
14 DE JULHO NA ROÇA
(A.G. da S.)
14 de julho é a grande data. Ecoa na
história com as mesmas vibrações que deve proferir sobre o mundo a trombeta de
Josafá, em plena consumação dos séculos.
A Marselhesa é o gemido humano chamado às
armas.
A queda da Bastilha é o pavoroso
esboroamento do passado, batido pelo futuro.
A pirâmide da opressão tinha por base o
grande cárcere e por vértice a coroa do rei; o povo devasta a pirâmide de alto
a baixo; arrasa o alicerce, aniquila o píncaro.
Cai a Bastilha, morre Luís XVI.
Do cataclisma ergueu-se sangrenta a grande
mão do direito humano saciado, e abriu os dedos sobre aquele caos, como as
irradiações de uma estrela grandiosa e serena.
À luz deste sol, começou a desfilar a
procissão dos séculos...
Curvado um dia sobre essas páginas épicas
da lenda das gerações, inclinado à beira vertiginosa do báratro onde
revoluteiam os fantasmas indistintos e medonhos daquele terremoto social,
refletindo na humanidade e nos seus destinos, foi assim que o Dr. Salustiano da
Cunha descobriu que era republicano.
Muito republicano; republicano de coração.
De coração e de cérebro.
Um homem da época.
Na qualidade de Campineiro abastado e
farto, tinha por si a força do ouro: o elemento moderno do poderio. No século
XIX, mais do que nunca, o ouro é o metal dos cetros e das alavancas: só existe
para o mando e para a força...
Ia-lhe próspera a fazenda. As suas
vastíssimas terras sumiam-se, sob as ramas escuras dos cafezais, plantados em
linha, através de infinitas colinas.
As canas formavam-se por milheiros ao longo
das várzeas, imitando tudo respeitáveis fileiras de incógnita milícia. As
folhas do canavial refletiam o sol, como se fosse o aço de cem mil baionetas;
as plantações de milho sacudiam belicosamente os penachos roxos, como as
insígnias gloriosas de um imenso estado-maior
Tudo ali estava perfilado e firme, como se
faltasse apenas o grito de marcha, para os batalhões precipitarem-se...
O Dr. Salustiano, com as mãos nas cadeiras,
por baixo do pala de brim, contemplava, ufano, aquele exército fantástico que
tinha sob o seu comando absoluto e despótico.
O próprio céu parecia fugir para cima, com
o seu azul e com as suas estrelas, amedrontado por aquelas hostes, mais
arrogantes, sem dúvida, que as dos bárbaros do norte, que tinham lanças para
escorar o próprio firmamento.
Era um homem forte, portanto, o nosso
doutor.
Podia soltar gargalhadas às barbas da
prepotência corruptora do rei; podia rebelar-se, como Lúcifer, e rir do paraíso
perdido; podia gritar que viesse abaixo a tirania, e recusar um arqueamento da
espinha à majestade sagrada do direito divino.
Viva a República!
A santa causa encontrava nele um pulso
valente para o combate.
Cada golpe da sua durindana democrática e
demolátrica seria uma vitória para o grande partido dos direitos do homem canonizados!
O Dr. Salustiano era entusiasta. Estava
disposto a declarar guerra a tudo que não fosse democracia republicana. Só
curvaria a fronte ante a aristocracia do talento.
Para isso verdejavam-lhe os cafezais
pingues; para isso, o canavial afiava as folhas umas nas outras, como espadas,
e o milho cabeceava empenachado como um marechal.
Daí vinha-lhe a força.
Não havia pois motivo para espanto, quando,
por uma bela manhã, saindo o doutor a passeio, montado, como um príncipe, no
soberbo alazão, foi impressionado por um fenômeno estranho.
Lembrava-se que a aurora fora mais rubra
naquela madrugada; o sol nascera vitorioso no meio de uma explosão de sangue e
de fogo; as nuvens se lhe haviam figurado momentos desmoronando-se. Todo o
oriente parecera vibrar, abalado por uma tragédia titânica...
Agora, fato interessante, perscrutando os
cantares do bosque, parecia-lhe que, das folhas frementes, choviam as notas
aclarinadas da Marselhesa.
