A
SALAMANCA DO JARAU
CAPÍTULO 1
ERA UM DIA...
um dia, um gaúcho pobre, Blau, de nome,
guasca de bom porte, mas que só tinha de seu um cavalo gordo, o facão afiado e
as estradas reais, estava conchavado de posteiro, ali na entrada do rincão; e
nesse dia andava campeando um boi barroso.
E no tranquilo andava, olhando; olhando para
o fundo das sangas, para o alto das coxilhas, ao comprido das canhadas; talvez
deitado estivesse entre as carquejas
— a carqueja é sinal de campo bom —, por isso
o campeiro às vezes alçava-se nos estribos e, de mão em pala sobre os olhos, firmava
mais a vista em torno; mas o boi barroso, crioulo daquela querência, não
aparecia; e Blau ia campeando, campeando…
Campeando e cantando:
Meu bonito boi barroso.
Que eu já contava perdido,
Deixando o rastro na areia
Foi logo reconhecido.
Montei no cavalo escuro
E trabalhei logo de espora;
E gritei - aperta, gente.
Que o meu boi se vai embora!
No cruzar uma picada,
Meu cavalo relinchou.
Dei de rédea para a esquerda,
E o meu boi me atropelou!
Nos tentos levava um laço
De vinte e cinco rodilhas,
Pra laçar o boi barroso
Lá no alto das coxilhas!
Mas no mato carrasqueiro
Onde o boi ‘stava embreado,
Não quis usar o meu laço,
Pra não vê-lo retalhado.
E mandei fazer um laço
Da casca do jacaré,
Pra laçar meu boi barroso
Num redomão pangaré.
E mandei fazer um laço
Do couro da jacutinga,
Pra laçar meu boi barroso
Lá no passo da restinga.
E mandei fazer um laço
Do couro da capivara
Pra laçar meu boi barroso
Nem que fosse a meia-cara;
Este era um laço de sorte,
Pois quebrou do boi a balda...
..............................................
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Que eu já contava perdido,
Deixando o rastro na areia
Foi logo reconhecido.
Montei no cavalo escuro
E trabalhei logo de espora;
E gritei - aperta, gente.
Que o meu boi se vai embora!
No cruzar uma picada,
Meu cavalo relinchou.
Dei de rédea para a esquerda,
E o meu boi me atropelou!
Nos tentos levava um laço
De vinte e cinco rodilhas,
Pra laçar o boi barroso
Lá no alto das coxilhas!
Mas no mato carrasqueiro
Onde o boi ‘stava embreado,
Não quis usar o meu laço,
Pra não vê-lo retalhado.
E mandei fazer um laço
Da casca do jacaré,
Pra laçar meu boi barroso
Num redomão pangaré.
E mandei fazer um laço
Do couro da jacutinga,
Pra laçar meu boi barroso
Lá no passo da restinga.
E mandei fazer um laço
Do couro da capivara
Pra laçar meu boi barroso
Nem que fosse a meia-cara;
Este era um laço de sorte,
Pois quebrou do boi a balda...
..............................................
..............................................
No tranquilo ia, cantando, e pensando na sua
pobreza, no atraso das suas cousas.
No atraso das suas cousas, desde o dia em que
topou — cara a cara! — com o Caipora num campestre da serra grande, pra lá,
muito longe, no Botucaraí...
A lua ia recém-saindo...; e foi à boquinha da
noite...
Hora de agouro, pois então!...
Gaúcho valente que era dantes, ainda era
valente, agora; mas, quando cruzava o facão com qualquer paisano, o ferro da
sua mão ia mermando e o do contrário o lanhava...
Domador destorcido e parador, que por só
pavulagem gostava de paletear, ainda era domador, agora; mas, quando gineteava
mais folheiro, às vezes, num repente, era volteado...
De mão feliz para plantar, que lhe não
chocava semente nem muda de raiz se perdia, ainda era plantador, agora; mas,
quando a semeadura ia apontando da terra, dava a praga em toda, tanta, que
benzedura não vencia...; e o arvoredo do seu plantio crescia entecado e mal
floria, e quando dava fruta, era mixe e era azeda...
E assim, por esse teor, as cousas corriam-lhe
mal; e pensando nelas o gaúcho pobre, Blau, de nome, ia, ao tranquilo,
campeando, sem topar coo boi barroso.
De repente, na volta duma reboleira, bem na
beirada dum boqueirão sofrenou o tostado...; ali em frente, quieto e manso,
estava um vulto, de face tristonha e mui branca.
Aquele vulto de face branca... aquela face
tristonha!...
Já ouvira falar dele, sim, não uma nem duas,
mas muitas vezes...; e de homens que o procuravam, de todas as pintas, vindos
de longe, num propósito, para endrôminas de encantamentos…,conversas que se
falavam baixinho, como num medo; pro caso, os que podiam contar não contavam
porque uns, desandavam apatetados e vagavam por aí, sem dizer cousa com cousa,
e outros calavam-se muito bem calados, talvez por juramento dado...
Aquele vulto era o santão da salamanca do
cerro.
Blau Nunes sofrenou o cavalo.
Correu-lhe um arrepio no corpo, mas era tarde
para recuar: um homem é para outro homem!...
E como era ele quem chegava, ele é que tinha
de louvar; saudou:
— Laus’Sus-Cris’!…
— Para sempre, amém! disse o outro, e logo
ajuntou: O boi barroso vai trepando cerro acima, vai trepando... Ele anda
cumprindo o seu fadário...
Blau Nunes pasmou do adivinho; mas repostou:
— Vou no rastro!...
— Está enredado...
— Sou tapejara, sei tudo, palmo a palmo, até
à boca preta da furna do cerro…
— Tu... tu, paisano, sabes a entrada da
salamanca?...
— É lá?... Então, sei, sei! A salamanca do cerro
do Jarau!... Desde a minha avó charrua, que ouvi falar!...
— O que contava a tua avó?
— A mãe da minha mãe dizia assim:
CAPÍTULO 2
— Na terra dos espanhóis, do outro lado do
mar, havia uma cidade chamada
— Salamanca — onde viveram os mouros, os
mouros que eram mestres nas artes de magia; e era numa furna escura que eles
guardavam o condão mágico, por causa da luz branca do sol, que diz que
desmancha a força da bruxaria...
O condão estava no regaço duma fada velha,
que era uma princesa moça, encantada, e bonita, bonita como só ela!...
Num mês de quaresma os mouros escarneceram
muito do jejum dos batizados, e logo perderam uma batalha muito pelejada; e
vencidos foram obrigados a ajoelharem-se ao pé da Cruz Bendita… e a baterem nos
peitos, pedindo perdão...
Então, depois, alguns, fingidos de cristãos,
passaram o mar e vieram dar nestas terras sossegadas, procurando riquezas,
ouro, prata, pedras finas, gomas cheirosas… riquezas para levantar de novo o
seu poder e alçar de novo a Meia-Lua sobre a Estrela de Belém...
E para segurança das suas tranças trouxeram
escondida a fada velha, que era a sua formosa princesa moça...
E devia ter mesmo muita força o condão,
porque nem os navios se afundaram, nem os frades de bordo desconfiaram, nem os
próprios santos que vinham, não sentiram…
Nem admira, porque o condão das mouras
encantadas sempre aplastou a alma dos frades e não se importa com os santos do
altar, porque esses são só imagens...
