O
NEGRINHO DO PASTOREIO
Naquele tempo os campos ainda eram abertos,
não havia entre eles nem divisas nem cercas; somente nas volteadas se apanhava
a gadaria xucra e os veados e as avestruzes corriam sem empecilhos...
Era uma vez um estancieiro, que tinha uma
ponta de surrões cheios de onças e meias-doblas e mais muita prataria; porém
era muito cauíla e muito mau, muito.
Não dava pousada a ninguém, não emprestava um
cavalo a um andante; no inverno o fogo da sua casa não fazia brasas; as geadas
e o minuano podiam entanguir gente, que a sua porta não se abria; no verão a
sombra dos seus umbus só abrigava os cachorros; e ninguém de fora bebia água
das suas cacimbas.
Mas também quando tinha serviço na estância,
ninguém vinha de vontade dar-lhe um ajutório; e a campeirada folheira não
gostava de conchavar-se com ele, porque o homem só dava para comer um churrasco
de tourito magro, farinha grossa e erva-caúna e nem um naco de fumo… e tudo,
debaixo de tanta somiticaria e choradeira, que parecia que era o seu próprio
couro que ele estava lonqueando...
Só para três viventes ele olhava nos olhos:
era para o filho, menino cargoso como uma mosca, para um baio cabos-negros, que
era o seu parelheiro de confiança, e para um escravo, pequeno ainda, muito
bonitinho e preto como carvão e a quem todos chamavam somente o — Negrinho.
A este não deram padrinhos nem nome; por isso
o Negrinho se dizia afilhado da Virgem, Senhora Nossa, que é a madrinha de quem
não a tem.
Todas as madrugadas o Negrinho galopeava o
parelheiro baio; depois conduzia os avios do chimarrão e à tarde sofria os maus
tratos do menino, que o judiava e se ria.
***
Um dia
depois de muitas negaças, o estancieiro atou carreira com um seu vizinho. Este
queria que a parada fosse para os pobres; o outro que não, que não!
que a parada devia ser do dono do cavalo que
ganhasse. E trataram: o tiro era trinta quadras, a parada, mil onças de ouro.
No dia aprazado, na cancha da carreira havia
gente como em festa de santo grande.
Entre os dois parelheiros, a gauchada não
sabia se decidir, tão perfeito era e bem lançado cada um dos animais. Do baio
era fama que quando corria, corria tanto, que o vento assobiava-lhe nas crinas;
tanto, que só se ouvia o barulho, mas não lhe viam as patas baterem no chão...
E do mouro era voz que quanto mais cancha, mais aguente e que desde a largada
ele ia ser como um laço que se arrebenta...
As parcerias abriram as guaiacas, e aí no
mais já se apostavam aperos contra rebanhos e redomões contra lenços.
—Pelo baio! Luz e doble!…
—Pelo mouro! Doble e luz!...
Os corredores fizeram as suas partidas à
vontade e depois as obrigadas; e quando foi na última, fizeram ambos a sua
senha e se convidaram. E amagando o corpo, de rebenque no ar, largaram, os
parelheiros meneando cascos, que parecia uma tormenta...
— Empate! Empate! — gritavam os aficionados
ao longo da cancha por onde passava a parelha veloz, compassada como numa
colhera.
— Valha-me a Virgem madrinha, Nossa Senhora!
— gemia o Negrinho. — Se o sete-léguas perde, o meu senhor me mata! hip! hip!
hip!...
E baixava o rebenque, cobrindo a marca do
baio.
— Se o corta-vento ganhar é só para os
pobres!... retrucava o outro corredor.
Hip! hip!
E cerrava as esporas no mouro.
Mas os fletes corriam, compassados como numa
colhera, Quando foi na última quadra, o mouro vinha arrematado e o baio vinha
aos tirões… mas sempre juntos, sempre emparelhados.
E a duas braças da raia, quase em cima do
laço, o baio assentou de supetão, pôs-se em pé e fez uma caravolta, de modo que
deu ao mouro tempo mais que preciso para passar, ganhando de luz aberta! E o
Negrinho, de em pêlo, agarrou-se como um ginetaço.
— Foi mau jogo! — gritava o estancieiro.
— Mau jogo! — secundavam os outros da sua
parceria.
A gauchada estava dividida no julgamento da
carreira; mais de um torena coçou o punho da adaga, mais de um desapresilhou a
pistola, mais de um virou as esporas para o peito do pé... Mas o juiz, que era
um velho do tempo da guerra de Sepé-Tíaraju, era um juiz macanudo, que já tinha
visto muito mundo. Abanando a cabeça branca sentenciou, para todos ouvirem:
— Foi na lei! A carreira é de parada morta;
perdeu o cavalo baio, ganhou o cavalo mouro, Quem perdeu, que pague. Eu perdi
cem gateadas; quem as ganhou venha buscá-las. Foi na lei!
