte e da magreza extrema. Tinha sangue nos lábios e
pousava em sangue a face lívida.
Ao redor, as roseiras, as begônias, na
manhã clara, choravam as últimas gotas da chuva da véspera.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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