Ora o sabiá entoava heroicamente o solo do
Allons enfants...
ora o coro da passarinhada replicava em tom
de guerra:
Aux armes citoyens!...
Recomeçava o solo pungente do sabiá.
As árvores estremeciam.
As nuvens paravam para escutar.
Recomeçava o coro imponente. Parece que
então a natureza inteira abria a boca para cantar. As notas graves vinham do
horizonte, nascidas nas grotas ao longe, e vazadas sonoramente através de
gargantas de pedra.
Que solenidade naquele conjunto! O alazão
marchava como se cadenciasse o passo pela vasta orquestração da natureza.
O doutor extasiava-se.
Caminhava para diante, sorrindo e surpreso.
A grande música seguia-o como um préstito invisível de sons guerreiros e
formidáveis.
O Dr. Salustiano quase erguia-se sobre os
estribos, para descobrir-se e urrar:
- Viva a República!
O coração pulava-lhe! O homem sentia que
uma força, esquisita levantava-o acima da cavalgadura...
Vinte vezes quis soltar o brado; mas tinha
medo.
Podia não ser entendido pela natureza e
ficar sem resposta.
Quis entrar no coro. Já não se continha
mais.
No primeiro aux armes citoyens!... ele meteu-se, e fez coro com os
estranhos cantores daquela maravilhosa manhã.
Ainda estava pedindo, com voz atroadora, o sangue impuro dos tiranos, quando sentiu estacar
o alazão, forçando o cavaleiro a debruçar-se-lhe sobre as crinas.
Um grupo de pessoas aparecera na estrada.
Três escravos e um feitor mal encarado.
Tinham a cara espantada, e pareciam perguntar
se o matutino passeador endoidecera.
- O que temos? indagou bruscamente o
doutor, engolindo um resto de Marselhesa.
- Venho comunicar ao senhor, respondeu o
feitor, que o Emídio fugiu...
- Terceira vez!... o cão... Há de pagar!
Hum!... Desta vez eu o ensino, se o pego.
- Havemos de pegá-lo hoje mesmo, garantiu
resolutamente o feitor.
- Peguem-no... peguem-no, que havemos de
ver para que se inventou o viramundo...
E o alazão continuou a marchar pela estrada
adiante, deixando ficar o grupo que interrompera-lhe os passos.
Com o sacudir da andadura, acomodaram-se no
espírito do doutor as idéias momentaneamente desarranjadas pela brusca notícia
da fuga do Emídio. Tendo o espírito mais calmo, observou que a orquestração da
natureza, subitamente suspensa, recomeçava em surdina, e zunia-lhe ao ouvido
como se longínquas fanfarras eólicas começassem a ressoar.
Recomeçava a canção de Marselha. O doutor tornava a achar tudo
vermelho e belicoso. Volviam-lhe à imaginação os seus ardores republicanos.
Nessa ocasião um grito chamou-o à
distância:
- Cidadão!...
O doutor não voltou-se. Era incrível!
Reconhecia a voz de Danton...
- Cidadão! repetiam.
Não! Era talvez Desmoulins, Robespierre,
Marat... com os diabos!... Seria sonho?...
- Cidadão!
Segui-lo-ia porventura a coorte dos homens
fantásticos do Terror?...
- Cidadão Salustiano! Doutor!
Ah! o doutor logo vira... Era o compadre...
vizinho ali de algumas léguas, um companheiro fazendeiro, apatacado e gordo, e,
mais que tudo, republicano.
Vinha a cavalo, em busca de Salustiano.
Havia uma grande festa em casa dele. Um aniversário. Celebrava-se pomposamente
a queda da Bastilha, a hecatombe das tiranias. Em vez de reis e tiranos,
degolara-se para a solenidade uma infinidade de leitões e patos. Lucullo ia
festejar a trucidação da realeza!...
Um banquete digno de servir-se através das
páginas da Ilíada.
14 de julho!
Estava explicado o sonho harmonioso do Dr.
Salustiano: esplêndida miragem acústica, que pintara-lhe aos ouvidos todo o
panorama canoro de oitenta e nove!
Aquela manhã era a gloriosa manhã do grande
dia.
À noite, a fazenda do compadre estava em
festa.
Todos os republicanos de vinte léguas em
roda concorreram entusiasmados.