Assim bateram nas praias da gente pampiana os
tais mouros e mais outros espanhóis renegados. E como eles eram, todos, de alma
condenada, mal puseram pé em terra, logo na meia-noite da primeira sexta-feira
foram visitados pelo mesmo Diabo deles, que neste lado do mundo era chamado de
Anhangá-pitã e mui respeitado. Então, mouros e renegados disseram ao que
vinham; e Anhangá-pitã folgou muito; folgou, porque a gente nativa daquelas
campanhas e a destas serras era gente sem cobiça de riquezas, que só comia a
caça, o peixe, a fruta e as raízes que Tupã despejava sem conta, para todos,
das suas mãos sempre abertas e fazedoras…
Por isso Anhangá-pitã folgou, porque assim
minava para o peito dos inocentes as maldades encobertas que aqueles chegados
traziam...; e pois, escutando o que eles ambicionavam para vencer a Cruz com a
força do Crescente, o maldoso pegou do condão mágico — que navegara em navio
bento e entre frades rezadores e santos milagrosos —, esfregou-o no suor do seu
corpo e virou-o em pedra transparente; e lançando o bafo queimaste do seu peito
sobre a fada moura, demudou-a em teiniaguá, sem cabeça. E por cabeça encravou
então no novo corpo da encantada a pedra, aquela, que era o condão, aquele.
E como já era sobre a madrugada, no
crescimento da primeira luz do dia, do sol vermelho que ia querendo romper dos
confins por sobre o mar, por isso a cabeça de pedra transparente ficou vermelha
como brasa e tão brilhante que olhos de gente vivente não podiam parar nela,
ficando encandeados, quase cegos!...
E desfez-se a companha até o dia da peleja da
nova batalha. E chamaram —
salamanca — à furna desse encontro; e o nome
ficou pras furnas todas, em lembrança da cidade dos mestres mágicos.
Levantou-se um ventarrão de tormenta e
Anhangá-pitã, trazendo num bocó a teiniaguá, montou nele, de salto, e veio
correndo sobre a correnteza do Uruguai, por léguas e léguas, até as suas
nascentes, entre serranias macotas.
Depois, desceu, sempre com ela; em sete
noites de sexta-feira ensinou-lhe a vaqueanagem de todas as furnas recamadas de
tesouros escondidos... escondidos pelos cauílas, perdidos para os medrosos e
achados de valentes... E a mais desses, muitos outros tesouros que a terra
esconde e que só os olhos dos zaoris podem vispar...
Então Anhangá-pitã, cansado, pegou num
cochilo pesado, esperando o cardume das desgraças novas, que deviam pegar pra
sempre...
Só não tomou tenência que a teiniaguá era
mulher...
Aqui está tudo o que eu sei, que a minha avó
charrua contava à minha mãe, e que ela já ouviu, como cousa velha, contar por
outros, que, esses viram!…
E Blau Nunes bateu o chapéu para o alto da
cabeça, deu um safanão no cinto, aprumando o facão...; foi parando o gesto e
ficou-se olhando, sem mira, para muito longe, para onde a vista não chegava,
mas onde o sonho acordado que havia nos seus olhos chegava de sobra e ainda
passava… ainda passava, porque o sonho não tem lindeiros nem tapumes...
Falou então o vulto de face branca e
tristonha; falou em voz macia. E disse assim:
CAPÍTULO 3
É certo:
Não tomou tenência que a teiniaguá era mulher...
Ouve, paisano.
No costado da cidade onde eu vivia havia uma
lagoa, larga e funda, com uma ilha de palmital, no meio. Havia uma lagoa...
A minha cabeça foi banhada na água benta da
pia, mas nela entraram soberbos pensamentos maus… O meu peito foi ungido com os
santos óleos, mas nele entrou a doçura que tanto amarga, do pecado...
A minha boca provou do sal piedoso... e nela
entrou a frescura que requeima, dos beijos da tentadora...
Mas assim era o fado…, tempo e homem virão
para me libertar, quebrando o encantamento que me amarra, duzentos anos hão de
findar; eu esperei no entanto vivendo na minha tristeza seca, tristeza de
arrependido que não chora.
Tudo o que volteia no ar tem seu dia de
aquietar-se no chão...
Era eu que cuidava dos altares e ajudava a
missa dos santos padres da igreja de S. Tomé, do lado ao poente do grande rio
Uruguai. Sabia bem acender os círios, feitos com a cera virgem das abelheiras
da serra; e bem balançar o turíbulo, fazendo ondear a fumaça cheirosa do rito;
e bem tocar a santos, na quina do altar, dois degraus abaixo, à direita do
padre; e dizia as palavras do missal; e nos dias de festa sabia repicar o sino;
e bater as horas, e dobrar a finados... Eu era o sacristão.
Um dia na hora do mormaço, todo o povo estava
nas sombras, sesteando; nem voz grossa de homem, nem cantoria das moças, nem
choro de crianças: tudo sesteava. O sol faiscava nos pedregulhos lustrosos, e a
luz parecia que tremia, peneirada, no ar parado, sem uma viração.
Foi nessa hora que eu saí da igreja, pela
portinha da sacristia, levando no corpo a frescura da sombra benta, levando na
roupa o cheiro da fumaça piedosa. E saí sem pensar em nada, nem de bem nem de
mal; fui andando, como levado...
Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu.
A água da lagoa borbulhava toda, numa
fervura, ronquejando tal e qual como uma marmita no borralho. Por certo que lá
em baixo, dentro da terra, é que estaria o braseiro que levantava aquela
fervura que cozinhava os juncos e as traíras e pelava as pernas dos socós e
espantava todos os mais bichos barulhentos daquelas águas...
Eu vi, vi o milagre de ferver toda uma lagoa...,
ferver, sem fogo que se visse!
A mão direita, pelo costume, andou para fazer
o “Pelo-Sinal”… e parou, pesada como chumbo; quis rezar um “Credo”, e a
lembrança dele recuou; e voltar, correr e mostrar o Santíssimo… e tanger o sino
em dobre... e chamar o padre superior, tudo para esconjurar aquela obra do
inferno… e nada fiz... nada fiz, sem força na vontade, nada fiz... nada fiz,
sem governo no corpo!...
E fui andando, como levado, para de mais
perto ver, e não perder de ver o espantoso...
Porém logo outra força acalmou tudo; apenas a
água fumegante continuou retorcendo os lodos remexidos, onde boiava toda uma
mortandade dos viventes que morrem sem gritar...
Era no fim de um lançante comprido, estrada
batida e limpa, de todos os dias as mulheres irem para a lavagem; e quando eu
estava na beira da água, vendo o que estava vendo, então rompeu dela um clarão,
maior que o da luz a pino do dia, clarão vermelho, como dum sol morrente, e que
luzia desde o fundão da lagoa e varava a água barrenta…
E veio crescendo para a barranca, e saiu e
tomou terra, e sem medo e sem ameaça veio andando para mim a sempre escapada
maravilha..., maravilha que os que nunca viram juravam ser — verdade — e que
eu, que estava vendo, ainda jurava ser — mentira!
Era a teiniaguá, de cabeça de pedra luzente,
por sem dúvida; dela já tinha ouvido ao padre superior a história contada dum
encontrado que quase chegou de teimar em agarrá-la.
Entrecerrei os olhos, coando a vista,
cautelando o perigo; mas a teiniaguá veio-se me chegando, deixando no chão duro
um rastro d’água que escorria e logo secava, do seu corpinho verde de lagartixa
engraçada e buliçosa...
Lembrei-me — como quem olha dentro duma
cerração —, lembrei-me do que corria na voz da gente sobre o entanguimento que
traspassa o nosso corpo na hora do encantamento: é como o azeite fino num couro
ressequido...
Mas não perdi de todo a retentiva: pois que
da água saía, é que na água viveria. Ali perto, entre os capins, vi uma guampa
e foi o quanto agarrei dela e enchia na lagoa, ainda escaldando, e frenteei a
teiniaguá que, da vereda que levava, entreparou-se, tremente, firmando nas
patinhas da frente, a cabeça cristalina, como curiosa, faiscando...
