quinta-feira, 28 de maio de 2015

Alberto Braga: Às cerejas

ÀS CEREJAS

Bateram as três badaladas do meio dia na torre de Santa Eufêmia. Os rapazinhos, que frequentavam a aula regia do José Sabino, começaram a sair, com as lousas pendentes do pescoço e os livros debaixo do braço. O mestre escola esteve um instante à porta, a recomendar-lhes, com tom de voz ameaçador:
 — Ora olhai agora se ides direitos e quedos para casa, se não…
E agitava na mão penujenta o junco punidor.
Enquanto o olhar austero do mestre os alcançava, bem iam eles, todos muito direitos, dois a dois, de mãos dadas, como uma leva de degredados; mas, apenas o caminho voltava para a direita, e entre o mestre e os discípulos ficava uma sebe muito alta e espessa, que os abrigava, adeus! corria tudo em debandada, como abelhas que irrompem de um cortiço!
Eu, então, gostava imenso de ver a pequenada assim, a correr, a saltar, a rir às gargalhadas, escalando os muros, invadindo os campos, como uma horda de vândalos terríveis. Só me custava ver, no tempo defeso, quando eles trepavam pelos castanheiros, para ir lá cima roubar entre os ramos as ninhadas dos passarinhos.
Assim que chegava o mês do S. João aquela enorme figueira do passal aparecia toda carregada. E os ramos que ficavam eminentes sobre o cunhal do muro, até vergavam para fora, para o lado do atalho, com o peso dos figos!
Era um fartote para os pequenos!
O mais destro marinhava pelas fendas do muro, escachava-se num galho mais consistente da árvore, e de lá ia atirando para baixo os figos maduros, a que podia chegar.
E o bonito era ver o abade, o bom velho do abade, que desatava a rir muito satisfeito, quando a criada lhe referia indignada o assalto dos pequenos.
 — Coitaditos! — dizia ele — Ó Ana, quem me cassara a mim no tempo em que eu fazia o mesmo às macieiras do pároco da minha terra!
De uma vez que os surpreendi na figueira do passal, lembrei-me com saudade de um assalto que eu dei também — vai isso há um bom par de anos! — a uma cerejeira…
Eu conto a história:
* * *
Já me penujava o buço; e como tinha a vida menos canceirosa e o sangue na guelra, dei em frequentar os teatros e em ler romances! Foi a minha perdição! Por um capricho da sorte, quase todos os romances falavam de janotas que se perdiam de amor por atrizes. De uma vez até se me deparou um dialogo entre Alexandre Dumas e outro escritor francês. Dizia assim:
 — Parece incrível, Alexandre, que em Paris andem cinquenta rapazes doidos de amor por atrizes.
 — Parece incrível — opôs o Papá Dumas, que era pecadoraço vezeiro neste particular — que haja cinquenta que o não estejam!
Vão lá dizer-nos que tudo aquilo é ficção!
A gente principia a ler romances e tem logo vontade de realizar na vida o que eles nos referem. Todos queremos ser Antonys, Werters, Camors, Armandos…
Nos bastidores do teatro Baquet levantei eu o altar para o sacrifício do meu coração. Principiei a entabular relações com os atores cômicos, — que a gente se persuade estão sempre a rir, e que, por via de regra, são os mais sorumbáticos cá por fora, — depois com os tiranos e os galãs. Era isto indispensável a um noviço, que, mais tarde, tivesse de cair apaixonado aos pés mimosos de qualquer atriz sentimental.
Eu então tinha gosto e jeito para o namoro — diziam-me os amigos! E esta fama veio de me ouvirem improvisar um madrigal à mais gentil e talentosa atriz desse tempo.
Estava eu à porta do camarim do Dias, que tem um filho chamado Josué. Como durante o espetáculo a atriz não tivesse correspondido à impertinência dos meus olhares frechados por um binóculo, quando ela passou, voltei-lhe as costas e não a cumprimentei. Vejam que despeito!
Chegou-se ela ao pequenito, acariciou-o, e disse-lhe, a sorrir:
 — Tu não voltas a cara à gente, não Josué?