Não havia o que alegar. Despeitado e furioso,
o estancieiro pagou a parada, à vista de todos, atirando as mil onças de ouro
sobre o poncho do seu contrário, estendido no chão.
E foi um alegrão por aqueles pagos, porque
logo o ganhador mandou distribuir tambeiros e leiteiras, côvados de baeta e
haguais e deu o resto, de mota, ao pobrerio. Depois as carreiras seguiram com
os changueiritos que havia.
***
O
estancieiro retirou-se para a sua casa e veio pensando, pensando calado, em
todo o caminho. A cara dele vinha lisa, mas o coração vinha corcoveando como
touro de banhado laçado a meia espalda… O trompaço das mil onças tinha-lhe
arrebentado a alma.
E conforme apeou-se, da mesma vereda mandou
amarrar o Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de
relho.
Na madrugada saiu com ele e quando chegou no
alto da coxilha falou assim:
— Trinta quadras tinha a cancha da carreira
que tu perdeste: trinta dias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha de
trinta tordilhos negros... O baio fica de piquete na soga e tu ficarás de estaca!
O Negrinho começou a chorar, enquanto os
cavalos iam pastando.
Veio o sol, veio o vento, veio a chuva, veio
a noite. O Negrinho, varado de fome e já sem força nas mãos, enleou a soga num
pulso e deitou-se encostado a um cupim.
Vieram então as corujas e fizeram roda,
voando, paradas no ar, e todas olhavam-no com os olhos reluzentes, amarelos na
escuridão. E uma piou e todas piaram, como rindo-se dele, paradas no ar, sem
barulho nas asas.
O Negrinho tremia, de medo... porém de
repente pensou na sua madrinha Nossa Senhora e sossegou e dormiu.
E dormiu. Era já tarde da noite, iam passando
as estrelas; o Cruzeiro apareceu, subiu e passou; passaram as Três-Marias: a
estrela-d’alva subiu... Então vieram os guaraxains ladrões e farejaram o
Negrinho e cortaram a guasca da soga.
O baio sentindo-se solto rufou a galope, e
toda a tropilha com ele, escaramuçando no escuro e desguaritando-se nas
canhadas.
O tropel acordou o Negrinho; os guaraxains
fugiram, dando berros de escárnio,
Os galos estavam cantando, mas nem o céu nem
as barras do dia se enxergava: era a cerração que tapava tudo.
E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E
chorou.
***
O menino maleva foi lá e veio dizer ao pai
que os cavalos não estavam. O
estancieiro mandou outra vez amarrar o
Negrinho pelos pulsos a um palanque e dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho.
E quando era já noite fechada ordenou-lhe que
fosse campear o perdido.
Rengueando, chorando e gemendo, o Negrinho
pensou na sua madrinha Nossa Senhora e foi ao oratório da casa, tomou o coto de
vela acesa em frente da imagem e saiu para o campo.
Por coxilhas e canhadas, na beira dos
lagoões, nos paradeiros e nas restingas, por onde o Negrinho ia passando, a
vela benta ia pingando cera no chão; e de cada pingo nascia uma nova luz, e já
eram tantas que clareavam tudo. O gado ficou deitado, os touros não escarvaram
a terra e as manadas xucras não dispararam... Quando os galos estavam cantando,
como na véspera, os cavalos relincharam todos juntos. O Negrinho montou no baio
e tocou por diante a tropilha, até a coxilha que o seu senhor lhe marcara.
E assim o Negrinho achou o pastoreio. E se
riu...
Gemendo, gemendo, o Negrinho deitou-se
encostado ao cupim e no mesmo instante apagaram-se as luzes todas; e sonhando
com a Virgem, sua madrinha, o Negrinho dormiu. E não apareceram nem as corujas
agoureiras nem os guaraxains ladrões; porém pior do que os bichos maus, ao
clarear o dia veio o menino, filho do estancieiro e enxotou os cavalos, que se
dispersaram, disparando campo fora, retouçando e desguaritando-se nas canhadas.
O tropel acordou o Negrinho e o menino maleva
foi dizer ao seu pai que os cavalos não estavam lá...
E assim o Negrinho perdeu o pastoreio. E
chorou...
***
O
estancieiro mandou outra vez amarrar o Negrinho pelos pulsos, a um palanque e
dar-lhe, dar-lhe uma surra de relho... dar-lhe até ele não mais chorar nem
bulir, com as carnes recortadas, o sangue vivo escorrendo do corpo… O Negrinho
chamou pela Virgem sua madrinha e Senhora Nossa, deu uni suspiro triste, que
chorou no ar como uma música, e pareceu que morreu...