De olhos apertados, piscando, para me não
atordoar dum golpe de cegueira, assentei no chão a guampa e preparando o bote,
num repente, entre susto e coragem, segurei a teiniaguá e meti-a para dentro
dela!
Neste passo senti o coração como que
martelar-me no peito e a cabeça sonando como um sino de catedral...
Corri para o meu quarto, na Casa-Grande dos
santos padres. Entrei pelo cemitério, por detrás da igreja, e desatinado,
derrubei cruzes, pisoteei ramos, calquei sepulturas!…
Todo o povo sesteava; por isso ninguém viu.
Fechei a guampa dentro da canastra e fiquei
estatelado, pensando.
Pelo falar do padre superior eu bem sabia que
quem prendesse a teiniaguá ficava sendo o homem mais rico do mundo; mais rico
que o Papa de Roma, e o imperador Carlos Magno e o rei da Trebizonda e os
Cavaleiros da Távola...
Nos livros que eu lia, estes todos eram os
mais ricos que se conhecia.
E eu, agora!...
E não pensei mais dentro da minha cabeça,
não; era uma cousa nova e esquisita: eu via, com os olhos, os pensamentos
diante deles, como se fossem cousas que se pudesse tentear com as mãos...
E foram se escancarando portas de castelos e
palácios, onde eu entrava e saía, subia e descia escadarias largas, chegava às
janelas, arredava reposteiros, deitava-me em camas grandes, de pés torneados,
esbarrava-me em trastes que nunca tinha visto e servia-me em baixelas
estranhas, que eu não sabia para o que prestavam...
E foram-se estendendo e alargando campos sem
fim, perdendo o verde no azul das distâncias, e ainda lindando com outras
estâncias que também eram minhas e todas cheias de gadaria, rebanhos e manadas...
.E logo cancheava erva nos meus ervais,
cerrados e altos como mato virgem...
E atulhava de planta colhida — milho, feijão,
mandioca — os meus paióis.
E detrás das minhas camas, em todos os
quartos dos meus palácios amontoava surrões de ouro em pó e pilhotes de barras
de prata; dependuradas na galhação de cem cabeças de cervos, tinha bolsas de
couro e de veludo, atochadas de diamantes, brancos como gotas d’água filtrada
em pedra, que os meus escravos — saídos mil, chegados dez —, tinham ido catar
nas profundas do sertão, muito para lá duma cachoeira grande, em meia-lua,
chamada de Iguaçu, muito pra lá doutra cachoeira grande, de sete saltos,
chamada de Iguaíra...
Tudo isto eu media e pesava e contava, até
cair de cansaço; e mal que respirava um descanso, de novamente, de novamente
pegava a contar, a pesar, a medir...
Tudo isto eu podia ter — e tinha de meu,
tinha! —, porque era o dono da teiniaguá, que estava presa dentro da guampa,
fechada na canastra forrada de couro cru, tauxiada de cobre, dobradiças de
bronze!...
Aqui ouvi o sino da torre badalando para a
oração da meia-tarde...
Pela primeira vez não fui eu que toquei;
seria um dos padres, na minha falta.
Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu.
Voltei a mim. Lembrei-me de que o animalzinho
precisava alimento, Tranquei portas e janelas e sai para buscar um porongo de
mel de lixiguana, por ser o mais fino.
E fui; melei; e voltei.
Abri sutil a porta e tornei a fechá-la
ficando no escuro.
E quando descerrei a janela e andei para a
canastra a tirar a guampa e libertar a teiniaguá para comer o mel, quando ia
fazer isso, os pés se me enraizaram, os sentidos do rosto se arriscaram e o coração
mermou no compassar o sangue!...
Bonita, linda, bela, na minha frente estava
uma moça!…
Que disse:
CAPÍTULO
4
— Eu sou a princesa moura encantada, trazida
de outras terras por sobre um mar que os meus nunca sulcaram... Vim, e
Anhangá-pitã transformou-me em teiniaguá de cabeça luminosa, que outros chamam
o — carbúnculo — e temem e desejam, porque eu sou a rosa dos tesouros
escondidos dentro da casca do mundo...
Muitos têm me procurado com o peito somente
cheio de torpeza, e eu lhes hei escapado das mãos ambicioneiras e dos olhos
cobiçosos, relampejando desdenhosa o lume vermelho da minha cabeça transparente...
Tu, não; tu não me procuraste ganoso... e eu
subi ao teu encontro; e me bem trataste pondo água na guampa e trazendo mel
fino para o meu sustento.
Se quiseres, tu, todas as riquezas que eu
sei, entrarei de novo na guampa e irás andando e me levarás onde eu te
encaminhar, e serás senhor do muito, do mais, do tudo!...
A teiniaguá que sabe dos tesouros sou eu, mas
sou também princesa moura...
Sou jovem... sou formosa…, o meu corpo é rijo
e não tocado!…
E estava escrito que tu serias o meu par.
Serás o meu par... se a cruz do teu rosário
me não esconjurar... Senão, serás ligado ao meu flanco, para, quando quebrado o
encantamento, do sangue de nós ambos nascer uma nova gente, guapa e sábia, que
nunca mais será vencida, porque terá todas as riquezas que eu sei e as que tu
lhe carrearás por via dessas!…
Se a cruz do teu rosário não me esconjurar...
Sobre a cabeça da moura amarelejava nesse
instante o crescente dos infiéis…
E foi se adelgaçando no silêncio a cadência
embalante da fala induzidora...
A cruz do meu rosário...
Fui passando as contas, apressado e atrevido,
começando na primeira… e quando tenteei a última... e que entre as duas os meus
dedos, formigando, deram com a Cruz do Salvador... fui levantando o Crucificado...
bem em frente da bruxa, em salvatério... na altura do seu coração… na altura da
sua garganta... da sua boca... na altura dos...
—E aí parou, porque os olhos de amor, tão
soberanos e cativos, em mil vidas de homem outros se não viram!...
Parou… e a minha alma de cristão foi saindo
de mim, como o sumo se aparta do bagaço, como o aroma sai da flor que vai
apodrecendo...
Cada noite era meu ninho o regaço da moura;
mas, quando batia a alva, ela desaparecia ante a minha face cavada de olheiras...
E crivado de pecados mortais, no adjutório da
missa trocava os amém, e todo me estortegava e doía quando o padre lançava a
bênção sobre a gente ajoelhada, que rezava para alívio dos seus pobres pecados,
que nem pecados eram, comparados com os meus...
Uma noite ela quis misturar o mel do seu
sustento com o vinho do santo sacrifício; e eu fui, busquei no altar o copo de
ouro consagrado, todo lavorado de palmas e resplendores; e trouxe-o,
transbordante, transbordando...
De boca para boca, por lábios incendiados o
passamos... E embebedados caímos abraçados.
Sol nado, despertei: estava cercado pelos
santos padres.
Eu descomposto; no chão o copo, entornado;
sobre o oratório, desdobrada, uma charpa de seda, lavrada de bordaduras
exóticas, onde sobressaía uma meia-lua prendendo entre as aspas uma estrela...
E acharam na canastra a guampa e no porongo o mel… e até no ar farejaram cheiro
mulherengo... Nem tanto era preciso para ser logo jungido em manilhas de ferro.
Afrontei o arrocho da tortura, entre ossos e
carnes amachucadas e unhas e cabelos repuxados. Dentro das paredes do segredo
não havia fritos nem palavras grossas; os padres remordiam a minha alma,
prometendo o inferno eterno e espremiam o meu arquejo, decifrando uma confissão...;
mas a minha boca não falou..., não falou por senha firme da vontade, que não me
palpitava confessar quem era ela e que era linda...
E raivado entre dois amargos desesperos não
atinava sair deles: se das riquezas, que eu queria só pra mim, se do seu amor,
que eu não queria que fosse senão meu, inteiro e todo!
