O SERMÃO
Era um dia
de festa e de grande romaria.
Desde
madrugada, que eu estava debruçado no muro do meu quintal, à sombra de uma
acácia, onde trinava um rouxinol, para ver passar os romeiros, que se dirigiam,
em bandos, para o arraial.
Antes de
chegar ao adro, passava-se por dois arcos de murta com flores, dos quais
pendiam bandeiras e galhardetes de cores garridas.
Ás onze
horas da manhã ouvia-se o murmurinho surdo do ajuntamento no lugar da romaria.
Pela estrada já pouca gente passava; e a que ainda vinha à festa, caminhava de
vagar, fatigada, rente dos muros das quintas, para se abrigar do calor ardente
e abafadiço de julho.
De repente,
na curva que a estrada faz, junto do pinheiral, apareceu a carruagem da sra.
viscondessa, que era, nesse ano, a juíza da festa.
Os
transeuntes paravam, encostados aos muros, e voltavam-se para ela, com os
chapéus na mão, como se abrissem passagem respeitosa a uma rainha. A carruagem
descoberta era tirada por duas éguas inglesas, que esbofavam com ruído, batendo
as patas a compasso na areia fina e reluzente da estrada. O cocheiro vinha
aprumado na almofada, com as pernas esticadas, e na mão direita levantada
suspenso o pingalim. Dentro, reclinada no estofo escuro da carruagem, a sr.ª a
viscondessa sorria afável para os lados, agitando levemente a cabeça. Uma
marquesinha cor de pérola abrigava-a do sol. No lugar da frente ia o sr. abade,
um abade ainda novo, muito escanhoado, vestido com batina lustrosa, cabeção de
renda, barrete de cetim levemente inclinado na coroa da cabeça. Levava as mãos
cruzadas sobre o ventre e os olhos fitos no vestido da viscondessa, um vestido
verde-mar, com guarnições de renda, que se abria diante dele, como um leque.
Os romeiros,
só depois da carruagem passar, é que continuavam o caminho, e, olhando entre si
de um lado e de outro da estrada, sorriam gloriosos.
Quando a
sra. viscondessa apeou à porta da igreja, estalou no ar uma girândola de
foguetes; e eu, que não tencionava assistir à festa, acendi um charuto, e
dirigi-me vagarosamente para o lugar da igreja, antes que principiasse o
sermão.
*
* *
Estava a
igreja armada com sanefas e cortinas de damasco escarlate, onde as luzes das
tocheiras de prata do altar punham reflexos vermelhos.
Fora da têa
gradeada do altar-mor, via-se o povo, de pé, apinhado, com o olhar espantado e
perdido na decoração ostentosa do templo. A pedra do altar-mor estava revestida
com toalha franjada de rendas. Um tapete largo de variegadas cores cobria o
estrado do altar, descia os três degraus preso por varões de metal lustroso, e
estendia-se na capela-mor até à grade. Três padres velhos, avergados sob o peso
das capas de asperges com brocados de ouro, estavam sentados ao lado, com os
pés unidos e estendidos para a frente. Sentia-se um cheiro forte a incenso; e,
no coro, soavam as últimas notas plangentes das rabecas acompanhadas a órgão e
rabecão.
A sra.
viscondessa entrou apressada pela porta lateral, que dava para a sacristia, e
ajoelhou-se em frente do altar, com a cabeça muito levantada e os olhos pregados
na imagem do Cristo crucificado em meio de luzes e ramos de flores. Depois de
rezar, com as mãos postas em súplica junto do seio, persignou-se lentamente e
sentou-se.
Nesse
instante, houve um rumor vago entre os fiéis, que enchiam o templo.
O pregador
aparecera no púlpito. O seu rosto oval de uma palidez maviosa, fronte larga,
barba escanhoada e azulada no queixo, destacava-se da alvura da sobrepeliz de
cambraia bordada.
As suas mãos
estreitas e brancas saíam dentre as rendas aniladas das mangas, que lhe
chegavam até à raiz dos dedos.
O abade
olhou atentamente o auditório, e ajoelhou. Ergueu-se depois, arrepanhou os
canhões da sobrepeliz, ajeitou a estola, espigarrou com tom solene e passou à
flor dos lábios o lenço, que depôs cuidadosamente ao lado. Em seguida, fincando
a palma das mãos no parapeito do púlpito, adiantou o busto para a frente e
principiou com voz débil:
— “Mulierem
fortem quis inveniet? Proverb. 31”.
Era o sermão
de Santa Isabel, rainha e mártir. O pregador historiou a vida da santa, desde o
tempo em que, menina e moça, nos seus palácios de Aragão, o seu principal
divertimento era a oração e o exercício da caridade. Desposada por el-rei de
Portugal, D. Diniz, em breve as leviandades amorosas do esposo lhe amarguraram
o coração traído.
