quinta-feira, 28 de maio de 2015

Alberto Braga: "Vinhos e águas-ardentes"

VINHOS E ÁGUAS-ARDENTES

Quando entrei no cemitério, lobriguei, ao fundo, por entre a rama de alguns ciprestes, que orlavam as ruas transversais, o coveiro a levantar as últimas pazadas de terra de uma vala.
O homem cantarolava assim:
Menina, que está à janela,
A lançar goivos à rua…
E, depois, agachado no cairel, media com o cabo da enxada a profundidade da cova, prosseguindo alegremente:
Se o coveiro aqui passa,
Vai pôr-lhos na sepultura.
Meteu a pá da enxada na leiva de terra, que lhe ficava ao lado, transpôs o cômoro de outras sepulturas, e parou junto de um esquife pobre, de pau, sem forro, com os símbolos da morte pintados de amarelo.
Arrastou-o com esforço para a boca da vala, escancarou as tampas; e, ao dar com o rosto do cadáver, exclamou de si para si:
 — Ora espera! Eu conheço esta rapariga!
Entreabriu os lábios com a unha do dedo polegar, concentrou-se um instante a meditar com os olhos fechados; e, por fim, continuou compadecido:
 — Ah! És a Rosita do tecelão!
Á medida que retirava com jeitosa piedade o cadáver do esquife, lamentava:
 — Pobre rapariga! Eu logo vi que te não delatavas atrás da filha!
Depois, o resto foi rápido e breve.
Baldeou o cadáver ao fundo da cova, lançou-lhe por cima a terra que tinha levantado, recalcou bem com os pés juntos os últimos torrões, e retirou-se para casa, com a enxada ao ombro!
* * *
Aí vai ler-se a história dessa mulher. A sua vida é a vida trivial de muitas desgraçadas.
Quando tinha apenas dezoito anos, Rosa chorou as primeiras lágrimas do coração retalhado sobre o cadáver da mãe, que lhe expirou nos braços.
Ficava sozinha no mundo, a viver pobremente do seu trabalho honesto e incessante, sem uma voz consoladora que a alentasse a arrostar todas as adversidades, que a sorte lhe havia de deparar.
O grande perigo estava-lhe na peregrina formosura do rosto e na inocência do coração, que é a formosura da alma.
Um dia o Benjamim tecelão, um rapaz alegre e bem parecido, que de há muito lhe arrentava a porta, disse-lhe que a amava; e, para justificar a sua declaração, propôs-lhe com voz trêmula a sua mão de esposo. Mentiu-lhe.
Ao cabo de onze meses, durante os quais o tecelão ia inventando embargos à realização da sua promessa, a pobre rapariga deu à luz uma filha. As primeiras alegrias da mãe deram tréguas ao sofrimento do coração ludibriado. A filha chamava-se Isabel, que era o nome da mãe de Rosa.
Depois, quando as lágrimas lhe rebentavam copiosas, Rosa tomava a criancinha nos braços, e um sorriso dela era-lhe um grato refrigério para as amarguras da vida.
O operário entendeu que a filha era um vinculo mais apertado do que a estola de um sacerdote. Propôs a vida em comum. Rosa acedeu de pronto, fiada em que o amor de pai talvez despertasse na consciência de Benjamim a ideia do casamento, que a reabilitasse.
O tecelão, vendo que o trabalho de Rosa bastava às despesas da casa, deixou-se ficar uma semana sem ir à fábrica. Quando a ociosidade lhe era tediosa, ia procurar distração na taberna mais próxima. Voltou de novo ao trabalho; mas o seu produto despendia-o consigo e com os amigos, às mesas das tabernas e às bancas do jogo, esquecendo-se de Rosa e da filha. Aconteceu Rosa adoecer da muita fadiga, e pedir algum dinheiro a Benjamim. Não teve ele coragem de lho negar; mas entregou-lho de um modo tão áspero, que ofendeu o coração da desventurada mãe.
Foi aí que principiou o calvário de Rosa!
Benjamim entrava em casa, por altas horas da noite, cambaleante e obsceno. Atirava quantos insultos lhe lembravam ao rosto da rapariga. Rosa amparava-o com brandura, sofria-lhe os escárnios com a mais santa resignação, auxiliava-o a deitar-se; e, depois, quando Benjamim, com os cabelos em desalinho, o rosto descorado, ressonava, prostrado com o peso da embriaguez, ela quedava-se a contemplá-lo, com as faces cobertas de lágrimas.