Mas por senha da vontade a boca não falou.
Fui sentenciado a morrer pela morte do
garrote, que é infame; condenado fui por ter dado passo errado com bicho
imundo, que era bicho e mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira.
No adro e no largo da igreja, o povo
ajoelhado batia nos peitos, clamando a morte do meu corpo e a misericórdia para
a minha alma.
O sino começou dobrando a finados.
Trouxeram-me em braços, entre alabardas e lanças, e um cortejo moveu-se,
compassando a gente d’armas, os santos padres, o carrasco e o povaréu.
Dobrando a finados… dobrando a finados...
Era por mim.
CAPÍTULO
5
E quando, sem mais esperança nos homens nem
no socorro do céu, chorei uma lágrima de adeus à teiniaguá encantada, dentro do
meu sofrer floreteou uma réstia de saudade do seu cativo e soberano, como em
rocha dura serpenteia às vezes um fio de ouro alastrado e firme, como uma raiz
que não quer morrer!...
E aquela saudade parece que saiu para fora do
meu peito. subiu aos olhos feita em lágrima e ponteou para algum rumo, ao
encontro doutra saudade rastreada sem engano...; parece, porque nesse momento
um ventarrão estourou sobre as águas da lagoa e a terra tremeu, sacudida,
tanto, de as árvores desprenderem os seus frutos, de os animais estaquearem-se,
medrosos, e de os homens caírem de co’cras, aguentando as armas, outros, de
bruços tateando o chão...
E nas correntezas sem corpo, da ventania,
redemoinhavam em chusma vozes guaranis, esbravejando se soltasse o padecente.
Para trás do cortejo, desfiando o som entre
as poeiras grossas e folhas secas levantadas, continuava o sino dobrando a
finados… dobrando a finados!…
Os santos padres, pasmados mas sisudos,
rezavam encomendando a minha alma; em roda, boquejando, chinas, piás, índios
velhos, soldados de couraça e lança, e o alcaide, vestido de samarra amarela
com dois leões vermelhos e a coroa d’el-rei brilhando em canutilho de ouro…
A lágrima do adeus ficou suspensa, como uma
cortina que embacia o claro ver: e o palmital da lagoa, o boleado das coxilhas,
o recorte da serra, tudo isto, que era grande e sozinho cada um enchia e
sobrava para os olhos limpos dum homem, tudo isso eu enxergava junto,
empastalhado e pouco, espelhando-se na lágrima suspensa, que se encrespava e
adelgaçava, fazendo franjas entre as pestanas balançantes dos meus olhos de
condenado sem perdão...
A menos de braça, estava o carrasco atento no
garrote!
Mas os olhos do meu pensamento, altanados e
livres, esses, esses viam o corpo bonito, lindo, belo, da princesa moura, e
recreavam-se na luz cegante da cabeça encantada da teiniaguá, onde reinavam os
olhos dela, olhos de amor, tão soberanos e cativos como em mil vidas de homem
outros se não viram!...
E por certo por essa força que nos ligava sem
ser vista, como naquele dia em que o povo sesteava e também nada viu... por
força dessa força, quanto mais os padres e alguazis ordenavam que eu morresse,
mais pelo meu livramento forcejava o irado peito da encantada, não sei se de
amor perdida pelo homem, se de orgulho perverso do perjuro, se da esperança de
um dia ser humana...
O fogo dos borralhos foi-se alteando em
labaredas e saindo pela quincha dos ranchos, sem queimá-los...; as crianças de
peito soltaram palavras feitas, como gente grande...; e bandadas de urubus
apareceram e começaram a contradançar tão baixo, que se lhes ouvia o esfregar
das penas contra o vento..., a contradançar, afiados para uma carniça que ainda
não havia porém que havia de haver.
Mas os santos padres alinharam-se na sombra
do Santíssimo e borrifaram de água benta o povo amedrontado; e seguiram, como
num propósito, encomendando a minha alma; o alcaide levantou o pendão real e o
carrasco varejou-me sobre o garrote, infâmia de minha morte, por ter tido
amores com uma mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira...
Rolou, então, sobre o vento e nele foi a
lágrima do adeus, que a saudade destilara.
Deu logo a lagoa um ronco bruto, nunca
ouvido, tão dilatado e monstruoso... e rasgou-se cerce em um sangão medonho,
entre largo e fundo… e lá no abismo, na caixa por onde ia já correndo, em
borbotão, a água lamenta sujando as barrancas novas, lá, eu vi e todos viram a
teiniaguá de cabeça de pedra transparente, fogachando luminosa como nunca, a
teiniaguá correr, estrombando os barrocais, até rasgar, romper, arruir a boca
do sangão na alta barranca do Uruguai, onde a correnteza em marcha
despencou-se, espadanando em espumarada escura, como caudal de chuvas
tormentosas!…
A gente levantou pro céu um vozear de
lástimas e choros e gemidos.
— Que a Missão de S. Tomé ia perecer… e
desabar a igreja... a terra expulsar os mortos do cemitério… que as crianças
inocentes iam perder a graça do batismo… e as mães secar o leite... e as roças
o plantio, os homens a coragem...
Depois um grande silêncio balançou-se no ar,
como esperando...
Mas um milagre se fez: o Santíssimo, de si
próprio, perpassou a altura das cousas, e lá em cima, cortou no ar turvado a
Cruz Bendita!… O padre superior tremeu como em terçã e tartamudo e trôpego
marchou para o povoado; os acólitos seguiram, e o alcaide, os soldados, o
carrasco e a indiada toda desandou, como em procissão, emparvados, num
assombro, e sem ter mais do que tremer, porque ventos, fogo, urubus e estrondos
se humilharam, fenecendo, dominados!...
Fiquei sozinho, abandonado, e no mesmo lugar
e mesmos ferros posto.
Fiquei sozinho, ouvindo com os ouvidos da
minha cabeça as ladainhas que iam minguando, em retirada… mas também ouvindo
com os ouvidos do pensamento o chamado carinhoso da teiniaguá; os olhos do meu
rosto viam a consolação da graça de Maria Puríssima que se alonjava... mas os
olhos do pensamento viam a tentação do riso mimoso da teiniaguá; o nariz do meu
rosto tomava o faro do incenso que fugia, ardendo e perfumando as santidades…
mas o faro do pensamento sorvia a essência das flores do mel fino de que a
teiniaguá tanto gostava; a língua da minha boca estava seca, de agonia, dura de
terror, amarga de doença… mas a língua do pensamento saboreava os beijos da
teiniaguá, doces e macios, frescos e sumarentos como polpa de guabiju colhido
ao nascer do sol; o tato das minhas mãos tocava manilhas de ferro, que me
prendiam por braços e pernas… mas o tato do pensamento roçava sôfrego pelo
corpo da encantada, torneado e rijo, que se encolhia em ânsias, arrepiado como
um lombo de jaguar no cio, que se estendia planchado como um corpo de cascavel
em fúria...
E tanto como o povo ia entrando na cidade, ia
eu chegando à barranca do Uruguai; tanto como as gentes, lá, iam acabando as
orações para alcançar a demência divina, ia eu começando o meu fadário, todo
dado à teiniaguá, que me enfeitiçou de amor, pelo seu amor de princesa moura,
pelo seu amor de mulher, que vale mais que destino de homem!...
Sem peso de dores nos ossos e nas carnes, sem
peso de ferros no corpo, sem peso de remorsos na alma passei o rio para o lado
do Nascente. A teiniaguá fechou os tesouros da outra banda e juntos fizemos
então caminho para o Cerro do Jarau, que ficou sendo o paiol das riquezas de
todas as salamancas dos outros lugares.
Para memória do dia tão espantoso lá ficou o
sangão rasgado na baixada da cidade de Santo Tomé, desde o tempo antigo das
Missões.