Chamou-se de Campinas uma filarmônia
particular, muito ensaiada em sonoridades rubras e gargalhadas de Offenbach.
Quando apareceu na estrada o Dr.
Salustiano, a banda de música saudou-o com um Roger de l'Isle mais real que o
da manhã e não menos ardente.
Os foguetes crepitavam no espaço, como a
fuzilaria dos assaltantes da Bastilha.
A massa estúpida dos escravos alinhava-se
em dois renques, ao longo da estrada, sustentando archotes na mão. Tinham a
expressão besta de quem nada compreende do que vê. A luz dos archotes
clareava-lhes os peitos hercúleos, onde, sobre o branco do algodão das camisas,
brilhava o desenho encarnado de pequenos barretes frígidos sobrepostos ao
número de cada um.
Salustiano pasmava diante daquele aparato.
Quando entrou no salão do festim, chegou
mesmo a sentir no íntimo uma picada de inveja. Porque não se lembrara primeiro
de levar a cabo aquela solenidade?... Ficaria para o ano...
Para o ano o 14 de julho seria dele.
O salão estava imponente. Uma extensa mesa,
coberta de iguarias custosas e abundantes, desenrolava-se luxuosamente, com a
carta geral da gastronomia. Por cima, cristais e flores, luzes e inações. Ao
fundo do salão, quase à cabeceira da mesa, uma grande figura da Liberdade, em
gesso, alçava, garbosa, uma lâmpada sobre o banquete.
Dir-se-ia o Anfitrião daquilo tudo.
Foram chegando os convidados, e
abancando-se. Só homens.
Em pouco, a mesa regurgitava. Ao doutor
coube um lugar aos pés da estátua.
O assalto aos manjares foi medonho. Os
trinchantes desapareciam no bojo dos assados, como se fossem punhaladas
raivosas. As garrafas estouravam, como fogo nutrido de atiradores destros.
Comia-se, como se ali só houvesse guisados
bofes de monarcas; bebia-se, como se houvesse engarrafado o sangue das
dinastias.
Pantagruel e Gargantua esgaçavam os lábios,
como sansculottes embriagados.
Os garfos eram chuços, as facas eram
espadas. A demagogia do ventre arremessava-se doidamente contra a imponência
régia dos acepipes.
Enquanto a comida abarrotava as bocas, ia a
música abarrotando os ouvidos.
Tudo em grosso, abundantemente,
desvairadamente.
Em certa ocasião começaram os brindes.
Brindou-se a este, que era um dos mais
puros advogados da causa republicana; a aquele, que defendera no parlamento
provincial os sagrados direitos do povo (povo era com P grande); a aquel'outro,
que constituía uma das mais legítimas esperanças do partido regenerador...
Houve uma pausa solene, no meio da qual uma
voz trêmula e vibrante levantou-se:
- Cidadãos!
Uma agitação moveu o auditório, e o
silêncio caiu cem graus abaixo de zero.
- Concidadãos!...
Falava um jovem ex-deputado, famoso pela
violência com que usava agredir os tronos.
... É hoje o dia em que o mundo comemora um
dos grandes acontecimentos da sua história...
(Alguns apoiados surdos.)
- ... Na grande era revolucionária, foi no
dia de hoje que o povo, compreendendo a grandeza da sua soberania, alçou
alteroso o colo das suas iras, e resolveu afogar em sangue a tirania infame da
torpe realeza!.
(Muito bem, muito bem!)
- ... Já era demais!... Por tantos séculos
havia a pata da injustiça calcado o livro dos direitos do homem... a exploração
dos fracos pelos potentados... o roubo iníquo do salário ao proletariado... a
realeza usufruindo desaforadamente o suor do povo e sugando sofregamente, para
a manutenção das suas orgias, o generoso sangue dos pobres, o sangue daqueles
mesmos que sustentavam-lhe as indústrias do seu estado, daqueles mesmos que
lavravam os campos da sua nação...
(Bravos! bravos!)
- ... Já era demais... Tudo preparou o
terrível desabamento social que se chama queda
da Bastilha!...
"A onda popular rodeou espumante,
etc., etc...