O viço da sua formosura ia pouco a pouco desaparecendo. Já não tinha o mesmo brilho nos olhos, o mesmo cetim na cútis, a mesma ondulação nos contornos do rosto. As lágrimas deixavam um vestígio indelével da sua passagem, e Rosa envelhecia e esfeiava.
Benjamim, ao acordar do dia seguinte ao da embriaguez, sentia-se enfastiado da presença daquela velha, e saía de casa sem lhe dirigir uma palavra de gratidão e carinho!
De uma vez — tinha Isabel sete anos — o tecelão chegou a casa num estado lastimoso. Dois amigos e consócios de taberna levaram-no nos braços, até à porta. Benjamim subiu a custo os degraus íngremes da escada; abriu de repelão a porta da sala, e apareceu hediondo, a tremer, com os olhos injetados, os lábios convulsos, os cabelos empastados de um suor viscoso. Fez um esforço para se aproximar de Rosa. Estendeu os braços para se arrimar à parede; abriu as pernas para conservar o equilíbrio; e, ao arriscar vacilante o primeiro passo, caiu de bruços, com todo o peso do corpo, sobre o pavimento!
Isabel, que já dormia, acordou sobressaltada com o estrondo da queda, e principiou a gritar de medo! Benjamim ergueu-se de golpe, dirigiu-se à enxerga, em que dormia a filha e espancou brutalmente a pobre criança, que emudeceu de terror aos primeiros tratos. Acudiu Rosa, implorando com altos brados a Benjamim que perdoasse à filha; mas o bêbado respondia às súplicas da mãe com pancadas e empuxões.
Ao outro dia, a Isabel tinha o corpinho tão macerado, que mal se podia remover da cama. Rosa levantou-a carinhosamente nos braços, agasalhou-a em umas saias de baeta, e, logo que o tecelão saiu de casa, foi com a filha ao hospital da Misericórdia. O facultativo, que observou a criança, viu, através das lágrimas da mãe, a causa daquelas contusões. A pequenita estava muito doente.
Ao terceiro dia, a filhinha chamou com voz débil pela mãe, pediu-lhe que se sentasse na enxerga, bem junto dela, encostou-lhe a sua loira cabecinha no regaço, e disse-lhe:
 — O pai é muito mau! E a mãe chora tanto! Se eu morrer, hei de pedir a
Nossa Senhora que leve a mãe para junto de mim; quer?
Rosa não respondia, porque os soluços, que lhe estalavam o peito, lhe embargavam a voz.
A Isabelinha então, já com a vista turva, e a boca entreaberta, lançou os braços ao pescoço da mãe, para a achegar mais de si, estremeceu da derradeira convulsão e… expirou!
Ao cabo de um mês, durante o qual o padecimento de Rosa fora horrivel, o mesmo coveiro que enterrou a filha, abriu ao lado outra cova para receber a mãe.
* * *
O rosto daquela mulher, magro, lívido, macerado, tinha a impressão indelével das torturas por que passara. Não havia nele as contusões da agonia dos delinquentes, que morrem convulsionados pelo terror de um castigo eterno. O derradeiro alento entreabriu-lhe nos lábios um sorriso de bem-aventurança!
É como ficam as criaturas, santificadas pelo martírio, e que esperam na morte a hora do seu resgate!
E quem diria — pobre criança! — que tinhas apenas vinte e cinco anos, e que foste formosa, e que te julgaste feliz no dia em que pousaste pela vez primeira os lábios convulsos de alegria na face cor de rosa de tua filha!?
E saber-se que o martiriológio é com certeza o único elogio fúnebre de tantas desgraçadas como Rosa!
E Benjamim?
Benjamim, aquele homem que seduziu impunemente uma mulher e que matou impunemente a filha, prossegue inflexível na vida crapulosa, dominado pelo vício da embriaguez, em que tem perdido, pouco a pouco, o vigor e a vida de todas as faculdades, a saúde, a honra e a própria dignidade de um ser humano!

---
Fonte:
Alberto Braga: Contos da Aldeia. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

Nenhum comentário:

Postar um comentário