CAPÍTULO 6
Faz duzentos anos que aqui estou; aprendi
sabedorias árabes e tenho tornado contentes alguns raros homens que bem sabem
que a alma é um peso entre o mandar e o ser mandado...
Nunca mais dormi; nunca mais nem fome, nem
sede, nem dor, nem riso...
Passeio no palácio maravilhoso, dentro deste
Cerro do Jarau, ando sem parar e sem cansaço; piso com pés vagarosos, piso
torrões de ouro em pó, que se desfazem como terra fofa; o areão dos jardins,
que calco, enjoado, é todo feito de pedras verdes e amarelas e escarlates,
azuis, rosadas, violetas… e quando a encantada passa, todas incendeiam-se num
íris de cores rebrilhantes, como se cada uma fosse uma brasa viva faiscando sem
a mais leve cinza...; há poços largos que estão atulhados de doblões e de onças
e peças de jóias e armaduras, tudo ouro maciço do Peru e do México e das Minas
Gerais, tudo cunhado com os troféus dos senhores reis de Portugal e de Gastela
e Aragão...
E eu olho para tudo, enfarado de ter tanto e
de não poder gozar nada entre os homens, corno quando era como eles e como eles
gemia necessidades e cuspia invejas, tendo horas de bom coração por dias de
maldade e sempre aborrecimento do que possuía, ambicionando o que não possuía...
O encantamento que me aprisiona consente que
eu acompanhe os homens de alma forte e coração sereno que quiserem contratar a
sorte nesta salamanca que eu tornei famosa, do Jarau.
Muitos têm vindo… e têm saído piorados, para
lá longe irem morrer do medo aqui pegado, ou andarem pelos povoados assustando
as gentes, loucos, ou pelos campos fazendo vida com os bichos brutos...
Poucos toparam a parada… ah!... mas esses que
toparam, tiveram o que pediram, que a rosa dos tesouros, a moura encantada não
desmente o que eu prometo, nem retoma o que dá!
E todos os que chegam deixam um resgate de si
próprios para o nosso livramento um dia...
Mas todos os que vieram são altaneiros e
vieram arrastados pela ânsia da cobiça ou dos vícios, ou dos ódios: tu foste o
único que veio sem pensar e o único que me saudou como filho de Deus...
Foste o primeiro, até agora; quando terceira
saudação de cristão bafejar estas alturas, o encantamento cessará, porque eu
estou arrependido… e como Pedro Apóstolo que três vezes negou Cristo foi
perdoado, eu estou arrependido e serei perdoado.
Está escrito que a salvação há de vir assim;
e por bem de mim, quando cessar o meu cessará também o encantamento da
teiniaguá: e quando isso se der, a salamanca desaparecerá. e todas as riquezas,
todas as pedras finas, todas as peças cunhadas, todos os sortilégios, todos os
filtros para amar por força... para matar... para vencer… tudo, tudo, tudo se
virará em fumaça que há de sair pelo cabeço roto do cerro, espalhada na
rosa-dos-ventos pela rosa dos tesouros...
Tu me saudaste o primeiro, tu! — saudaste-me
como cristão.
Pois bem: alma forte e coração sereno!...
Quem isso tem, entra na salamanca, toca o condão mágico e escolhe do quanto
quer...
Alma forte e coração sereno! A furna escura
está lá: entra! Entra! Lá dentro sopra um vento quente que apaga qualquer
torcida de candeia… e tramado nele corre outro vento frio, frio… que corta como
serrilha de geada.
Não há ninguém lá dentro… mas bem que se
escuta voz de gente, vozes que falam..... falam, mas não se entende o que
dizem, porque são línguas atoradas que falam, são os escravos da princesa
moura, os espíritos da teiniaguá... Não há ninguém... não se vê ninguém: mas há
mãos que batem, como convidando, no ombro do que entra firme, e que empurram,
como ainda ameaçando, o que recua com medo...
Alma forte e coração sereno! Se entrares
assim, se te portares lá dentro assim, podes então querer e serás servido!
Mas, governa o pensamento e segura a língua:
o pensamento dos homens é que os levanta acima do mundo, e a sua língua é que
os amesquinha...
Alma forte, coração sereno!... Vai!
Blau, o guasca, apeou-se maneou o flete e por
de seguro ainda pelo cabresto prendeu-o a um galho de cambuí que verga sem
quebrar-se; rodou as esporas para o peito do pé; aprumou de bom jeito o facão;
santiguou-se, e seguiu...
Calado fez; calado entrou.
O sacristão levantou-se e o seu corpo
desfez-se em sombra na sombra da reboleira.
O silêncio que então se desdobrou era como o
vôo parado das corujas: metia medo...
CAPÍTULO
7
Blau Nunes foi andando.
Entrou na boca da toca apenas aí clareada e
isso pouco, por causa da enrediça da ramaria que se cruzava nela; pra o fundo
era tudo escuro...
Andou mais, num corredor dumas braças; mais
ainda; sete corredores nasciam deste.
Blau Nunes foi andando.
Enveredou por um deles; fez voltas e contravoltas,
subiu, desceu. Sempre escuro. Sempre silêncio.
Mãos de gente, sem gente que ele visse,
batiam-lhe no ombro.
Numa cruzada de carreiros sentiu ruído de
ferros que se chocavam, tinir de muitas espadas, seu conhecido.
Por então o escuro ia já num luzir de
vaga-lume.
Grupos de sombras com feitio de homens
peleavam de morte; nem pragas nem fuzilar d’olhos raivosos, porém furiosos eram
os golpes que elas iam talhando umas nas outras, no silencio.
Blau teve um relance de parada, mas atentou
logo no dizer do vulto de face branca e tristonha — Alma forte, coração sereno...
E meteu o peito entre o espinheiro das
espadas, sentiu o corte delas, o fino das pontas, o redondo dos copos... mas
passou, sem nem olhar aos lados, num entono, escutando porém os choros e
gemidos dos peleadores.
Mãos mais leves bateram-lhe no ombro, como
carinhosas e satisfeitas.
Outro mais ruído nenhum ouvia ele no ar
quieto da furna que o rangido dos cabrestilhos das suas esporas.
Blau Nunes foi andando.
Andando numa luz macia, que não dava sombra.
Enredada como os caminhos dum capim era a furna, dando corredores sem conta, a
todos os rumos; e ao desembocar do em que vinha, justo num cotovelo dele,
saltaram-lhe aos quatro lados jaguares e pumas, de goela aberta e bafo quente,
patas levantadas mostrando as unhas, a cola mosqueando, numa fúria...
E ele meteu o peito e passou, sentindo a
cerda dura das feras roçarem-lhe o corpo; passou sem pressa nem vagar,
escutando os urros que pra trás iam ficando e morrendo sem eco...
As mãos, de braços que ele não via, em corpos
que não sentia, mas que, certo, o ladeavam, as mãos iam-lhe sempre afagando os
ombros, sem bem o empurrar, mas atirando-o para adiante..., adiante...
A luz ia na mesma, cor da de vaga-lume,
esverdeada e amarela...
Blau Nunes foi andando.
Agora era um lançante e ao fim dele parou num
redondel topetado de ossamentas de criaturas. Esqueletos, de pé encostados uns
nos outros, muitos, derreados, como numa preguiça; pelo chão caídas, partes
deles, despencadas; caveiras soltas, dentes branqueando, tampos de cabeças,
buracos de olhos, pernas e pés em passo de dança, alcatras e costelas
meneando-se num vagar compassado, outras em saracoteio...
Aí o seu braço direito quase moveu-se acima,
como para fazer o sinal da cruz;... porém — alma forte, coração sereno! — meteu
o peito e passou entre as ossadas, sentindo o bafio que elas soltavam das suas
juntas bolorentas.