E fitou-me com ar insinuante.
 — Este Josué — acudi eu, soprando uma espiral de fumo do charuto — parece-se agora com o Josué da Bíblia.
 — Porquê? — perguntou Dias.
 — Faz parar o sol!
Esplêndido!
Daí por diante, uns sujeitos que hoje são mais felizes e mais tolos do que eu, vinham pedir-me frases para eles improvisarem à passagem das requestadas.
Chegou de uma vez, em meado de abril, uma companhia de zarzuela.
Ás primeiras damas não falava eu. Qual! Essas, via-as eu passar pelo braço de uns figurões de bigodes espessos e suíças grisalhas, cabelos lustrosos puxados para as têmporas, com ares sérios e graves de diplomatas.
Eu só conhecia as comparsas, as que faziam de soldados rasos na Marina, de ninfas no Jovem Telêmaco, de camponesas na Catalina, e que no Relâmpago dançavam o tango, vestidas d'encarnado, com os rostos farruscados a fingirem pretos!
Dentre elas havia uma, a Consuelo, que era muito formosa, muito elegante, e que eu preferia às outras. Ainda me parece que a vejo, quando ela passava no meio dos adoradores, saracoteando os quadris, o peito ancho, o tronco descaído para trás, na cintura, e a cabeça levantada e oscilante, como a cabeça esbelta de um cavalo andaluz. Tinha os olhos pretos, úmidos e azougados, que é como o povo diz de uns olhos que tem a clerótica levemente azulada, os lábios cor de cereja, um pescoço de garça, como o dos retratos da Marie Antoinette, e um pé tão pequenino, gracioso e arqueado, que inspirava desejos de lhe dizer com o nosso Padre Manoel Bernardes: “Dá-me limpeza grande nos meus lábios para calçar teus pezinhos de mil ósculos santos!”
Ás vezes, tinha momentos de uma tal melancolia, de tão profunda mágoa, que me deu vontade de lhe saber a causa. Encontrei-a uma noite de beneficio, sozinha, a cantar a meia voz esta seguidilha:
En un ameno bosque
Mi niña duerme,
Cuidado, pajarilos,
No se despierte.
Decid al viento
Que mientras ela duerme,
Que sople quedo.
E ficou depois muito triste, encostada à porta do camarim, com os olhos fitos no bico de gás, que se abria trêmulo como o leque febril de uma espanhola. Tanto indaguei e com tão sincera simpatia o motivo daquela tristeza, que cheguei a sabê-lo um dia.
Coitadinha! Consuelo era filha de uns saltimbancos. A mãe — que já tinha morrido — dançava na corda bamba, o pai fazia jogos malabares, prestidigitação, sabia ler a buena-dicha e era um tenor excelente em barracões de feira. Uma irmãzita mais nova, a Conchita — oh! que linda! — essa dançava boleros e fandangos, no meio das praças públicas, sobre um tapete esfarrapado, ao som de um tambor, que o pai rufava para atrair a multidão.
A Consuelo, com as mãos fincadas nos quadris, a cabeça levantada, e a sorrir, cantava malagueñas, enquanto o pai agitava uma pandeireta biscaia com soalhas de latão!
Como era bonita não lhe faltavam galanteios e bravos.
 — Alza — Olé! olé! gritavam os espectadores, batendo as palmas — Alza, Consuelo!
Logo depois que a mãe morreu, principiou a ir lá por casa, enquanto o saltimbanco estava na taberna, uma velha esquálida a induzir a Consuelo que fugisse ao pai e que fosse para uma companhia de zarzuela, que um empresário rico ia organizar. Tanto a velha lhe pregou, e sempre com prendas, com ramos de violetas e Que guapa que és! Caramba! que serás feliz! que a pobre rapariga, uma fria manhã de nevoeiro, levantou-se da cama, foi, pé ante pé, beijar a Conchita, que ainda dormia, e fugiu!
Vejam que desgraça!
Afinal, de terra em terra, de desilusão em desilusão, sem um raio benéfico de esperança, que lhe fulgurasse na negrura da sorte, veio a Consuelo parar a Portugal!
 — Hoje — disse-me ela — não me contentava o ouro, nem as palmas, nem nada! Trocaria tudo, por ver meu pai e a minha Conchita!
