quinta-feira, 28 de maio de 2015

Alberto Braga: "O Sermão"

O SERMÃO

Era um dia de festa e de grande romaria.
Desde madrugada, que eu estava debruçado no muro do meu quintal, à sombra de uma acácia, onde trinava um rouxinol, para ver passar os romeiros, que se dirigiam, em bandos, para o arraial.
Antes de chegar ao adro, passava-se por dois arcos de murta com flores, dos quais pendiam bandeiras e galhardetes de cores garridas.
Ás onze horas da manhã ouvia-se o murmurinho surdo do ajuntamento no lugar da romaria. Pela estrada já pouca gente passava; e a que ainda vinha à festa, caminhava de vagar, fatigada, rente dos muros das quintas, para se abrigar do calor ardente e abafadiço de julho.
De repente, na curva que a estrada faz, junto do pinheiral, apareceu a carruagem da sra. viscondessa, que era, nesse ano, a juíza da festa.
Os transeuntes paravam, encostados aos muros, e voltavam-se para ela, com os chapéus na mão, como se abrissem passagem respeitosa a uma rainha. A carruagem descoberta era tirada por duas éguas inglesas, que esbofavam com ruído, batendo as patas a compasso na areia fina e reluzente da estrada. O cocheiro vinha aprumado na almofada, com as pernas esticadas, e na mão direita levantada suspenso o pingalim. Dentro, reclinada no estofo escuro da carruagem, a sr.ª a viscondessa sorria afável para os lados, agitando levemente a cabeça. Uma marquesinha cor de pérola abrigava-a do sol. No lugar da frente ia o sr. abade, um abade ainda novo, muito escanhoado, vestido com batina lustrosa, cabeção de renda, barrete de cetim levemente inclinado na coroa da cabeça. Levava as mãos cruzadas sobre o ventre e os olhos fitos no vestido da viscondessa, um vestido verde-mar, com guarnições de renda, que se abria diante dele, como um leque.
Os romeiros, só depois da carruagem passar, é que continuavam o caminho, e, olhando entre si de um lado e de outro da estrada, sorriam gloriosos.
Quando a sra. viscondessa apeou à porta da igreja, estalou no ar uma girândola de foguetes; e eu, que não tencionava assistir à festa, acendi um charuto, e dirigi-me vagarosamente para o lugar da igreja, antes que principiasse o sermão.
* * *
Estava a igreja armada com sanefas e cortinas de damasco escarlate, onde as luzes das tocheiras de prata do altar punham reflexos vermelhos.
Fora da têa gradeada do altar-mor, via-se o povo, de pé, apinhado, com o olhar espantado e perdido na decoração ostentosa do templo. A pedra do altar-mor estava revestida com toalha franjada de rendas. Um tapete largo de variegadas cores cobria o estrado do altar, descia os três degraus preso por varões de metal lustroso, e estendia-se na capela-mor até à grade. Três padres velhos, avergados sob o peso das capas de asperges com brocados de ouro, estavam sentados ao lado, com os pés unidos e estendidos para a frente. Sentia-se um cheiro forte a incenso; e, no coro, soavam as últimas notas plangentes das rabecas acompanhadas a órgão e rabecão.
A sra. viscondessa entrou apressada pela porta lateral, que dava para a sacristia, e ajoelhou-se em frente do altar, com a cabeça muito levantada e os olhos pregados na imagem do Cristo crucificado em meio de luzes e ramos de flores. Depois de rezar, com as mãos postas em súplica junto do seio, persignou-se lentamente e sentou-se.
Nesse instante, houve um rumor vago entre os fiéis, que enchiam o templo.
O pregador aparecera no púlpito. O seu rosto oval de uma palidez maviosa, fronte larga, barba escanhoada e azulada no queixo, destacava-se da alvura da sobrepeliz de cambraia bordada.
As suas mãos estreitas e brancas saíam dentre as rendas aniladas das mangas, que lhe chegavam até à raiz dos dedos.
O abade olhou atentamente o auditório, e ajoelhou. Ergueu-se depois, arrepanhou os canhões da sobrepeliz, ajeitou a estola, espigarrou com tom solene e passou à flor dos lábios o lenço, que depôs cuidadosamente ao lado. Em seguida, fincando a palma das mãos no parapeito do púlpito, adiantou o busto para a frente e principiou com voz débil:
— “Mulierem fortem quis inveniet? Proverb. 31”.
Era o sermão de Santa Isabel, rainha e mártir. O pregador historiou a vida da santa, desde o tempo em que, menina e moça, nos seus palácios de Aragão, o seu principal divertimento era a oração e o exercício da caridade. Desposada por el-rei de Portugal, D. Diniz, em breve as leviandades amorosas do esposo lhe amarguraram o coração traído.