As mãos, aquelas, sempre brandas,
afagavam-lhe outra vez os ombros...
Blau Nunes foi andando.
O chão ia alteando-se, numa trepada forte que
ele venceu sem aumentar a respiração; e num desvão, a modo dum forno, teve de
passar por uma como porta dele, e ai dentro era um jogo de línguas de fogo,
vermelho e forte, como atiçado com lenha de nhanduvai; e repuxos d’água, saídos
das paredes, batiam nele e referviam, chiando, fazendo vapor; um ventarão
rondava ali dentro, enovelando águas e fogos, que era uma temeridade cortar
aquele turbilhão...
Outra vez ele meteu o peito e passou,
sentindo o mormaço das labaredas.
As mãos do ar mais o palmeavam nos ombros,
como querendo dizer — muito bem!
Blau Nunes foi andando.
Já tinha perdido a conta do tempo e do rumo
que trazia; sentia no silêncio como que um peso de arrobas; a claridade mortiça
porém, já se lhe assentara nos olhos e tanto, que viu adiante, em sua frente e
caminho, um corpo enroscado, sarapintado e grosso, batendo no chão uns
chocalhos, grandes como ovos de téu-téu.
Era a boicininga, guarda desta passagem, que
levantava a cabeça flechosa, lanceando o ar com a língua de cabelos, preta,
firmando no vivente a escama dos olhos, luzindo, preto, como botões de veludo...
Das duas presas recurvas, grandes como as
aspas dum tourito de sobreano, pingava uma goma escura, que era a peçonha
sobrante por um muito jejum de mortandade, lá fora...
A boicininga — a cascavel amaldiçoada — toda
se meneava, chocalhando os guizos, como por aviso, fueirando o ar com a língua,
como por prova...
Uma serenada de suor minou na testa do
paisano… porém ele meteu o peito e passou, vendo, sem olhar, a boicininga
altear-se e descair, chata e tremente..., e passou, ouvindo o chocalho da que
não perdoa, o sibildo da que não esquece...
E logo então, que era este o quinto passo de
valentia que vencera sem temer
— de alma forte e coração sereno — logo então
as mãos voantes anediaram-lhe o cabelo, palmearam-lhe mais chegadas os ombros.
Blau Nunes foi andando.
Desembocou num campestre, de gramado fofo,
que tinha um cheiro doce que ele não conhecia; em toda a volta árvores em
floradas e estadeando frutos; passarinhada de penas vivas e cantoria alegre:
veadinhos mansos; capororocas e outro muito bicharedo, que recreava os olhos; e
listando a meio o campestre, brotado duma roca coberta de samambaias, um
olho-d’água, que saía em toalha e logo corria em riachinho, pipocando o
quanto-quanto sobre areão solto, palhetado de malacachetas brancas, como uma
farinha de prata...
E logo uma ronda de moças — cada qual que
mais cativa —uma ronda alegre saiu dentre o arvoredo, a cercá-lo, a seduzi-lo,
a ele Blau, gaúcho pobre, que só mulheres de anáguas resvalonas conhecia...
Vestiam-se umas em frouxo trançado de flores,
outras de fios de contas, outras na própria cabeleira solta...; estas
chegavam-lhe à boca caramujos estrambóticos, cheios de bebida recendente e fumegando
entre vidros frios, como de geada; dançavam outras num requebro marcado como
por música... outras lá acenavam-lhe para a lindeza dos seus corpos; atirando
no chão esteiras macias, num convite aberto e ardiloso.,.
Porém ele meteu os peitos e passou, com as
fontes golpeando, por motivo do ar malicioso que o seu bofe respirava...
Blau Nunes foi andando.
Entrou no arvoredo e foi logo rodeado por uma
tropa de anões, cambaios e cabeçudos, cada qual melhor para galhofa, e todos em
piruetas e mesuras, fandangueiros e volantins, pulando como aranhões, armando
lutas, fazendo caretas impossíveis para rostos de gente...
Porém o paisano meteu o peito neles e passou,
sem nem sequer um ar de riso no canto dos olhos...
E com este, que era o último, contou os sete
passos das provas.
E logo então, aqui, surdiu-lhe em frente o
vulto de face tristonha e branca, que, certo, lhe andara nas pisadas, de
companheiro — sem corpo — e sem nunca lhe valer nos apuros do caminho; e
tomou-lhe a mão.
E Blau Nunes foi seguindo.
Por detrás de um cortinado como de escamas de
peixe-dourado, havia um socavão reluzente. E sentada numa banqueta
transparente, fogueando cores como as do arco-íris, estava uma velha, muito
velha, carquincha e curvada, e como tremendo de caduca.
E segurava nas mãos uma varinha branca, que
ela revirava e tangia, e atava em nós que se desfaziam, laçadas que se
deslaçavam e torcidas que se destorciam, ficando sempre linheira.
— Cunhã, disse o vulto, o paisano quer!
— Tu, vieste; tu, chegaste; pede, tu, pois!
respondeu a velha.
E moveu e ergueu o corpo magro, dando estalos
nas juntas e levantou a varinha para o ar: logo o condão coriscou por sobre ela
uma chuva de raios, mais que como num temporal desfeito das nuvens carregadas
cairia. E disse:
— Por sete provas que passaste, sete escolhas
dar-te-ei... Paisano, escolhe!
Para ganhar a parada em qualquer jogo… de
naipes, que as mãos ajeitam, de dados, que a sorte revira, de cavalos, que se
cotejam, do osso, que se sopesa, da rifa... queres?
— Não! — disse Blau, e todo o seu parecer foi
se mudando num semblante como de sonâmbulo, que vê o que os outros não vêem…
como os gatos, que acompanham com os olhos cousas que passam no ar e ninguém vê...
— Para tocar a viola e cantar… amarrando nas
cordas dela o coração das mulheres que te escutarem..., e que hão de sonhar
contigo, e ao teu chamado irão — obedientes, como aves varadas pelo olhar das
cobras —, deitar-se entregues ao dispor dos teus beijos, ao apertar dos teus
braços, ao resfolegar dos teus desejos... queres?
— Não! — respondeu a boca, por mandado só do
ouvido...
— Para conhecer as ervas, as raízes, os sucos
das plantas e assim poderes curar os males dos que tu estimares ou desfazer a
saúde dos que aborreceres;... e saber simpatias fortes para dar sonhos ou
loucura, para tirar a fome, relaxar o sangue, e gretar a pele e espumar os
ossos,..... ou para ligar apartados, achar cousas perdidas, descobrir invejas...;
queres?
— Não!
— Para não errar golpe — de tiro, lança ou
faca — em teu inimigo, mesmo no escuro ou na distância, parado ou correndo,
destro ou prevenido, mais forte que tu ou astucioso...; queres?
— Não!
— Para seres mandão no teu distrito e que
todos te obedeçam sem resmungos;... seres língua com os estrangeiros e que
todos te entendam…: queres?
— Não!
— Para seres ricaço de campo e gado e manadas
de todo o pêlo;… queres?
— Não
— Para fazeres pinturas em tela, versos
harmoniosos, novelas de sofrimentos, autos de chocarrice, músicas de consolar,
lavores no ouro, figuras no mármore,... queres?
— Não!
— Pois que em sete poderes te não fartas,
nada te darei, porque do que foi prometido nada quiseste. Vai-te Blau nem se
moveu; e, carpindo dentro em si a própria rudeza, pensou no que queria dizer e
não podia e que era assim:
— Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti,
porque tu és tudo!... És tudo o que eu não sei o que é, porém que atino que
existe fora de mim, em volta de mim, superior a mim. Eu te queria a ti,
teiniaguá encantada!...
Mas uma escuridão fechada, como nem noite a
mais escura dá parelha, caiu sobre o silêncio que se fez, e uma força torceu o
paisano.