E a voz trêmula embargou-se-lhe na garganta sufocada pelas lágrimas!
 — Mas que canção é essa que a faz entristecer? — perguntei eu.
Era uma canção popular, com que a mãe da Consuelo embalava nos braços a
Conchita, quando era ainda muito pequenina:
En un ameno bosque
Mi niña duerme,
Cuidado, pajarilos,
No se despierte.
Antes três dias de partir a companhia para Sevilha, eu e uns amigos oferecemos a Consuelo um jantar, no campo, debaixo de uma ramada.
Era pelos últimos dias de maio.
Tínhamos partido de madrugada, enquanto as gotas do orvalho tremeluziam nas encostas floridas, para fugirmos ao calor intenso do meio-dia.
A verdura tenra dos prados ondulava serenamente à mercê da viração fresca da manhã.
Quando a estrada costeava o sopé de uma colina, nós saltávamos da carruagem e seguíamos então a pé, cortando a eito pelos atalhos, atravessando por meio de campos de milho e de extensos trigais, abrigados pela sombra das carvalheiras, onde chilreavam os pintassilgos e rouxinóis.
Ás portas dos currais encontrávamos ainda as vacas saindo pausadamente para o pascigo. Na residência do sr. abade via-se o muro do passal coberto de trepadeiras; e por baixo do peitoril de uma janela, em uma gaiola de cana pendurada na parede, assobiava um melro.
Consuelo ia encantada!
O ar fresco, puro e sadio do campo abria-lhe apetites selvagens e contraditórios.
Ás vezes desejava ser como o boi manso, que vai pastando tranquilamente, num bosque, à beira d'água corredia; outras, então, queria antes ser como a potra que se avistava, ao longe, num extenso prado, correndo, com as crinas esparsas, aos pulos, sobre os giestais floridos!
Ao passar pelos silvados, Consuelo colhia as amoras maduras, e comi-as com sofreguidão.
Ao cabo de um quarto de hora de caminhada, avistou Consuelo, no fundo de uma ladeira, que descia para um pomar, uma cerejeira carregada de fruto.
 — Cerejas! — exclamou ela. — Ai! eu quero cerejas!
Descemos todos ao pomar; e então eu, que era o mais aldeão, trepei pela árvore acima, até aos ramos mais altos.
Consuelo ficou em baixo para aparar as cerejas. Os primeiros dois pés que eu lhe lancei, colocou-os ela sobre o pavilhão dos ouvidos, como dois brincos. Ficavam-lhe como duas contas enormes de coral! Em seguida apanhou na ponta dos dedos a roda do vestido, à frente, e disse-me que atirasse para ali as cerejas que fosse colhendo.
 — Lá vai, Consuelo! — gritava eu de cima!
 — Venham — dizia ela.
E, fechando os olhos, retezava e repuxava o vestido para as aparar ali todas.
Já Consuelo tinha uma boa regaçada, quando, de repente, ouvimos, ao longe, uma voz trêmula, que cantava assim:
En un ameno bosque
Mi niña duerme;
Cuidado, pajarilos,
No se despierte.
Consuelo foi deixando, pouco a pouco e quase insensivelmente, cair o vestido, cair as cerejas, cair os braços; e ficou a olhar para mim, com a cabeça erguida, na imobilidade de uma estátua.
Eu, que estava nos últimos galhos da árvore, em ponto eminente, ainda pude alcançar a estrada.
E vi, então, sair de uma taberna, que se abria, uma companhia de saltimbancos.
Ia atrás um velho, vestido de malha, com lentejoulas, que reluziam ao sol. Levava, pela mão, uma pequenita, com uma saia curta de cambraia muito suja e remendada. O saltimbanco caminhava devagar, com a cabeça descaída para o peito, os olhos no chão, a cantarolar:
Cuidado, pajarilos,
No se despierte…
Depois, quando desci os olhos para a Consuelo, que permanecia em baixo, como estarrecida, vi-lhe à flor das pálpebras duas lágrimas enormes, que tremiam, como duas gotas de orvalho nas pétalas de uma rosa!

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Fonte:
Alberto Braga: Contos da Aldeia. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

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