O JANTAR DO
NATAL
Até a
natureza se enfeita para festejar também o Natal do Deus-Menino!
Ao meio dia,
quando o sol parece estacionar no zênite, como um viajante que pára no viso de
uma montanha, para resfolegar da caminhada, estava o firmamento azul, de uma
limpidez cristalina, tépido o ar, e dentre as flores silvestres dos prados e
das encostas ascendia uma tênue vaporização, como se a terra fosse um enorme
turíbulo a incensar para o céu!
As vacas
descansavam nos currais, os rebanhos nos redis; e, à sombra das arribanas,
viam-se os carros com os cabeçalhos caídos, os arados com as rabiças por terra,
e as cangas, os ensinhos, todo o utensílio da lavoura deposto a um canto, como
armas valentes do trabalho nas feriadas e alegres horas do descanso.
As moças iam
colher arregaçadas de violetas e rosas para inflorar o presepe. Nas cozinhas
andava tudo em uma roda viva! Tirava-se da arca a melhor toalha de linho, a
melhor louça da copa, e punha-se na mesa que nem um palmito! Até o balaio do
pão estava aberto e franco; porque não havia de haver pobrezinho que fosse da
porta sem a consoada!
E o presepe?
Aquilo podia-se ver! à frente, deitado sobre as palhas de um estábulo, via-se o
Menino, de barriga para o ar, nuzinho em pelote, a sorrir para Nossa Senhora,
que o contemplava, de joelhos, com o radiante jubilo das mães. Da outra banda
estava S. José com a enxó e o martelo de carpinteiro postos ao lado. Mais
atrás, uma vaca malhada fitava no Infante os seus grandes olhos redondos; e um
jumento lanzudo, de orelha empinada, aproximava cobiçosamente o focinho,
dilatando as ventas ao cheiro fresco da palha. Pelos atalhos da encosta,
desciam à frente das bailadeiras, os pastores de Belém, um a soprar na gaita de
foles, outro a rufar no tambor, outro a bater as castanholas. No cabeço do
monte, apareciam já os três reis magos, S. Balthazar, S. Belchior, que é o rei
preto, e S. Gaspar; e todos eles cobertos de capas de arminho, com as coroas
reluzentes, e montados em cavalos baios e russos, ajaezados de ouro e
pedrarias. No cimo de tudo, entre nuvens, surgia uma pomba branca, de cujo bico
cor de rosa se espargiam raios de luz celestial, que vinham aureolar o berço do
Deus Menino! Era uma coisa rica!
Em volta do
presepe, a pequenada cantava alegremente:
Ó Infante
suavíssimo
Vinde, vinde
já ao mundo…
E
interrompiam o cântico para correrem à porta a ouvir as raparigas da
vizinhança, que entoavam em coro:
Vimos dar as
boas festas à senhora morgada E pedir-lhe que nos mande Já a nossa consoada.
Pois não? Lá
entra aquela tropa fandanga na cozinha para ajudar a fazer os mexidos e a
apurar as rabanadas com mel e vinho quente! Uma folia, que era mesmo um regalo
ver!
Antes de se
ir para a mesa, contaram-se os convivas; que não fosse chegar-se ao número
treze, e não houvesse mais alguém! Credo! O número treze é número aziago!
Estando treze pessoas ao jantar, no prazo de um ano, tem de morrer uma. E
deixem lá falar quem fala, e quem diz que são histórias! Até Alphonse Karr confessa
que não gosta de jantar em mesa de treze pessoas!
— Também esse? — pergunta circunspectamente a
sra. morgada, sem ter o gosto de o conhecer.
— Pudera, minha senhora!
— Então, vá vendo!
— Mas — atalha o cético — diz que não gosta de
estar à mesa de treze pessoas, quando o jantar chega só para doze.
— Ah! — exclamou a companhia — olha o demo do
homem!
Quando todos
procuravam o seu lugar respectivo, exclamou alguém:
— E o tio Simão?
— Ai! que falta o tio Simão!
E cada um se
desculpava com o próximo.
— Esta gente trás a cabeça a juros! — exclama
a senhora.
— Já viram? Ir-se jantar sem o velhinho!
— Quem chega aos açudes chamar pelo Simão?
— Vou eu.
— Eu vou.
— Eu também.
Afinal, vai
tudo.
As raparigas
ergueram-se todas de uma vez e deitaram a correr! Parecia mesmo uma revoada de
pombas mansas, que ouvissem estourar ali perto um tiro de espingarda! Fugiu
tudo!
* * *
Morava o tio
Simão da outra banda do rio. Tinha uma casita de telha vã, com o seu palminho
de terra plantado de horta. Contava 75 anos, mas rijos, e tão rijos, que o
deixavam ainda atravessar as poldras, todos os domingos, quando vinha jantar a
casa da sra. morgada. Fora ele casado, e tivera três filhos; mas chamou Deus a
si os três filhos e a mulher, e deixou-o sozinho neste mundo, a viver da
caridade dos seus benfeitores.
De uma vez
que estava sentado ao sol, que — como diz o outro — é a roupa dos pobres, viu
aproximar-se um cão amarelo, pequeno, feio, rabudo, com duas malhas na cabeça.
O Simão atirou-lhe pão; e, tanto que lhe foi dando de comer, conservou-se o
cãozito junto dele. Depois já ninguém o retirava dos pés do seu benfeitor.