— “Porque —
exclamava o pregador, alçando o braço — quantas vezes o manto de uma rainha esconde um coração
atribulado!? Em meio da ostentação de um
palácio, cercada de todas as magnificências reais, filha e esposa de rei, como a grande rainha de
Lacedemônia, quae Regis filia, Regis uxor, a princesa santa
não tinha o sossego, o descanso, a
alegria da mulher humilde de um mecânico! Era rainha, Regis uxor, era poderosa, era rica; mas a principal riqueza era a da sua alma. O ouro copioso dos seus cofres não tinha o
grande valor do ouro de alto quilate do
seu coração, — ouro de lei, puríssimo, sem liga, que se não gasta e consome com
o uso, antes se acrisola e engrandece
com o exercício das boas ações!”
Algumas
mulheres soluçavam comovidas; e a sra. viscondessa, que o ouvia com atenção,
fechava os olhos em sinal de concordância, e acenava afirmativamente a cabeça.
Prosseguia o
sermão. O pregador falava da santa, quando acudia pressurosa aos infelizes.
Referiu o milagre da transformação dos pães em flores, sendo surpreendida pelo
rei, quando ia esmolar aos pobrezinhos!
Depois,
adiantando paralelas as mãos, como se quisesse atrair num braçado o auditório
estupefato, dizia:
— “Vede para que serve o ouro! Não vos
julgueis desgraçados, se vos não assistem grandes riquezas! Não deixeis que a
inveja se enrosque, como serpente ardilosa do inferno, em vossos corações”.
E, apontando
o indicador para o céu, prosseguia com voz mais solene:
— “É aí que se vê a previdência de Deus!
Concedeu o ouro aos ricos, para que o distribuíssem pelos pobres! Pedir não é
humilhação nem vergonha! Deu-nos o exemplo Jesus, o Divino Mestre, que ensinou
aos discípulos a pedir com humildade!
E que maior
consolação — continuava o pregador — que maior consolação do que socorrer com a
esmola àqueles que a fortuna fez menos abastados!? Apagar a fome, saciar a
sede, vestir os nus, enxugar as lágrimas das viúvas, amparar a orfandade, dar
arrimo à velhice!”
E exclamava:
— ”Oh! santa caridade! Oh! flor sacrossanta do
altar de Deus! A caridade…”
E
retraindo-se no púlpito, arqueando os braços à frente, aproximando as mãos com
as cabeças do indicador e polegar delicadamente unidas, recitava com voz
untuosa, repassada de mimo:
À noite a virgem modesta,
A casta filha de Deus,
Furta-se aos hinos da festa,
E envolta em cândidos véus,
Desce a escada suntuosa,
Mãe dos maus, irmã dos bons,
Lá vai levar carinhosa
A toda a parte os seus dons.
A casta filha de Deus,
Furta-se aos hinos da festa,
E envolta em cândidos véus,
Desce a escada suntuosa,
Mãe dos maus, irmã dos bons,
Lá vai levar carinhosa
A toda a parte os seus dons.
Foi de um
efeito surpreendente! O auditório sentia calafrios: passava nele a corrente
magnética do entusiasmo!
O pregador
rematou em tom familiar, com voz mais baixa, aconselhando aos pobres, que
seguissem o exemplo de Jesus, que andou a pedir pelo mundo; e aos ricos, que se
amoldassem pela Rainha Santa, que distribuía pelos desgraçados as riquezas do
seu palácio.
— “Amen.”
E saiu do
púlpito açodado, vermelho, anelante, a enxugar com o lenço o suor copioso, que
lhe corria da testa.
*
* *
Nesse dia,
jantou o sr. abade com a sra. viscondessa. Quando eu cheguei, tinham-se já
levantado da mesa, e estavam sentados no terraço, à sombra do toldo listrado.
Defronte da
viscondessa, o abade, refestelado em uma larga cadeira de vime, sorvia o café a
pequeninos goles.
Cumprimentei
o pregador pelo sermão; e a sra. viscondessa, levantando entusiasticamente a
cabeça, confirmou do lado:
— Admirável! admirável! Diga-me, sr. Alberto —
continuou ela, batendo-me familiarmente no joelho — não acha que o abade
recitou a poesia com mais mimo e mais sentimento do que a Emilia Adelaide, em
D. Maria?
— Ah! — exclamei eu, espantado do confronto — sem
dúvida!
O escudeiro
entrou com uma bandeja de prata para receber as chávenas.
Aproximou-se
da sra. viscondessa, e disse-lhe a meia voz:
— Está lá baixo uma pobre, que pede uma esmola
a v. exa.
— Que impertinência! — exclamou ela,
carregando o sobrolho com gesto de enfado. — Pois dê-lhe lá uma esmola,
Francisco.
O sr. abade,
que ia para beber o último gole de café, ouvindo aquilo, suspendeu a xícara no
ar, e acudiu do lado, com modo insinuante:
— Isso! Costume-os, sra. viscondessa — dizia
ele, meneando pausadamente a cabeça — costume-os mal, e verá que lhe não largam
a porta!
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Fonte:
Alberto Braga: Contos da Aldeia. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.
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