Blau Nunes arrastou um passo e outro e
terceiro; e desandou caminho; e quando ele andara em voltas e contravoltas, em
subidas e descidas, tanto em direitura foi bater na boca da furna por onde
havia entrado, sem engano.
E viu atado e quieto o seu cavalo; em roda as
mesmas restingas, ao longe os mesmos descampados mosqueados das pontas de gado,
a um lado o encordoado das coxilhas, a outro, numa aberta entre matos um claro
prateado, que era água do arroio.
Memorou o que tinha acabado de ver e de ouvir
e de responder; dormindo, não tinha, nem susto lhe tirara o entendimento.
E pensou que tendo tido oferta de muito não
lograra nada por querer tudo... e num arranco de raiva cega decidiu outra
investida.
Voltou-se para entrar de novo… mas bateu coo
peito na parede dura do cerro.
Terra maciça, mato cerrado, capins, limos...
e nenhuma fresta, nem brecha nem buraco, nem furna, caverna, toca, por onde escorresse
um corpinho de guri, quando mais passasse porte de homem!...
Desanimado e penaroso, compôs o cavalo e
montou; e ao dar de rédea apareceu-lhe pelo lado de laçar o sacristão, o vulto
de face branca e tristonha, que tristemente estendeu-lhe a mão, dizendo:
— Nada quiseste; tiveste a alma forte e o
coração sereno, tiveste, mas não soubeste governar o pensamento nem segurar a
língua!... Não te direi se bem fizeste ou mal. Mas como és pobre e isso te
aflige, aceita este meu presente, que te dou. É uma onça de ouro que está
furada pelo condão mágico; ela te dará tantas outras quantas quiseres, mas
sempre de uma em uma e nunca mais que uma por vez; guarda-a em lembrança de
mim!
E o corpo do sacristão encantado desfez-se em
sombra na sombra da reboleira...
Blau Nunes, meteu na guaiaca a onça furada, e
deu de rédea.
O sol tinha cambado e o Cerro do Jarau já
fazia sombra comprida sobre os bamburrais e restingas que lhe formavam assento.
CAPÍTULO 8
Na troteada para o posto em que morava, um
ranchote de beira no chão tendo por porta um couro —, Blau rumeou para uma
venda grande que sortia aquele vizindário, mesmo a troco de courama, cerda ou
algum tambeiro; e como vinha de garganta seca e a cabeça atordoada mandou botar
uma bebida.
Bebeu; e puxou da guaiaca a onça e pagou; era
tão mínima a despesa e o câmbio que veio, tanto, que pasmou, olhando para de,
de tão desacostumado que andava de ver dinheiro tanto, que chamasse seu...
E de dedos engatanhados socou-o todo para
dentro da guaiaca, sentindo-lhe o peso e o sonido afogado.
CaIado, montou de novo, retirando-se.
No caminho foi pensando nas todas as cousas
que carecia e que iria comprar.
Entre aperos e armas e roupas, um lenço
grande e umas botas, outro cavalo, umas esporas e embelecos que pretendia, andava
tudo por uma mão-cheia de cruzados e a si próprio perguntava se aquela onça
encantada, dada para indez, teria mesmo o condão de entropilhar outras muitas,
tantas como as que precisava, e mais ainda, outras e outras que o seu desejo
fosse despencando?!...
Chegou ao posto, e como homem avisado, não
falou do que fizera durante o dia, apenas do boi barroso, que campeou e não
achou; e no seguinte, logo cedo saiu a empeçar a prova do prometido.
Naquele mesmo negociante ajustou umas roupas
tafulonas; e mais uma adaga de cabo e bainha com anéis de prata; e mais as
esporas e um rebenque de argolão.
Toda a compra passava de três onças.
E Blau, as fontes latejando, a boca cerrada,
num aperto que lhe fazia doer o carrinho, piscando os olhos, a respiração
atropelada, todo ele numa desconfiança, Blau, por debaixo do seu balandrau
remendado começou a gargantear a guaiaca... e caiu-lhe na mão uma onça… e
outra… e outra!... As quatro, que por agora eram tão de jeito!...
Mas não caíram duas e duas ou três e uma, ou
as quatro, juntas, porém sim de uma a uma, as quatro, de cada vez só uma…
Voltou ao rancho com a maleta atochada, mas,
como homem avisado, não falou do acontecido.
No outro dia seguiu a outro rumo, para outro
negociante mais forte e de prateleiras mais variadas. Já levava alinhavado o
sortimento que ia fazer, e muito em ordem foi encomendando o aparte das cousas,
tendo cuidado em não querer nada de cortar, só peças inteiras, que era para, no
caso de falhar a onça, recuar da compra, fazendo um feio, é verdade, mas não
‘sendo obrigado a pagar estrago algum. Notou a conta, que andava por quinze
onças, uns cruzados pra menos.
E outra vez, por debaixo do seu balandrau
remendado, começou a gargantear a guaiaca, e logo lhe foi caindo na mão uma
onça... e segunda... outra… e quarta, mais outra, e sexta... e assim de uma em
uma, as quinze necessárias!
O negociante ia recebendo e alinhando sobre o
balcão as moedas conforme vinham elas minando da mão do pagador, e quando
estavam todas disse, entre risonho e desconfiado:
— Cuê-pucha!... cada onça das suas parece que
é um pinhão, que é preciso descascar à unha!...
No terceiro dia passou na estrada uma
cavalhada; Blau fez parar a tropa e ajustou uma quadrilha, apartada por ele, à
sua vontade, e como facilitou o preço, fechou-se o trato.
Ele e o capataz, sós no meio da cavalhada,
iam fazendo mover-se os animais; no apinhado de todas, Blau marcava a cabeça
que mais lhe agradava pelo focinho, pelos olhos, pelas orelhas; com um sovéu
fino, de armada pequena, reboleava por dentro e ia, certo, laçar o bagual
escolhido; se ainda, sem ovas e bons cascos, aprazia-lhe, tirava-o então, como
seu, para o potreiro do piquete.
Olho de campeiro, não errou vez alguma a
escolha, e trinta cavalos, a flor, foram apartados, custando quarenta e cinco
onças.
E enquanto a tropa verdejava e bebia, os
tratistas foram para a sombra duma figueira que havia na beira da estrada.
Blau por debaixo do seu balandrau remendado,
ainda desconfiando, começou a gargantear a guaiaca... e foi logo aparando, onça
por onça, uma, três, seis, dez, dezoito, vinte e cinco, quarenta, quarenta e
cinco!...
O vendedor, estranhando aquela novidade e
demora, não se conteve e disse:
— Amigo! As suas onças parecem talas de
jerivá, que só cai uma de cada vez!...
Depois desses três dias de prova Blau
acreditou na onça encantada.
Arrendou um campo e comprou o gado, pra mais
de dez mil cabeças, aquerenciado.
O negócio era muito acima de três mil onças,
a pagar no recebimento.
Ai o coitado perdeu quase o dia inteiro a
gargantear a guaiaca e a aparar onça por onça, uma atrás da outra, sempre uma a
uma!...
Cansou-lhe o braço; cansou-lhe o corpo; não
falhava golpe, mas tinha de ser como martelada, que não se dá duas ao mesmo
tempo...
O vendedor, à espera que Blau completasse a
soma, saiu, mateou, sesteou; e quando, sobre a tarde, voltou à ramada, lá
estava ele ainda aparando onça trás onça!...
Ao escurecer estava completo o ajuste.
Começou a correr a fama da sua fortuna. E
todos espantavam-se, por ele, gaúcho despilchado de ontem, pobre, que só tinha
de seu as chilcas, afrontar os abonados, assim do pé para a mão... E também era
falado o seu esquisito modo de pagar — que pagava sempre, valha a verdade — só
de onça por onça, uma depois de outra e nunca, nunca ao menos duas,
acolheradas!...