Para quem
vive sem companhia vejam lá que alegrão é encontrar junto de si um pequenino
animal, que nos vê com olhos cheios de desinteressado carinho! Ficou o cãozito
sendo o companheiro do tio Simão. Como viesse sem nome, que é como aparecem os
enjeitados, o tio Simão batizou-o.
— Fiel! — exclamou ele — Fiel, anda aqui.
E
aproximava-se o Fiel do velhinho, com a obediência afetuosa de um filho amado.
Para onde fosse o Simão ia o Fiel.
Assim que o
sol lhe bateu no postigo — que era ao meio dia que tinha lugar a visita — o
Simão enfiou a jaqueta melhor que tinha, pegou no cajado a que se arrimava,
chamou pelo Fiel, deu volta à chave e encaminhou-se para a residência da
morgada. Quando ia a pousar o pé na primeira pedra, viu o Fiel, que ia na
frente, resvalar na pedra escorregadia, e cair ao rio!
O Simão
recuou cheio de susto, de aflição, com as mãos postas em súplica. O cão
principiou a nadar para o seu dono; mas ia tão grossa a levada, que o não
deixava vencer a corrente. Depois de muito esforço, conseguiu afinal abordar;
mas todo alagado, a tremer, a ganir, com o corpinho coberto das contusões, que
tinha recebido do embate das pedras.
— Anda, Fiel, anda, meu filho — dizia o pobre
velho a chorar.
Tomou o
cãozito nos braços, achegou-o do seio, e desandou para casa. No caminho ia
dizendo:
— É o mesmo! Farei eu o caldito, que há de
chegar para nós ambos!
*
* *
As
raparigas, que tinham saído da casa da sra. morgada, iam já perto do sinceiral
do rio, e não tinham ainda visto o Simão. Desceram por uma vereda; e, quando
chegaram à margem, gritaram algumas:
— Ó tio Simão! eh! tio Simão!
Ninguém lhe
respondeu.
— Vamos topá-lo em casa — propôs a mais
expedita.
Arregaçaram
as saias; e, pé aqui, pé ali, atravessaram cautelosamente para a outra banda.
Ao chegarem
a casa do tio Simão, aldrabaram à porta; e a que bateu não ouvindo o ladrido do
cão, exclamou para as companheiras:
— Querem vocês ver que o tio Simão já foi? O Fiel
não dá sinal!
Ao cabo de
um instante, porém, apareceu o velhinho a abrir-lhes a porta. E Jesus! que
gritaria! Falavam todas a um tempo, e ninguém as entendia.
— Aposto que estava a ajanotar-se! — dizia
uma.
— Ora, já viram? acudia outra. Como vai para o
meio das moças, o tio
Simão
enfeitou-se que nem um altar-mor!
— Hoje deita os rapazes todos a um canto!
Olha, véstia nova, hein?!
E enquanto
lhe diziam isto, uma ajeitava-lhe a gola da jaqueta, outra laçava-lhe o lenço
do pescoço!…
Quando
conseguiu que elas o ouvissem, o velhinho respondeu:
— Digam vocês à sra. morgada que hoje não vou
lá.
— Como não vai, tio Simão? Dia de Natal e não
há de ir? Isso tem lá lugar!…
Ele então
contou-lhes o que tinha havido.
— Ora, adeus. O Fiel o mais que tem é nada! É
um mimalho, é o que ele
é. Deixe que
eu lá vou.
Entraram
todas para ver o que tinha o Fiel. O cão estava deitado na enxerga do Simão,
abafado com o cobertor da cama, a tremer.
Uma das
raparigas tirou-o para fora, enxugou-lhe o pelo com jeitoso carinho, embrulhou-o
no avental e disse:
— Eu levo-o comigo, coitadinho!
Na lareira
já cantava a panela, que estava sobre quatro achas acesas.
O tio Simão,
que assistia a tudo aquilo com lágrimas nos olhos, disse:
— Deus vos pague no céu, minhas filhas, os
benefícios que fazeis a este pobre velho.
Tornou a
pegar no cajado, que tinha ao canto, e foi com as raparigas.
Como ele ia
alegre, direito, valente no meio delas!
Os vizinhos
diziam-lhe:
— Ó Simão, deram contigo as moças, estás
arranjado!
E ele
fartava-se de rir como um perdido!
Outros,
quando viram o Fiel no colo da moça, perguntaram com malicia:
— Ó menina, onde é o batizado?
*
* *
Ao cair da
tarde, o velhinho voltou para casa. Vinha vermelho, e caminhava depressa,
aprumado, como um rapaz. Como até vinha a cantarolar pelo caminho:
Eu entro já na lapinha
Pois me não posso conter,
Porque a sua formosura
Me enche de gosto e prazer.
Um vizinho que o viu passar, disse consigo:
Pois me não posso conter,
Porque a sua formosura
Me enche de gosto e prazer.
Um vizinho que o viu passar, disse consigo:
— Hoje o Simão leva o seu grãozito na aza!
Á frente, o
Fiel, ia seguindo pela estrada, voltando-se constantemente para trás, com medo
de que o dono lhe fugisse, e se deixasse ficar com as raparigas!
E, então, o
Fiel ia tão alegre, tão bom, tão esquecido do banho, que até já ladrava às
pernas dos transeuntes! Era um tirano!
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Fonte:
Alberto Braga: Contos da Aldeia. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.
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