— “Porque — exclamava o pregador, alçando o braço — quantas vezes o  manto de uma rainha esconde um coração atribulado!? Em meio da  ostentação de um palácio, cercada de todas as magnificências reais,  filha e esposa de rei, como a grande rainha de Lacedemônia, quae  Regis filia, Regis uxor, a princesa santa não tinha o sossego, o  descanso, a alegria da mulher humilde de um mecânico!  Era rainha, Regis uxor, era poderosa, era rica; mas a principal  riqueza era a da sua alma.  O ouro copioso dos seus cofres não tinha o grande valor do ouro  de alto quilate do seu coração, — ouro de lei, puríssimo, sem liga, que se não gasta e consome com o uso, antes se acrisola e  engrandece com o exercício das boas ações!”
Algumas mulheres soluçavam comovidas; e a sra. viscondessa, que o ouvia com atenção, fechava os olhos em sinal de concordância, e acenava afirmativamente a cabeça.
Prosseguia o sermão. O pregador falava da santa, quando acudia pressurosa aos infelizes. Referiu o milagre da transformação dos pães em flores, sendo surpreendida pelo rei, quando ia esmolar aos pobrezinhos!
Depois, adiantando paralelas as mãos, como se quisesse atrair num braçado o auditório estupefato, dizia:
 — “Vede para que serve o ouro! Não vos julgueis desgraçados, se vos não assistem grandes riquezas! Não deixeis que a inveja se enrosque, como serpente ardilosa do inferno, em vossos corações”.
E, apontando o indicador para o céu, prosseguia com voz mais solene:
 — “É aí que se vê a previdência de Deus! Concedeu o ouro aos ricos, para que o distribuíssem pelos pobres! Pedir não é humilhação nem vergonha! Deu-nos o exemplo Jesus, o Divino Mestre, que ensinou aos discípulos a pedir com humildade!
E que maior consolação — continuava o pregador — que maior consolação do que socorrer com a esmola àqueles que a fortuna fez menos abastados!? Apagar a fome, saciar a sede, vestir os nus, enxugar as lágrimas das viúvas, amparar a orfandade, dar arrimo à velhice!”
E exclamava:
 — ”Oh! santa caridade! Oh! flor sacrossanta do altar de Deus! A caridade…”
E retraindo-se no púlpito, arqueando os braços à frente, aproximando as mãos com as cabeças do indicador e polegar delicadamente unidas, recitava com voz untuosa, repassada de mimo:
À noite a virgem modesta,
A casta filha de Deus,
Furta-se aos hinos da festa,
E envolta em cândidos véus,
Desce a escada suntuosa,
Mãe dos maus, irmã dos bons,
Lá vai levar carinhosa
A toda a parte os seus dons.
Foi de um efeito surpreendente! O auditório sentia calafrios: passava nele a corrente magnética do entusiasmo!
O pregador rematou em tom familiar, com voz mais baixa, aconselhando aos pobres, que seguissem o exemplo de Jesus, que andou a pedir pelo mundo; e aos ricos, que se amoldassem pela Rainha Santa, que distribuía pelos desgraçados as riquezas do seu palácio.
 — “Amen.”
E saiu do púlpito açodado, vermelho, anelante, a enxugar com o lenço o suor copioso, que lhe corria da testa.
* * *
Nesse dia, jantou o sr. abade com a sra. viscondessa. Quando eu cheguei, tinham-se já levantado da mesa, e estavam sentados no terraço, à sombra do toldo listrado.
Defronte da viscondessa, o abade, refestelado em uma larga cadeira de vime, sorvia o café a pequeninos goles.
Cumprimentei o pregador pelo sermão; e a sra. viscondessa, levantando entusiasticamente a cabeça, confirmou do lado:
 — Admirável! admirável! Diga-me, sr. Alberto — continuou ela, batendo-me familiarmente no joelho — não acha que o abade recitou a poesia com mais mimo e mais sentimento do que a Emilia Adelaide, em D. Maria?
 — Ah! — exclamei eu, espantado do confronto — sem dúvida!
O escudeiro entrou com uma bandeja de prata para receber as chávenas.
Aproximou-se da sra. viscondessa, e disse-lhe a meia voz:
 — Está lá baixo uma pobre, que pede uma esmola a v. exa.
 — Que impertinência! — exclamou ela, carregando o sobrolho com gesto de enfado. — Pois dê-lhe lá uma esmola, Francisco.
O sr. abade, que ia para beber o último gole de café, ouvindo aquilo, suspendeu a xícara no ar, e acudiu do lado, com modo insinuante:
 — Isso! Costume-os, sra. viscondessa — dizia ele, meneando pausadamente a cabeça — costume-os mal, e verá que lhe não largam a porta!

---
Fonte:
Alberto Braga: Contos da Aldeia. Atualização ortográfica: Iba Mendes. Poeteiro Editor Digital. São Paulo, 2015.

Nenhum comentário:

Postar um comentário