Aparecia gente a propor-lhe negócio, ainda de
pouco preço, só para ver como aquilo era; e para todos era o mesmo mistério.
Mistério para o próprio Blau… muito rico…
muito rico… mas de onça em onça, como tala de jerivá, que só cai uma de cada
vez... como pinhão da serra, que só se descasca de um a um!...
Mistério para Blau, muito rico... muito rico...
Mas todo o dinheiro que ele recebia, que entrava das vendas feitas, todo o
dinheiro que lhe pagavam a ele, todo desaparecia, guardado na arca de ferro,
desaparecia como desfeito em ar...
Muito rico… muito rico das onças que
precisasse, e nunca faltaram para gastar no que lhe parecesse: bastava-lhe
gargantear a guaiaca, e elas começavam a pingar;... mas nenhuma das que recebia
lhe ficava, todas evaporavam-se como água em tijolo quente…
CAPÍTULO 9
Então começou a correr um boquejo de ouvido
para ouvido... e era que ele tinha parte com o diabo, e que o dinheiro dele era
maldito porque todos com quem tratava e recebiam das suas onças, todos
entravam, ao depois, a fazer maus negócios e todos perdiam em prejuízos
exatamente a quantia igual à de suas mãos recebida.
Ele comprava e pagava a vista, é certo; o
vendedor contava e recebia, é certo... mas o negócio empreendido com esse valor
era de prejuízo garantido.
Ele vendia e recebia, é certo; mas o valor
recebido que ele guardava e rondava, sumia-se como um vento, e não era roubado
nem perdido; era sumido, por si mesmo...
O boquejar foi alastrando, e já diziam que
aquilo, por certo, era mandinga arrumada na salamanca do Jarau, onde ele foi
visto mais de uma feita..., e que lá é que se jogava a alma contra a sorte...
E os mais vivarachos já faziam suas
madrugadas sobre o Jarau; outros, mais sorros, pra lá tocavam-se ao escurecer,
outros, atrevidaços, iam à meia-noite, outros ainda ao primeiro cantar dos
galos...
E como nesse carreiro de precatados cada um
fazia por ir de mais escondido, sucedeu que como sombras se pechavam entre as
sombras das reboleiras, sem atinar coa salamanca, ou sem topete para, na
escuridão, quebrar aquele silêncio, chamando o santão, num grito alto...
No entanto Blau começou a ser tratado de
longe, como um chimarrão rabioso...
Já não tinha com quem pautear; churrasqueava
solito, e solito mateava, rodeado dos cachorros, que uivavam, às vezes um, às
vezes todos...
A peonada foi saindo e conchavando-se noutras
partes; os negociantes nada compravam-lhe e negaceavam para vender-lhe; os
andantes cortavam campo para não pararem nos seus galpões...
Blau deu em cismar, e cisma foi que resolveu
acabar com aquele cerco de isolamento, que o ralava e esmorecia...
Montou a cavalo e foi ao cerro. Na trepada
sentiu aos dois lados barulho nos bamburrais e nas restingas, mas pensou que
seria alguma ponta de gado xucro que disparava, e não fez caso; foi trepando.
Mas não era, não, gado xucro espantado, nem guaraxaim corrido, nem tatu vadio;
era gente, gente que se escondia uns dos outros e dele...
Assim chegou à reboleira do mato, tão sua
conhecida e recordada, e como chegou, deu de cara com o vulto de face branca e
tristonha, o sacristão encantado, o santão.
Ainda desta vez, como era ele que chegava, a
ele competia louvar; saudou, como da outra:
— Laus’ Sus-Cris’!...
— Para sempre, amém! — respondeu o vulto.
Então Blau, de a cavalo, atirou-lhe aos pés a
onça de ouro, dizendo:
— Devolvo! Prefiro a minha pobreza dantes à
riqueza desta onça, que não se acaba, é verdade, mas que parece amaldiçoada,
porque nunca tem parelha e separa o dono dos outros donos de onças!... Adeus!
Fica-te com Deus, sacristão!
— Seja Deus louvado! — disse o vulto e caiu
de joelhos, de mãos postas, como numa reza. — Pela terceira vez falaste no Nome
Santo, tu, paisano, e com ele quebraste o encantamento!... Graças! Graças!
Graças!...
E neste mesmo instante, que era o da terceira
vez que Blau saudava no Nome Santo, neste mesmo momento ouviu-se um imenso
estouro, que retumbou naquelas vinte léguas em redor do Cerro do Jarau tremeu
de alto a baixo, até às suas raízes, nas profundas da terra, e logo, em cima,
no chapéu do espigão, apareceu, cresceu, subiu, aprumou-se, brilhou, apagou-se,
uma língua de fogo, alta como um pinheiro, apagou-se, e começou a sair fumaça
negra, em rolos grandes, que o vento ia tocando para longe, por cima do
encordoado das coxilhas, sem rumo feito, porque a fumaceira inchava e
desparramava-se no ar, dando voltas e contravoltas, torcendo-se, enroscando-se,
em altos e baixos, num desgoverno, como uma tropa de gado alçado, que espirra e
se desmancha como água passada em regador...
Era a queima dos tesouros da salamanca, como
dissera o sacristão.
Sobre as caídas do Cerro levantou-se um
vozeio e tropel; eram os maulas que andavam rastreando a furna encantada e que
agora fugiam, desguaritados, como filhotes de perdiz...
CAPÍTULO 10
Para os olhos de Blau o cerro ficou como de
vidro transparente, e então viu ele o que lá dentro se passava: os brigões, os
jaguares, os esqueletos, os anões, as lindas moças, a boicininga, tudo, torcido
e enovelado, amontoado, revolvido, corcoveava dentro das labaredas vermelhas
que subiam e apagavam-se dentro dos corredores, cada vez mais carregados de
fumaça… e urros, gritos, tinidos, sibildos, gemidos, tudo se confundia no
tronar da voz maior que estrondeava no cabeço empenachado do cerro.
Ainda uma vez a velha carquincha
transformou-se na teiniaguá... e a teiniaguá na princesa moura... a moura numa
tapuia formosa;... e logo o vulto de face branca e tristonha tornou a figura do
sacristão de S. Tomé, o sacristão, por sua vez, num guasca desempenado...
E assim, quebrado o encantamento que
suspendia fora da vida das outras aquelas criaturas vindas do tempo antigo e de
lugar distante, aquele par, juntado e tangido pelo Destino, que é o senhor de
todos nós, aquele par novo, de mãos dadas como namorados, deu costas ao seu
desterro, e foi descendo a pendente do coxilhão, até a várzea limpa, plana e
verde, serena e amornada de sol claro, toda bordada de boninas amarelas, de
bibis roxas, de malmequeres ‘brancos, como uma cancha convidante para uma
cruzada de ventura, em viagem de alegria, a caminho do repouso!...
Blau Nunes também não quis mais ver; traçou
sobre o seu peito uma cruz larga, de defesa, na testa do seu cavalo outra, e
deu de rédea e d’espacito foi baixando a encosta do cerro, com o coração
aliviado e retinindo como se dentro dele cantasse o passarinho verde...
E agora, estava certo de que era pobre como
dantes, porém que comeria em paz o seu churrasco...; e em paz o seu chimarrão,
em paz a sua sesta, em paz a sua vida!...
Assim acabou a salamanca do Cerro do Jarau,
que aí durou duzentos anos, que tantos se contam desde o tempo das Sete
Missões, em que estas cousas principiaram.
Anhangá-pitã, também, desde aí, não foi mais
visto. Dizem que, desgostoso, anda escondido, por não haver tomado bem
tendência que a teiniaguá era mulher...
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Fonte:
João Simões Lopes Neto: Lendas do Sul. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2014.
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