O eloquente tribuno orou por longo tempo, e
concluiu em tom religioso, no meio das aclamações dos circunstantes:
- ... Mas ainda não estão por terra todas
as Bastilhas; ainda existem muitas realezas, e cada realeza é uma Bastilha
temerosa...
"Abaixo pois as realezas!...
"Por terra as Bastilhas!...
"Plante-se a bandeira republicana por
todo o mundo!... Que o orbe terráqueo apareça aos olhos dos outros planetas com
a forma cintilante de um barrete frígio!...
(Bravôh! bravôh!...)
... Expulsemos, pois, da nossa pátria o
velho chaveco da monarquia, ainda que tenhamos de oferecer, para a sua
retirada, um rio do nosso sangue rubro!...
(Bravôôôh!)
E saudemos agora, neste brinde, como a
síntese dos nossos votos, das nossas aspirações, a próxima fundação da
república brasileira!...
E um brinde estrondoso como um furacão,
subiu daquela tempestade de aplausos e garrafas, para sujar de vinho a cara
impassível das instituições...
Naquele momento mesmo, quem se afastasse da
fazenda em festa, até meia distância da fazenda do Dr. Salustiano, ver-se-ia
apertado num contraste pavoroso.
Atrás da escuridão dantesca de uma noite
tempestuosa e feia, ouviam-se perfeitamente, de uma banda, rumores orgíacos,
inextinguíveis, como os risos de Homero; de outra banda, lastimosos gritos
cruciantes, que pareciam pedir socorro às feras da mata...
De um lado, 14 de julho; do outro, a
punição de Emídio, o negro
fugido...
Uma coruja passou... Se estivesse presente,
o Dr. Salustiano perceberia que a coruja ia cantando a Marselhesa.
Sentia-se realmente nas trevas do ar o
grande anjo da igualdade roçando com a ponta das asas brancas os dois extremos
do horizonte.
Depois, do discurso, a festa do compadre
continuou; o delírio do prazer recrudesceu.
As libações caíam em cascata sobre a toalha
da mesa. As imaginações catavam estrelas para o símiles dos brindes, a retórica
já não tinha mais tropos.
Quando ia falar o Dr. Salustiano, que, por
uma especial consideração, fora encarregado de pôr o fecho de ouro ao banquete
com o grande brinde à Liberdade, acercou-se dele um sujeito que entrara, havia
pouco, e por trás da cadeira disse-lhe ao ouvido:
- O Emídio bateu a bota... não resistiu ao
viramundo...
Era o feitor que conhecemos.
O doutor atirou-lhe enfadado as cinco
letras de Cambrone, e tomou uma garrafa do melhor champagne.
Todos os convidados tinham o olhar sobre ele, e
gritavam todos:
- O brinde à Liberdade! o brinde!
O doutor ergueu-se vagaroso, solene;
segurou corretamente o fuste de cristal de uma taça finíssima que enchera.
A estátua de gesso, acima dele, com a
cabeça inclinada e a lâmpada ao alto, fitava-o, parecendo esperar o brinde,
espantada...
- Cidadãos!... O futuro... pertence à idéia
republicana...
(Falava um profeta)
- ... Nós somos os sagrados preparadores do
futuro. A pátria de amanhã é a concretização da nossa idéia.
"A nossa missão não é a simples
propaganda de um partido: é o desempenho heróico de um sacerdócio.
"Às armas! A nossa existência de
cidadãos deve ter este programa: Às armas!...
"E neste momento, que nos reunimos
todos para solenizar o grande dia republicano, neste momento, mais do que
nunca, os nossos entusiasmos de pontífices da liberdade devem fundir-se em uma
saudação que seja mais um pacto de aliança para as nossas lutas!...
"Um brinde à liberdade!..."
O salão estourou, como se uma vasta
explosão de picrato o tivesse arremessado às nuvens; estourou ao brado de
duzentas goelas de bronze, aclamando a Liberdade...
Circunstância mínima:
O doutor, arroubado de entusiasmo, levara
tão alto o seu brinde, que partira o cristal nas faces da estátua.
O vinho caíra-lhe pelos seios abaixo,
prostituindo a casta brancura impoluta do gesso.
São Paulo, 21 de abril de 1883
---Fonte:
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
Raul Pompeia: Contos Completos. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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