E como já era noite e para não gastar a
enxada em fazer uma cova, o estancieiro mandou atirar o corpo do Negrinho na
panela de um formigueiro, que era para as formigas devorarem-lhe a carne e o
sangue e os ossos... E assanhou bem as formigas, e quando elas, raivosas,
cobriam todo o corpo do Negrinho e começaram a trincá-la é que então ele se foi
embora, sem olhar para trás.
Nessa noite o estancieiro sonhou que ele era
ele mesmo, mil vezes e que tinha mil filhos e mil negrinhos, mil cavalos baios
e mil vezes mil onças de ouro… e que tudo isto cabia folgado dentro de um
formigueiro pequeno...
Caiu a serenada silenciosa e molhou os
pastos, as asas dos pássaros e a casca das frutas.
Passou a noite de Deus e veio a manhã e o sol
encoberto. E três dias houve cerração forte, e três noites o estancieiro teve o
mesmo sonho.
***
A
peonada bateu o campo, porém ninguém achou a tropilha e nem rastro.
Então o senhor foi ao formigueiro, para ver o
que restava do corpo do escravo.
Qual não foi o seu grande espanto, quando
chegado perto, viu na boca do formigueiro o Negrinho de pé, com a pele lisa,
perfeita, sacudindo de si as formigas que o cobriam ainda!... O Negrinho, de
pé, e ali ao lado, o cavalo baio e ali junto a tropilha dos trinta tordilhos...
e fazendo-lhe frente, de guarda ao mesquinho, o estancieiro viu a madrinha dos
que não a têm, viu a Virgem, Nossa Senhora, tão serena, pousada na terra, mas
mostrando que estava no céu... Quando tal viu, o senhor caiu de joelhos diante
do escravo.
E o Negrinho, sarado e risonho, pulando de em
pêlo e sem rédeas; no baio, chupou o beiço e tocou a tropilha a galope.
E assim o Negrinho pela última vez achou o
pastoreio. E não. chorou, e nem se riu.
***
Correu
no vizindário a nova do fadário e da triste morte do Negrinho, devorado na
panela do formigueiro.
Porém logo, de. perto e de longe, de todos os
rumos do vento, começaram a vir notícias de um caso que parecia um milagre novo...
E era, que os posteiros e os andantes, os que
dormiam sob as palhas dos ranchos e os que dormiam na cama das macegas, os
chasques que cortavam por atalhos e os tropeiros que vinham pelas estradas,
mascates e carreteiros, todos davam notícia — da mesma hora — de ter visto
passar, como levada em pastoreio, uma tropilha de tordilhos, tocada por um
Negrinho, gineteando de em pêlo, em um cavalo baio!…
Então, muitos acenderam velas e rezaram o
Pai-nosso pela alma do judiado.
Daí por diante, quando qualquer cristão
perdia uma cousa, o que fosse, pela noite velha o Negrinho campeava e achava,
mas só entregava a quem acendesse uma vela, cuja luz ele levava para pagar a do
altar da sua madrinha, a Virgem, Nossa Senhora, que o remiu e salvou e deu-lhe
uma tropilha, que ele conduz e pastoreia, sem ninguém ver.
***
Todos
os anos, durante três dias, o Negrinho, desaparece: está metido em algum
formigueiro grande, fazendo visita às formigas, suas amigas; a sua tropilha
esparrama-se, e um aqui, outro por. lá, os seus cavalos retouçam nas manadas
das estâncias. Mas ao nascer do sol do terceiro dia, o baio relincha. perto do
seu ginete; o Negrinho monta-o e vai fazer a sua recolhida; é quando nas
estâncias acontece a disparada das cavalhadas e a gente olha, olha, e não vê
ninguém, nem na ponta, nem na culatra.
***
Desde
então e ainda hoje, conduzindo o seu pastoreio, o Negrinho, sarado e risonho,
cruza os campos, corta os macegais, bandeia as restingas, desponta os banhados,
vara os arroios, sobe as coxilhas e desce às canhadas.
O Negrinho anda sempre à procura dos objetos
perdidos, pondo-os de jeito a serem achados pelos seus donos, quando estes
acendem um coto de vela, cuja luz ele leva para o altar da Virgem Senhora
Nossa, madrinha dos que não a têm.
Quem perder suas prendas no campo, guarde
esperança: junto de algum moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela
para o Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo — Foi por aí que eu perdi... Foi
por aí que eu perdi... Foi por ai que eu perdi!...
Se ele não achar… ninguém mais.
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Fonte:
João Simões Lopes Neto: Lendas do Sul. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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